quarta-feira, 17 de novembro de 2010

LENDO O CAMINHO DE PERFEIÇÃO-Ficha de Trabalho: Caminho 1-3

Ficha de Trabalho: Caminho 1-3

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Caminho 1-3:

Finalidade da fundação de S. José e da oração contemplativa


Avisos prévios: 1) também este ano fornecemos as fichas quinzenalmente e numa só folha, excepto esta primeira; 2) e, muito mais importante, continua a ser fundamental, em todas as secções, anotar as frequentes orações explícitas, que aparecem e a quem se dirigem, como e porquê.

Pistas de leitura1 .

Como se verá facilmente, são capítulos apaixonados, com alma (1,3-5; CE 4); história (1, 2; 3, 8) e tese (1, 2). A Santa Madre converte finalmente esta última num símbolo que lhe serve para se espraiar em qual é a missão das suas monjas e, ao mesmo tempo, para mostrar quais são, na sua opinião, os verdadeiros problemas e soluções da situação eclesial de então; portanto, prestemos atenção a isso (quer dizer, aos três sublinhados deste parágrafo). E, no meio destes capítulos, uma aparente digressão sobre a pobreza, não só oportuna, mas querida por Deus (2, 11). Portanto, anotar as vezes que aparece a palavra “experiência” e, sobretudo, de que pobreza se trata: 1) em quê ou quem se inspira; 2) em que consiste; 3) que desafogos materiais consente.

Para reflectir, rever a vida, interceder, agradecer, contemplar…

1. Certamente, ficou claro o carácter apostólico, eclesial e comunitário que a Santa dá à vida contemplativa. Também o facto de que o afirma contra toda a piedade individualista (cf. 3, 6; 1, 2) ou ‘materialista’ (cf. 1, 5) 2. – Está claro o que isto supõe para mim, para a minha comunidade, para a minha igreja local…? – E a revolução que aquilo implicava numa sociedade em que a vida religiosa feminina era vista facilmente como um ‘estacionamento’ de mulheres não casadoiras e, ao mesmo tempo, como uma servidão a favor dos benfeitores e suas intenções mais pitorescas (cf. 2, 5; V 34, 3)? – Somos assim tão livres de espírito? …
2. E, no centro destas reflexões teresianas, a mais evangélica e talvez mesmo surpreendente: esta vocação consiste, ‘mais do que’ em rezar (cf. 1, 2; 3, 5), em:

“Uma determinação operativa e resoluta: determinou-se a fazer. Mas o tom drástico desta decisão fica contrastado ou mitigado com um toque de modéstia: fazer esse pouquito. Veremos, a seguir, o ingente que é esse pouquito. Nada utópico: resolução bem enquadrada no âmbito do real, do possível: esse pouquito que eu posso e está em mim, escreveu no rascunho. Não só possível e real, mas situado na terra firme do Evangelho: esse pouquito será seguir os conselhos evangélicos. E, finalmente, um toque decisivo, que recupera a força do determinei inicial: com toda a perfeição que eu pudesse (…). Impõe-se uma dupla constatação: impossível delinear o novo carisma do grupo sem conectar com a experiência viva e eclesial da Santa. Impossível igualmente penetrar na lição do Caminho sem ter em conta esta preciosa chave da ascética teresiana 3.

3. Portanto, a questão está em ser autênticos, na coerência dos cristãos: no “braço eclesiástico e não o secular” (3, 2); não forças humanas nem armas (cf. 3, 1). – Estamos livres – pessoas e comunidades – da tentação de recorrer a estas ou outras formas mais subtis de pressão ou manipulação das consciências…?

4. Visto que a chave é a autenticidade própria, a questão passa da divisão da Igreja e da rejeição do facto ‘protestante’ para a crítica interna perante possíveis relaxações (3, 3-4):
a) Porque é uma luta difícil o estar no mundo sem ser do mundo (3, 3): – corro este risco ao evangelizar ou sou mero espectador? – Rezo pelos que estão na linha da frente ou esqueço-me do apelo premente da Santa? …
b) Por muitas infidelidades (3, 3-4;cf.V 7, 5; 27, 15): – fortaleço o meu interior (3, 4) ou lanço-me a evangelizar de qualquer maneira? – Velo e oro para ser fiel? …
c) Dada a parcialidade do mundo para julgar e a facilidade para condenar (3,4; cf. V 31, 17-18): aceito isto quando me toca, ou afecta-me demasiado? – Evito os juízos ou, pelo contrário, até me exponho a julgar regalo o que é virtude (3, 4; cf. Mt 5, 22)?
d) Oras pelos teus superiores, inclusive os mais chegados: local, provincial (cf. 3,10)?
Nota: estas questões serão aprofundadas nos capítulos 4-18.

5. Também se podem pospor até aos capítulos 33-35 as palavras apaixonadas sobre a Eucaristia de 3, 8; mas não seria conveniente deixar passar, sem mais, essa maneira de falar das outras confissões cristãs (cf. também 1,4): - compreendo o contexto da Santa? – Sou consciente da muita diferença que existe em relação ao actual discurso ecuménico da Igreja Católica? – Formo-me a esse respeito? …

6. Certamente chamou a nossa atenção a oração de 3,7-10 e ainda mais na sua primeira redacção (CE 4): compara com a tua o estilo e conteúdo desta.

7. Dentro de CE 4, 1 aparece não só uma apologia da mulher, mas uma autêntica teologia, cujo ponto de partida é a recta intenção (não pela própria salvação, nem para fazer carreira, etc.: 3,3-5) e cujos fundamentos são: 1) Cristo, a sua maneira de actuar; 2) Maria, os seus méritos; 3) Deus, juiz justo; 4) Situação histórica. – Reparaste na profundidade, não simplesmente a paixão, deste breve parágrafo? Que te parece no seu contexto? – Em que pode contribuir para o nosso ou ao teu em particular? …

A importância da pobreza já se pôs em relevo em Vida 35 e muito mais agora:
a) ao aparecer nestes primeiros capítulos e não no bloco seguinte (4-18);
b) pelo rico fundamento teológico 4 e até sociológico (2, 5-6; cf. V 20, 26-27);
c) pelo relevo dado à experiência pessoal e comunitária (2,1.3.6.7); d) e, entre outras coisas, pelos seguintes matizes em relação a V 35:

