quarta-feira, 17 de novembro de 2010

CAMINHO...

“Não vos peço senão que olheis para Ele”

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Querida Madre Teresa:

Há livros que não resistem dois anos nem duas leituras. Há outros, em troca, que atravessam os séculos e nos acompanham permanentemente. Tal é caso do Caminho de Perfeição, o livro que tu escreveste para as tuas monjas, tomando-as como protótipo de leitores ideais, para nos comunicares a tua experiência e ensinar-nos o teu “modo de oração” (CV 29,7), o que elas aprenderam com tanto êxito (F 4,8) e tu querias que fosse para todos (cf. CV 19,15), convencida como estavas de que “por essa via chegam mais depressa à contemplação (V 4,7).

Hoje também há muitas pessoas que se interessam e perguntam pela oração contemplativa, não tanto pela necessidade de afirmar ou justificar a sua importância quanto pela maneira de chegar a ela, decididas a empreender “esta viagem divina, que é caminho real para o Céu” (CV 21,1), arriscando inclusive perderem-se numa multiforme variedade de ofertas que nem sempre oferecem o que prometem e que tornam mais evidente o que há já alguns anos advertiu um conhecido teólogo: que o problema pastoral mais urgente do nosso tempo é como ensinar o povo a orar.

Por outro lado, aprender a orar não é uma tarefa que dependa de nós, por mais que nos esforcemos em aplicar técnicas e dedicar-lhe horas. Orar é uma realidade que nos precede e nos ultrapassa, é uma presença escondida nas profundidades do coração. Gosto de que, no teu Castelo Interior, no começo das quintas moradas, a tenhas comparado com a parábola evangélica do tesouro escondido e da pérola preciosa (cf. 5M 1,2, Mt 13, 44-46). Tenho imaginado muitas vezes a história daquele homem que tinha arrendado um campo desde havia anos, aonde ia todos os dias e cuja paisagem árida lhe resultava tão familiar que pouco mistério tinha para ele.

Mas, um dia, inesperadamente, quando cavava fundo para arrancar alguma raiz ou remover alguma pedra, descobriu com surpresa aquele tesouro que levava anos junto dele sem sabê-lo. Uma coisa parecida nos pode acontecer com a oração: sentimos a sua chamada, tentámo-la algumas vezes e talvez nos tenhamos desanimado. Costumamos dizer: é difícil, não sei como fazer, não encontro um lugar sossegado, não consigo concentrar-me… O caso é que procuramos o tesouro longe do nosso campo, longe da nossa vida. Não acabamos de acreditar que o tesouro está aí, no fundo do nosso ser, que estamos habitados pela oração.

Este é, na minha opinião, o grande acerto do teu Caminho de Perfeição, o mais interessante do livro e o elemento mais eficaz do teu magistério: que nos ensinas a descobrir a presença orante que nos habita e, consequentemente, a orar de maneira directa e imediata, orando tu mesma na presença de Deus e do leitor; e não porque pretendas com isso dar-nos exemplo, senão porque não se pode falar de Deus sem se falar a Deus mesmo, e porque também não se pode ensinar a orar desde fora desse acto, mas na presença da fonte e da meta da oração, a partir dela, nela e para ela.

Na vida humana, existem realidades que não podem ser captadas desde um ponto exterior a elas, porque afectam e actualizam a totalidade da pessoa: o que é o amor, a fidelidade, a angústia ou a esperança, só se compreendem no acto que as realiza. Não se podem ensinar desde fora desse acto. O mesmo acontece com a oração. A sua possibilidade e o seu sentido só se captam na própria oração. Pode-se falar dela só desde a referência àquilo que está sempre presente no fundo do nosso coração e que o apóstolo Paulo chama “gemidos inefáveis do Espírito (Rm 8,16; 5,5; Gal 4,6). Só desde aí se pode ensinar e aprender a orar.

Neste sentido, e tratando de simplificar as coisas, creio que o método (o “modo” como tu dizes) mais útil para aprender a orar é o que tu própria propões no capítulo 26 do Caminho de Perfeição. Indica-lo bem claro no título: “Vai declarando o modo de recolher o pensamento. Dá meios para isso. Este capítulo é muito proveitoso para os que começam a ter oração”. Lido em voz alta e diante de uma imagem de Cristo, tal como aparece na foto (o Cristo da paz, quadro que deixaste na tua última fundação, a de Burgos), é realmente impressionante e de uma eficácia extraordinária. E é que existe uma tal semelhança entre o texto e a imagem, entre o ouvir e o ver, que ambos se dão as mãos, dizem o mesmo (toda uma pedagogia do olhar) e não são precisos mais recursos para começar a orar.

De igual eficácia são também os outros capítulos que dedicas à exegese do Pai-nosso (CV 27-42), oração que contém em síntese todo o Evangelho (breviarum totius evangelii, lhe chamou Tertuliano, o primeiro comentarista), e que, como tal, é referência obrigatória para todo o tipo de orantes e para todas as etapas do caminho espiritual: “Pasmo de ver como, em tão poucas palavras, está encerrada toda a contemplação e perfeição… todo o modo de oração e de alta contemplação, desde os principiantes na oração mental, até à de quietude e união” (CV 37,1; cf. 42,5). Lendo e orando contigo as palavras do Pai-nosso, descobrimos que não são frases feitas, mas frases por fazer…, que têm mais do que soam e operam a realidade que conotam, que revertem sobre o próprio leitor e têm capacidade para o transformar. Agradeço-te, portanto, por tudo isto e também pela alegria de voltar a ler este ano o Caminho de Perfeição. Porque, se ler é útil, neste caso reler é-o duplamente.

Salvador Ros Garcia

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