8. Não se trata só de não ter renda, mas de “não andar a contentar os do mundo (…) jamais, por artifícios humanos, pretendais sustentar-vos (…) deixai os cuidados da comida” (2, 1) e da esmola (2, 2.4) ou acabareis roubando os pobres (2, 3.9). Enfim, “seria enganar o mundo, fazendo-nos pobres não o sendo de espírito, mas somente no exterior” (2, 3): pensa, revê, ora…

9. “Ele vos há-de sustentar”, ainda que seja por terceiros (2, 1); portanto, confiar em que Ele não falta e confiai também quando aparentemente falha, quando “alguma vez vos faltar” (2, 2); – tenho experiência disto? –, soube vivê-lo assim? …

10. Obviamente, o dito anteriormente não significa que se tenha de viver fiada e desgovernadamente no económico, mas tudo o contrário: é preciso dedicar tempo e energias a cuidá-lo e a formar-se para viver essa verdadeira pobreza de espírito5; portanto, pensa, revê, ora …

11. A propósito de tudo isto, também a Santa criticou a falsa paz que dão as muitas poupanças e a sua incoerência com o destino universal dos bens da terra, embora exclua as suas filhas de dita crítica, devido à sua pobreza 6. Com certeza que muitos de nós e as nossas comunidades temos poupanças sobre cujo uso nos questionamos seriamente: – Partilhamos? – Pensamos maneiras solidárias de poupar e investir? – Estamos atentos ao apelo do papa a participarmos na banca ética 7? …

12. Voltando à Santa – mesmo que as nossas poupanças não sejam muitas –, ela acabou sendo pioneira e especialista numa coisa fundamental para a vida religiosa dos nossos dias, com frequência provida de rendas mais ou menos fixas: a importância de funcionar com orçamentos realistas e que tendam a manter a sobriedade (não a aumentar), como meio de encarnar a pobreza evangélica 8; portanto, pensa, ora, revê…

13. No texto do Caminho insiste-se, além da pobreza no pensamento e palavras (cf. acima nº8), nos vestidos e, sobretudo, na casa, até ao ponto de pedir que, se o edifício chegar a ser sumptuoso, “se torne a cair, que as mate a todas, tendo boa consciência o digo e o pedirei ao Senhor” (CE 2,8). Sem esquecer que se permite a liberdade de certa amplidão, campo e ermidas (2,9) 9: – sinto-me tranquilo neste tema ou interpelado por esta ameaça da Santa? …

14. Também no Caminho se permite guardar de um dia para o outro, o que difere dos nossos santos padres do Carmelo (cf. 2, 7) e de carismas tão actuais como o das Missionárias da Caridade, da M. Teresa de Calcutá. De facto, quando faltam os mínimos para a alimentação, é uma das poucas ocasiões em que a Santa permite às suas monjas contrair dívidas. – Qual a tua opinião? …

15. A Santa Madre impôs o trabalho artesanal às suas filhas, mas nunca permitiu que este se personalizasse, porque o sabia incompatível com a vida contemplativa 10. O Concílio Vaticano II viu conveniente animar toda a vida religiosa em sentido contrário, e a isso responderam generosamente os mosteiros teresianos. No entanto, nalgumas zonas, a diminuição do número de monjas e o envelhecimento das mesmas, torna inviável a manutenção de alguma daquelas opções laborais e cumpre os piores prognósticos da Santa a respeito de apuros, excessos… – Já tinhas pensado nisso? – Tens alguma ideia do que se deve fazer? …

16.Para a pobreza ou para qualquer outro tema, um critério precioso: “Duas horas temos de vida e grandíssimo é o prémio; e mesmo que não houvesse nenhum, a não ser o de cumprir o que nos aconselhou o Senhor, seria já grande paga imitar em alguma coisa a Sua Majestade” (2, 7); pensa, revê, ora…

CAMINHO...

“Não vos peço senão que olheis para Ele”

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Querida Madre Teresa:

Há livros que não resistem dois anos nem duas leituras. Há outros, em troca, que atravessam os séculos e nos acompanham permanentemente. Tal é caso do Caminho de Perfeição, o livro que tu escreveste para as tuas monjas, tomando-as como protótipo de leitores ideais, para nos comunicares a tua experiência e ensinar-nos o teu “modo de oração” (CV 29,7), o que elas aprenderam com tanto êxito (F 4,8) e tu querias que fosse para todos (cf. CV 19,15), convencida como estavas de que “por essa via chegam mais depressa à contemplação (V 4,7).

Hoje também há muitas pessoas que se interessam e perguntam pela oração contemplativa, não tanto pela necessidade de afirmar ou justificar a sua importância quanto pela maneira de chegar a ela, decididas a empreender “esta viagem divina, que é caminho real para o Céu” (CV 21,1), arriscando inclusive perderem-se numa multiforme variedade de ofertas que nem sempre oferecem o que prometem e que tornam mais evidente o que há já alguns anos advertiu um conhecido teólogo: que o problema pastoral mais urgente do nosso tempo é como ensinar o povo a orar.

Por outro lado, aprender a orar não é uma tarefa que dependa de nós, por mais que nos esforcemos em aplicar técnicas e dedicar-lhe horas. Orar é uma realidade que nos precede e nos ultrapassa, é uma presença escondida nas profundidades do coração. Gosto de que, no teu Castelo Interior, no começo das quintas moradas, a tenhas comparado com a parábola evangélica do tesouro escondido e da pérola preciosa (cf. 5M 1,2, Mt 13, 44-46). Tenho imaginado muitas vezes a história daquele homem que tinha arrendado um campo desde havia anos, aonde ia todos os dias e cuja paisagem árida lhe resultava tão familiar que pouco mistério tinha para ele.

Mas, um dia, inesperadamente, quando cavava fundo para arrancar alguma raiz ou remover alguma pedra, descobriu com surpresa aquele tesouro que levava anos junto dele sem sabê-lo. Uma coisa parecida nos pode acontecer com a oração: sentimos a sua chamada, tentámo-la algumas vezes e talvez nos tenhamos desanimado. Costumamos dizer: é difícil, não sei como fazer, não encontro um lugar sossegado, não consigo concentrar-me… O caso é que procuramos o tesouro longe do nosso campo, longe da nossa vida. Não acabamos de acreditar que o tesouro está aí, no fundo do nosso ser, que estamos habitados pela oração.

Este é, na minha opinião, o grande acerto do teu Caminho de Perfeição, o mais interessante do livro e o elemento mais eficaz do teu magistério: que nos ensinas a descobrir a presença orante que nos habita e, consequentemente, a orar de maneira directa e imediata, orando tu mesma na presença de Deus e do leitor; e não porque pretendas com isso dar-nos exemplo, senão porque não se pode falar de Deus sem se falar a Deus mesmo, e porque também não se pode ensinar a orar desde fora desse acto, mas na presença da fonte e da meta da oração, a partir dela, nela e para ela.

Na vida humana, existem realidades que não podem ser captadas desde um ponto exterior a elas, porque afectam e actualizam a totalidade da pessoa: o que é o amor, a fidelidade, a angústia ou a esperança, só se compreendem no acto que as realiza. Não se podem ensinar desde fora desse acto. O mesmo acontece com a oração. A sua possibilidade e o seu sentido só se captam na própria oração. Pode-se falar dela só desde a referência àquilo que está sempre presente no fundo do nosso coração e que o apóstolo Paulo chama “gemidos inefáveis do Espírito (Rm 8,16; 5,5; Gal 4,6). Só desde aí se pode ensinar e aprender a orar.

Neste sentido, e tratando de simplificar as coisas, creio que o método (o “modo” como tu dizes) mais útil para aprender a orar é o que tu própria propões no capítulo 26 do Caminho de Perfeição. Indica-lo bem claro no título: “Vai declarando o modo de recolher o pensamento. Dá meios para isso. Este capítulo é muito proveitoso para os que começam a ter oração”. Lido em voz alta e diante de uma imagem de Cristo, tal como aparece na foto (o Cristo da paz, quadro que deixaste na tua última fundação, a de Burgos), é realmente impressionante e de uma eficácia extraordinária. E é que existe uma tal semelhança entre o texto e a imagem, entre o ouvir e o ver, que ambos se dão as mãos, dizem o mesmo (toda uma pedagogia do olhar) e não são precisos mais recursos para começar a orar.

De igual eficácia são também os outros capítulos que dedicas à exegese do Pai-nosso (CV 27-42), oração que contém em síntese todo o Evangelho (breviarum totius evangelii, lhe chamou Tertuliano, o primeiro comentarista), e que, como tal, é referência obrigatória para todo o tipo de orantes e para todas as etapas do caminho espiritual: “Pasmo de ver como, em tão poucas palavras, está encerrada toda a contemplação e perfeição… todo o modo de oração e de alta contemplação, desde os principiantes na oração mental, até à de quietude e união” (CV 37,1; cf. 42,5). Lendo e orando contigo as palavras do Pai-nosso, descobrimos que não são frases feitas, mas frases por fazer…, que têm mais do que soam e operam a realidade que conotam, que revertem sobre o próprio leitor e têm capacidade para o transformar. Agradeço-te, portanto, por tudo isto e também pela alegria de voltar a ler este ano o Caminho de Perfeição. Porque, se ler é útil, neste caso reler é-o duplamente.

Salvador Ros Garcia

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Convite a ler Caminho de Perfeição

Caminho de Perfeição

Caminho de Perfeição

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Seguindo as directrizes do nosso Capítulo Geral, continuamos com a leitura das Obras da Santa Madre Teresa. Este ano de pastoral (2010-2011), como aí foi indicado, dedicamo-lo à leitura reflectida do Caminho de Perfeição. Para facilitar a sua leitura, apresentamos, embora sucintamente, o ambiente espiritual em que ela viveu e que justifica o historial desta obra que não foi pacífico.

O Caminho de Perfeição é a segunda obra composta por Santa Teresa de Jesus. Ela nasce da conjugação de três quereres: dos seus confessores, dela própria e das suas irmãs do convento por ela fundado.

Depois de ter entregado o Livro da Vida aos seus confessores, estes acharam que ela deve continuar a escrever. Este livro era interessante e de muito proveito para as suas irmãs, mas tal como se encontrava, e dadas as circunstâncias da igreja espanhola, não se podia colocar em mãos das suas freiras. Embora não o tivesse escrito para elas, era pena privá-las de tão valiosas orientações espirituais que o livro continha. Além disso, encontrava-se retido nos arquivos da inquisição. Portanto a solução era escrever outro, de estilo diferente, que recolhesse tudo o que fosse de “proveito para aviso de coisas espirituais” e servisse de código de formação para as suas freiras. Assim o manifesta Teresa numa Conta de Consciência escrita em 1567: “Esta relação foi de sorte que todos os letrados, que a têm visto – que eram seus confessores –, diziam que era de grande proveito para aviso de coisas espirituais, e mandaram-lhe que a trasladasse e fizesse outro livrito para as suas filhas – pois era prioresa – onde lhes desse alguns avisos” (Rel. 4,6).

Tendo em conta o mandato dos confessores, Teresa pôs mãos à obra. Aliás, ela também estava convencida da necessidade de pôr por escrito o carisma com que o Senhor a regalou.

E as suas irmãs, que são conhecedoras do mandato que ela tem dos seus confessores, “pedem-lhe”, “mandam-na”, chegaram mesmo a importuná-la: “Sabendo as irmãs deste Mosteiro de S. José que eu tinha licença... para escrever algumas coisas de oração... têm-me importunado tanto para que lhes diga alguma coisa sobre ela, que me determinei a obedecer-lhes” (Pról. 1).

Teresa é consciente das dificuldades que se lhe deparam. Ela continua a pensar que é “coisa desconcertada eu escrever isto”( ib. 2). Em plena redacção da obra confessará abertamente a “confusão” com que escreve: “Que vergonha é para mim eu dizer-vos que façais caso de coisa minha! O Senhor bem sabe a confusão com que escrevo muito daquilo que escrevo!”(C 25, 4).

Mas Teresa acredita na assistência do Espírito do Senhor, que não lhe tem faltado e no amor das irmãs. Ela não tem dificuldade em acreditar na assistência especial do Senhor, pois já tinha deixado escrito no Livro da Vida: “Esclareceu-me Deus o entendimento, umas vezes com palavras e outras pondo-me diante como o havia de dizer... parece que Sua Majestade quer dizer o que eu não posso nem sei. Isto que digo é inteira verdade...” (V 18, 8).

Depois conta com o amor e a oração das irmãs: “Penso que o grande amor que me têm pode fazer-lhes mais aceite o mau estilo e imperfeito daquilo que eu disser... e confio nas suas orações, pois poderá ser que, por elas, o Senhor seja servido que eu acerte em dizer alguma coisa do que convém”( Pról. 1).

A abertura amorosa das suas irmãs vai fazer com que a palavra nascida da sua experiência seja profundamente comunicativa e esclarecedora. Com esta sua atitude a comunidade começa a ser também parte activa e dialogante na obra que Teresa se dispõe a escrever.

A este amor das irmãs junta-se o amor que Teresa nutre por todas elas: “Sei que não me falta amor e desejo de ajudar naquilo que puder, para que as almas das minhas irmãs vão muito adiante no serviço do Senhor. Este amor, junto com os anos e a experiência que tenho de alguns conventos, poderá ser que sirva para eu atinar” (Pról. 3).

Foram todas estas as razões que moveram Teresa a tomar novamente a pluma e escrever esta nova obra que se chamaCaminho de Perfeição.

Este título não é da sua autoria. Encontra-se nas primeiras páginas da obra, mas é de iniciativa alheia. A Santa revela o conteúdo do autógrafo da seguinte maneira: “Este livro trata de avisos e conselhos que Teresa de Jesus dá às Religiosas, irmãs e filhas suas, dos mosteiros que, com o favor de Nosso Senhor e da gloriosa Virgem Mãe de Deus, Senhora Nossa, tem fundado”( Prol. ).

Embora, como ela diz no mesmo prólogo, o tivesse escrito para as irmãs de S. José de Ávila onde ela se encontrava de prioresa, quando o escreveu, está dirigido a todas as suas irmãs de outros conventos, que já tem em vista.

Santa Teresa redigiu por duas vezes este livro. A primeira sem divisões de capítulos que se encontra na Biblioteca do Escorial e a segunda já dividida em capítulos que está nas Carmelitas Descalças de Valladolide.

Estas duas redacções foram feitas no convento de S. José de Ávila, provavelmente no ano de 1566, depois de terminar oLivro da Vida (finais de 1565) e antes da visita do franciscano Afonso Maldonado ao Carmelo de S. José. Teresa tomou a decisão de o redigir por segunda vez, pelos seguintes motivos apontados pelo P. Tomás Alvarez:

1º. Para lhe dar forma de livro, de mais fácil leitura na sua comunidade;

2º. Para cumprir as indicações feitas pelo teólogo amigo que reviu o manuscrito e riscou numerosas passagens, entre elas a famosa apologia das mulheres no capítulo terceiro;

3º. E para diminuir o estilo coloquial e confidencial da primeira redacção, aligeirando o texto de comparações, de alusões polémicas e de referências à própria experiência religiosa.

Depois de o ter redigido por segunda vez, tendo em conta as sugestões dadas pelo teólogo amigo, teve que o submeter aos teólogos censores que lhe rasuraram numerosas passagens e fizeram com que arrancasse diversas folhas onde ela comparava o jogo de xadrez com a humildade (cap. 16). Teresa teve que arrancar cinco folhas e substituí-las por uma.

P. Jeremias Vechina
In: Flor do Carmelo, n.º 37

Encontro com Teresa

Encontro com Teresa

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Durante o Outono de 1567, São João da Cruz, conhecido então por João de São Matias, conheceu Santa Teresa de Jesus em Medina del Campo. Este recém ordenado sacerdote encontrava-se no meio de uma crise. O seu desejo de Deus, de procurar fazer a Sua vontade, levaram-no à conclusão de que o seu lugar era a Cartuxa.

Encontrou-se com Santa Teresa e ela convenceu-o de que o caminho que ele procurava não era a Cartuxa, mas a sua família religiosa. Ela tinha um plano e uma visão do que seria possível. Ele pôs-lhe uma condição para aderir ao seu plano: que se levasse a cabo sem muita demora. Tenho-me perguntado amiúde se São João da Cruz era consciente do que ia acontecer. Saberia quão diferente poderia chegar a ser a sua vida comparada com a que desejava como cartuxo?

Penso que esse encontro de São João da Cruz com Santa Teresa de Jesus é muito simbólico. Para mim, é-o com certeza. Não creio que o meu “encontro” com Santa Teresa, ou a realização da minha vocação, seja muito diferente de outras vocações ao Carmelo Teresiano. Quando era jovem e contemplava as diferentes ofertas vocacionais, o que me atraiu ao Carmelo Descalço foram as imagens que vi em publicações vocacionais. Muitas vezes, era a imagem de um frade olhando fixamente para o nascer ou o pôr-do-sol, às vezes com o capuz levantado, contemplando o milagre da criação. Ou talvez a imagem de uma capela onde estavam todos os frades em oração ou recitando o ofício divino. Tanto silêncio! Tanta tranquilidade! Foi o que realmente me atraiu. Eu queria vir ao Carmelo para meditar, para chegar a ser contemplativo.

Depois, conheci Santa Teresa, através dos seus escritos. Li então coisas como “pois todas temos de procurar ser pregadoras de obras” (C 15, 6). Ou sobretudo quando Santa Teresa, nas quintas Moradas, em tão alto estado de vida espiritual e comentando sobre alguém que se concentra diligentemente para a oração, diz: “e pensam que aí está todo o negócio. Não, irmãs, não; obras quer o Senhor”. Tenho de confessar que isto foi para mim um desafio. Depois, quando descobri o encontro de São João da Cruz com Santa Teresa pensei para comigo que talvez eu tivesse confundido os Cartuxos com os Carmelitas, pelo menos no que se refere ao que a vida de oração era para o Carmelo de Teresa.

No ano 2000, a Ordem, através de várias editoras da Ordem, publicou as concordâncias dos escritos de Santa Teresa em espanhol. Pouco depois, folheando as concordâncias à procura de outra coisa, dei-me conta do verbo “servir”, quer dizer, “to serve” (em inglês). A lista de entradas ocupa várias páginas. Felizmente, os editores numeraram as vezes que determinadas palavras são usadas. E dei-me conta de que só este verbo é usado 810 vezes por Santa Teresa. Depois, contei o número de vezes em que aparecia a palavra “serviço” – 246 vezes. Umas mil vezes insiste Santa Teresa em que as nossas vidas de carmelitas sejam vidas de serviço… serviço a Deus, serviço à Igreja, serviço à comunidade, serviço ao plano de Deus para o mundo que nos rodeia.

A descoberta deste pequeno pormenor sobre o uso que Santa Teresa faz da palavra “serviço” foi uma grande confirmação do que já tinha aprendido, e muitas vezes resistido, ao “fazer-me” Carmelita. Ponho entre aspas a palavra fazer-me para chamar a atenção. Dou-me conta de que estou ainda em processo e que o principal significado de chegar a ser ou fazer-me é precisamente o serviço que presto. Existem certamente outros tipos e estilos de vida contemplativa. Santa Teresa, no capítulo 5 do Livro das Fundações (o capítulo para as pessoas atarefadas!), começa por dizer: “Há muitos caminhos neste caminho do espírito!” No entanto, é mais do que óbvio que a vida contemplativa sobre a qual escreve Santa Teresa é a que se mostra a si mesma num serviço concreto

Os membros da Ordem Secular que me ouviram falar talvez se lembrem de uma das coisas que constantemente lhes repito: “Ser Carmelita não é um privilégio, mas uma responsabilidade”. A responsabilidade é servir o Senhor, e leva-se a cabo atendendo às necessidades dos nossos irmãos e irmãs na Igreja e no mundo, servindo as nossas famílias e as nossas comunidades. Realmente, impressiona-me que Santa Teresa, a grande mulher que tanto fez em serviço de Deus, encontrasse tanto sentido nas palavras do Evangelho de São Lucas: “Somos servos inúteis. Não fizemos mais do que devíamos fazer” (Lc 17, 10). Espero realmente seguir o seu exemplo e ser capaz de fazer o mesmo.


Aloysius Denney

Capítulo37, 38, 39 e 40


Capítulo 37

Trata dos efeitos que nela ficavam quando o Senhor lhe concedia alguma graça. Junta a isso uma boa doutrina. Diz que devemos estimar e lutar pela aquisição de mais algum grau de glória e que, pelos bens perpétuos, não nos detenhamos ante dificuldade alguma.

1. Custa-me ter de falar de outras graças que o Senhor me tem dado, além daquelas a que já me referi; e mesmo estas últimas são demasiadas para que se possa crer que Ele as concedeu a pessoa tão ruim. Mas, obedecendo ao Senhor que o ordenou e a vossas mercês,1 direi algumas coisas para a glória de Deus. Permita Sua Majestade que alguma alma se beneficie ao ver que, se a alguém tão miserável o Senhor quis favorecer dessa maneira, quanto mais Ele não fará a quem O servir de verdade, animando-se todos a contentar Sua Majestade, que já nesta vida dá tais provas de amor.

2. Em primeiro lugar, deve-se entender que, nesses favores que Deus faz à alma, há mais e menos glória; porque, em algumas visões, a glória, o prazer e a consolação excedem tanto os que o Senhor dá em outras que me espanto com tanta diferença entre deleites ainda nesta vida. Pois acontece de diferirem tanto os gostos e regalos que Deus dá numa visão ou num arroubo que parece não ser possível haver aqui na terra mais a desejar; assim, a alma não o deseja, nem pediria maior contentamento. É verdade que, depois que o Senhor me fez compreender quão grande é a diferença existente no céu entre o que gozam uns e o que gozam outros, bem vejo que também aqui Ele, quando quer, não põe limites nos seus dons.

Assim, eu não queria que houvesse limites no meu serviço a Sua Majestade, desejando empenhar nisso toda a minha vida, todas as minhas forças e a minha saúde, para não perder, por minha culpa, nem um pouco de maior felicidade. Dessa maneira, digo: se me perguntassem se quero ficar na terra até o fim do mundo com todos os sofrimentos nela existentes e depois me elevar um pouco mais na glória, ou se prefiro, sem nenhum padecimento, ir já gozar uma glória um pouco mais baixa, eu com boa vontade tudo padeceria para fruir um pouco mais de compreensão da grandeza de Deus, pois percebo que quem mais O entende mais O ama e mais O louva.

3. Não digo que não me satisfaria nem me consideraria venturosa por estar no céu, ainda que fosse no último lugar, porque, diante do que me fora pre parado no inferno, o Senhor já me faria nisso grande misericórdia, e queira Sua Majestade que eu vá para o Seu reino e que Ele esqueça meus grandes pecados! Digo sim que, embora muito me custasse, eu não queria, se pudesse e se o Senhor me desse o favor de muito trabalhar, perder nada por minha culpa. Pobre de mim que, com tantas culpas, tinha perdido tudo!

4. Deve-se observar também que, a cada graça que o Senhor me concedia, de visão ou revelação, a minha alma obtinha algum grande benefício que, em algumas visões, era imenso. Quando vi Cristo, imprimiu-se em mim Sua grandíssima formosura, que ainda hoje está presente; e, para isso, bastava uma única vez, quando são tantas as vezes em que o Senhor me concede esse favor! Muito lucrei com isso: eu tinha uma enorme falta que muitos danos me causou; quando começava a ver que uma pessoa gostava de mim e tinha afinidade com ela, eu passava a ter tanta afeição que ocupava grande parte do tempo pensando nela. Eu não fazia com a intenção de ofender a Deus, mas gostava de vê-la e de pensar nela, bem como nas suas boas qualidades. Isso era uma coisa tão prejudicial que a minha alma muito perdia com ela.

Depois de contemplar a grande beleza do Senhor, nunca mais vi alguém que, comparado a Ele, me parecesse formoso ou me ocupasse o espírito. Basta--me voltar um pouco os olhos para a imagem que guardo na alma para adquirir uma liberdade que, desde então, me faz ter asco de tudo o que vejo; porque nada faz par com as excelências e graças que vi no Senhor. Não há saber nem prazer que eu considere dignos de estima diante do ouvir uma única palavra dita por aqueles lábios divinos — e com que freqüência as tenho ouvido! Considero impossível — desde que o Senhor, pelos meus pecados, não permita que essa memória se apague — que alguém possa me ocupar o pensamento; basta-me lembrar um pouco deste Senhor para disso ficar livre.

5. Aconteceu-me demonstrar amizade por algum confessor; porque, como os considero verdadeiros representantes de Deus, eu me sentia segura. Além disso, creio que é a eles que mais dedico amizade, pois sempre estimo muito os que me dirigem a alma. Eles, sendo tementes a Deus e servos Seus, receavam que eu me apegasse em demasia a eles, embora santamente, e mostravam desagrado. Isso ocorreu depois de eu passar a estar sujeita a obedecer-lhes, porque antes não tinha tanto afeto por eles. Eu ria comigo mesma ao ver como eles se enganavam, se bem que nem sempre lhes dizia com clareza o ponto até o qual eu me sentia e estava desprendida de tudo. Mas os tranqüilizava, e eles, depois de um maior contato comigo, viam quantas graças eu devia ao Senhor, deixando de lado essas suspeitas, que aliás só se manifestavam no princípio.

Vendo o Senhor e falando com Ele com tanta freqüência, vi brotar em mim um amor muito maior por Ele e uma enorme confiança. Eu percebia que, embora fosse Deus, era Homem, alguém que não se espanta com as fraquezas dos homens, que compreende a nossa vil natureza, sujeita a tantas quedas por causa do primeiro pecado, que Ele viera reparar. Mesmo sendo Ele Senhor, posso tratá-Lo como um amigo, pois Ele não é como os que temos na terra por senhores, que põem todo o seu poderio em manifestações exteriores: marcam horas para que as pessoas lhes falem e determinam quem lhes pode falar. Se quem tem com eles algum negócio é um pobrezinho, mais rodeios, favores e sofrimentos são necessários para que deles se aproximem.

E se se quiser falar com o Rei? Nesse caso, é proibida a entrada de quem é pobre e sem brasões, não havendo alternativa, senão recorrer aos mais íntimos, que por certo não são pessoas que estão acima deste mundo, pois estas falam verdades, não devem nem temem, não são feitas para o palácio. Neste, isso não tem uso, devendo-se calar o que parecer mau, e ninguém sequer se atreve a pensar que algo é mau para não ser desfavorecido.

6. Ó Rei da glória e Senhor de todos os reis, Vosso reino não é uma ar mação de pauzinhos, pois não tem fim! Não se precisa de terceiros para chegar a Vós! Basta perceber Vossa pessoa para logo saber que sois o único a merecer ser chama do de Senhor, pela majestade que mostrais. Não são precisos acompanhantes nem guardas para que se saiba que sois Rei. Aqui na terra, estando só, um rei não é reconhecido como tal, necessitando de todo um aparato exterior para que isso aconteça, pois do contrário ninguém o teria por nada. Isso acontece porque não vem dele a aparência de poderoso, pois a sua autoridade vem de outros.

Ó Senhor meu! Ó Rei meu! Quem poderia descrever agora Vossa Majestade! Não se pode deixar de ver que sois Imperador, por serdes Vós quem sois. Ver Vossa majestade causa assombro; e mais assombra, Senhor meu, ver ao lado dela Vossa humildade e o amor que demonstrais por alguém como eu. Tão logo perdemos o primeiro espanto e temor de ver a Vossa Majestade, de tudo podemos falar Convosco como quisermos, embora nos fique um temor ainda maior de não mais Vos ofender. Isso, porém, não vem do medo do castigo, Senhor meu, pois este nada importa diante do mal que é Vos perder!

7. Esses são os benefícios dessa visão, sem falar de outros grandes efeitos que ela deixa na alma. Quando esta está iluminada, logo sabe se recebe uma graça de Deus pelos benefícios que dela advêm; porque, como eu já disse,2 às vezes o Senhor quer que fiquemos em trevas, sem ver a luz, não sendo pois de admirar que quem, como eu, se vê tão sem virtudes revele temor. Há pouco tempo, aconteceu-me passar oito dias com a impressão de não haver em mim, nem poder haver, conhecimento da minha dívida para com Deus nem recordação das Suas graças.

Fiquei com a alma tão insensível e absorta não sei em quê, nem como — não com maus pensamentos, mas incapaz de voltar-se para os bons —, que ria de mim mesma e me alegrava ao ver a baixeza de uma alma quando Deus não age continuamente nela. A alma, é verdade, percebe que não está sem Ele, pois o que passa não equivale aos grandes sofrimentos que tenho algumas vezes, como já falei.3 Mas, embora lance lenha e faça o pouco que pode, ela não consegue atear o fogo do amor de Deus. Pela grande misericórdia divina, ainda há alguma fumaça para que a alma entenda não estar a chama de todo apagada. Contudo, só o Senhor pode voltar a acendê-la.

Nesse caso, ainda que a alma se mate de soprar e de arrumar a lenha, parece que tudo abafa o fogo ainda mais. Acredito que o melhor é conformar--se de vez com o fato de nada poder por si só e dedicar-se a outras coisas meritórias, como já aconselhei.4 Talvez o Senhor lhe esteja tirando a oração para que ela se ocupe dessas coisas e venha a saber, por experiência, quão pouco é capaz de fazer.

8. O certo é que hoje me consolei com o Senhor, tendo tido o atrevimento de me queixar de Sua Majestade, dizendo-Lhe: “Como, Deus meu, não é suficiente que me mantenhais nesta vida miserável e que eu, por amor a Vós, passe por isso e deseje viver onde tudo são empecilhos para fruir de Vós, tendo de comer, dormir, tratar de negócios e falar com as pessoas? Bem sabeis, Senhor meu, que isso me causa imenso tormento, que padeço por Vos amar; e, no entanto, nos poucos momentos que me restam para me regozijar Convosco, Vós vos escondeis de mim. Como conciliar isso com a Vossa misericórdia? Como pode suportá-lo o amor que me tendes? Creio, Senhor, que se eu pudesse esconder-me de Vós como Vos escondeis de mim, não o consentiríeis, dado o amor que eu penso e creio que tendes por mim. Vós, porém, estais comigo e sempre me vedes… Isso não pode, pois, ser assim, Senhor meu! Eu Vos suplico que reconheçais ser isto magoar aquela que tanto Vos ama.”

9. Aconteceu-me dizer essas e outras coisas, sempre me recordando quão suave era o lugar que estava preparado para mim no inferno diante do que mereço. Mas, por vezes, o amor tanto me desatina que nem sei quem sou e, em sã consciência, faço essas queixas — e o Senhor tudo suporta. Louvado seja tão bom Rei! Que seria de nós se dirigíssemos aos reis da terra semelhantes atrevimentos? Quanto ao rei, não me espanta que não ousemos falar-lhe, pois lhe devemos reverência, bem como aos senhores principescos. Mas o mundo está de tal maneira que não basta uma vida para aprender as etiquetas, novidades e modos de polidez, se é que se quer usar uma parte dela para servir a Deus.

Diante do que se passa, eu me benzo de admiração. Para falar a verdade, quando me encerrei aqui, eu já não sabia lidar bem com o mundo. Leva-se a mal o mínimo descuido em não se tratar as pessoas de maneira muito superior ao que merecem. Tem-se isso por afronta tão grave que é necessário dar satisfações e justificar a intenção quando se age inadvertidamente. E ainda é preciso pedir a Deus que as pessoas as aceitem!

10. Repito que eu por certo não sabia viver, chegando a minha pobre alma a se cansar. De um lado, ela vê que lhe ordenam ter sempre o pensamento ocupado em Deus, devendo mantê-lo Nele para se livrar de muitos perigos. Por outro lado, percebe que não pode se descuidar das coisas do mundo, para não correr o risco de ofender os que têm sua honra posta em melindres. Isso me deixava com muita fadiga, e eu nunca acabava de dar satisfações, já que não podia, por mais que o tentasse, deixar de cometer muitas faltas nessas coisas que, no mundo, são consideradas muito importantes.

E nas Religiões — onde seria justo sermos desculpadas nesses casos —, será verdade que há dispensa quanto a isso? Não, pois dizem que os conventos devem ser lugar de boa educação, e inclusive do seu ensino. O certo é que não posso entender isso. Fico a imaginar se algum santo que disse que os mosteiros deviam ser escola dos que quisessem ser cortesãos do céu não teve as suas palavras deturpadas. Pois não sei como alguém que, por justiça, deve se ocupar continuamente em contentar a Deus e desdenhar o mundo possa se dedicar tanto a agradar aos que nele vivem em coisas tão sujeitas a mudança. Se ao menos fosse possível aprender de uma vez, muito bem; mas, até para o cabeçalho das cartas, já é preciso que haja, por assim dizer, cátedra onde se ensine o que se deve fazer. Porque, quanto a isso, ora se deixa papel de um lado, ora do outro, e, a quem se devia chamar magnífico, deve-se tratar agora por excelência.5

11. Não sei onde isso vai parar, porque ainda não tenho cinqüenta anos6 e, nos que vivi, presenciei tantas mudanças que já não sei viver. O que haverão, pois, de fazer os que nascem agora e viverem muito? Por certo me dão pena as pessoas espirituais que, por algum santo motivo, são obrigadas a viver no mundo, por ser isso uma terrível cruz. Se todas elas pudessem combinar fingir-se de ignorantes e fazer com que os outros as considerassem assim nessas ciências, de muito sofrimento se livrariam.

12. Vejo agora em que tolices me envolvi! Para discorrer sobre as grandezas de Deus, desandei a falar das baixezas do mundo. Pois, se o Senhor me fez o favor de me afastar dele, quero deixá-lo inteiramente; que lidem com ele aqueles que tanto se esforçam para sustentar essas ninharias. Queira Deus que na outra vida, que é imutável, não tenhamos de pagar por elas um alto preço. Amém!

Capítulo 38

Trata de alguns favores que o Senhor lhe fez ao revelar-lhe alguns segredos do céu. Narra outras grandes visões e revelações que Sua Majestade lhe concedeu. Relaciona os efeitos que isso produzia nela e o grande proveito daí resultante para sua alma.

1. Estando uma noite tão doente que queria ser dispensada da oração, peguei um rosário para me ocupar vocalmente, procurando não recolher o intelecto, embora estivesse retirada num oratório. Mas, quando o Senhor quer, pouco valem esses esforços. Mantive-me assim por algum tempo, vindo-me um arroubo de espírito de tamanho ímpeto que não tive como resistir--lhe. Tive a impressão de estar no céu, tendo visto ali, em primeiro lugar, meu pai e minha mãe. E vi coisas tão sublimes — num espaço de tempo breve como o de rezar uma Ave-Maria — que fiquei bem fora de mim, considerando aquilo uma graça grande demais para mim.

Não posso garantir que o tempo tenha sido tão breve; talvez fosse maior, mas a minha impressão era de ser muito pouco. Embora achasse que não, receei que fosse alguma ilusão. Não sabia o que fazer, pois tinha vergonha de levar isso ao meu confessor. Ao que parece, não por humildade, mas por julgar que ele zombaria de mim, dizendo: temos então um São Paulo ou São Jerônimo1 para ver coisas do céu! Justamente por terem esses gloriosos santos passado por coisas assim, era maior ainda o meu temor, e eu só fazia chorar muito, pois achava ser tudo um disparate. Por fim, se bem que muito o sentisse, procurei o confessor, pois jamais ousei omitir alguma coisa, por mais que sofresse em dizê-la, devido ao grande medo de ser enganada. Ele, vendo-me tão aflita, muito me consolou, dizendo-me boas palavras que me tiraram toda a angústia.

2. Com o passar do tempo, o Senhor foi me mostrando mais segredos, o que ainda faz algumas vezes. A alma não pode de maneira alguma ver mais do que lhe é representado, e eu só via, de cada vez, o que Deus queria me mostrar. Porém, via tanto que a menor parcela seria suficiente para deslumbrar e beneficiar muito a alma, levando-a a pouco estimar e considerar as coisas da vida. Eu gostaria de poder explicar um pouquinho do que percebia nessas revelações, mas, ao imaginar como fazê-lo, admito ser impossível.

Só a diferença entre a luz que vemos e a que nos é apresentada nas visões, sendo tudo luz, impede a comparação, pois mesmo o clarão do sol parece apa gado diante do fulgor que há ali. Em outras palavras, a imaginação, por mais sutil que seja, não consegue pintar nem esboçar aquela luz, nem coisa alguma das que o Senhor me apresentava, causando-me uma felicidade cujo caráter su blime está além da descrição. Nesses momentos, todos os sentidos se regozijam em grau tão alto e com tamanha suavidade que as minhas palavras jamais poderiam fazer-lhes jus, razão por que prefiro me calar.

3. Certa feita, fiquei nesse estado por mais de uma hora, tendo o Senhor me mostrado coisas admiráveis, dando-me a impressão de não Se afastar de mim. Ele me disse: Vê, filha, o que perdem os que são contra Mim; não dei xes de lhes dizer isto. Ó Senhor meu, quão pouco aproveitam minhas palavras aqueles que estão cegos diante das Vossas obras se Vossa Majestade não lhes dá luz! Algumas pessoas que a receberam de Vós muito se beneficiam por conhecer Vossas grandezas; mas, como as vêem, Senhor meu, manifestas em pessoa tão ruim e miserável, é um prodígio enorme que alguém tenha acreditado em mim.

Bendito seja o Vosso nome e bendita a Vossa misericórdia, pois ao menos eu constato em minha alma notória melhora. Ela deseja ficar sempre ali e não voltar a viver, visto ser grande o desprezo por tudo o que há na terra infundido em mim. Tudo me parecia lixo, e vi a que baixeza nos submetemos cuidando de coisas passageiras.

4. Quando fazia companhia àquela senhora de quem já falei,2 veio-me certa feita uma crise no coração (porque, como já disse, muito sofri dele, embora já não sofra). Ela, muito caridosa, mostrou-me jóias de ouro e pedras preciosas, pois as tinha de grande valor, especialmente uma de diamantes muito valiosa. Ela pensava que com isso me alegraria; quanto a mim, ria por dentro e tinha compaixão ao ver as coisas que os homens estimam e ao pensar no que o Senhor tem guardado para nós.

Pensei como me seria impossível, mesmo que eu quisesse me convencer, valorizar aquelas coisas, a menos que o Senhor me privasse da lembrança de outras. Para a alma, isso significa um poder tão grande que só quem o possui pode entendê-lo: trata-se do desapego verdadeiro e natural, que vem sem esforço nosso, pois é dado por Deus. Sua Majestade mostra as verdades eternas de tal maneira que a impressão que deixam em nós nos permite ver com clareza que por nós mesmos não poderíamos obter isso, do modo como o adquirimos, em tempo tão curto.

5. Também passei a ter pouco medo da morte, a qual sempre temi antes disso. Hoje, ela me parece coisa facílima para quem serve a Deus, porque, com ela, a alma se vê, num instante, livre deste cárcere e posta em descanso. Esses arroubos de espírito e a revelação de coisas tão sublimes, feitos por Deus, se assemelham, a meu ver, à saída da alma do corpo — ela se vê, num átimo, de posse de todo esse bem. Deixemos as dores do desenlace, pois pouca relevância devemos atribuir-lhes. Os que amarem a Deus de verdade e tiverem desprezado de fato as coisas desta vida devem morrer mais suavemente.

6. Creio que isso também me serviu muito para conhecer a nossa verdadeira pátria e perceber que aqui na terra estamos de passagem; é grande coisa ver o que há por lá e saber onde vamos viver. Porque, para quem vai viver numa terra, é de grande ajuda, para suportar as agruras do caminho, já saber ser ela um lugar onde se vai viver com sossego. Isso também torna fácil considerar as coisas celestiais e fazer que sejam elas o objeto das nossas conversas. Isso é muito valioso. O simples voltar os olhos para o céu põe a alma em recolhimento, porque, como o Senhor quis mostrar-lhe algo do que há ali, ela pensa naquilo que viu. Com muita freqüência, acompanham-me e me consolam os que sei que lá vivem; são esses que verdadeiramente me parecem vivos, pois os daqui levam a vida tão mortos que o mundo inteiro, por assim dizer, não me faz companhia, em especial quando me vêm aqueles ímpetos.

7. Tudo o que vejo com os olhos do corpo me parece sonho e farsa. O que já vi com os da alma é aquilo que ela deseja; e, como se vê longe dali, considera esta vida a morte. Enfim, é enorme a graça que o Senhor dá a quem permite tais visões; estas trazem um enorme proveito, ajudando muito a alma a carregar sua pesada cruz, já que aqui nada a satisfaz e tudo a aborrece. Se o Senhor não permitisse que nos esquecêssemos das coisas sublimes, embora voltemos a nos lembrar delas, não sei como seria possível viver.

Bendito e louvado seja Deus para sempre! Queira Sua Majestade, pelo sangue que o Seu Filho derramou por mim, já que desejou que eu visse alguma coisa de bens tão grandes e começasse a fruir deles de algum modo, que não me aconteça o mesmo que a Lúcifer, o qual, por sua própria culpa, tudo perdeu. Que Ele, por quem é, não o permita! Não é pouco o temor que tenho algumas vezes, embora seja muito comum que a misericórdia de Deus me dê a segurança de que, tendo Ele me tirado de tantos pecados, não vai querer negar-me a Sua mão para que eu me perca. Suplico a vossa mercê que sempre Lhe peça isso.

8. Mas as graças de que falei não são, a meu ver, tão grandes quanto a que vou relatar agora; digo-o por causa dos grandes efeitos benéficos que ela me causou, destacando-se a grande força que infundiu na alma. Na verdade, considerada por si mesma, cada uma das graças tem tal valor que não é possível compará-las entre si.

9. Certo dia, na véspera do Espírito Santo,3 fui depois da missa a um lugar bem afastado, onde rezava muitas vezes, e comecei a ler num Cartusiano4 sobre essa festa. Quando cheguei aos sinais que devem ter os principiantes, os experientes e os que alcançaram a perfeição para compreenderem se o Espírito Santo está com eles, e tendo lido sobre esses três estados, tive a impressão de que, pelo que podia perceber, Deus, pela Sua bondade, sempre estava comigo.

Comecei a louvá-Lo, lembrando-me de que, da outra vez em que tinha lido o referido trecho, eu estava bem destituída de tudo aquilo — pois isso eu via muito bem —, ao passo que agora sucedia o contrário. Reconheci ser muito grande o favor que o Senhor me fizera. Assim, passei a considerar o lugar que, pelos meus pecados, tinha merecido no inferno; e entoei muitos louvores a Deus, pois me parecia que a minha alma, de tão mudada, mal podia ser reconhecida.

Quando eu fazia essas considerações, veio-me um ímpeto imenso cuja causa não percebi; parecia que a alma queria sair do corpo, não cabendo mais em si nem se achando capaz de esperar tanto bem. Era um ímpeto tão excessivo que eu não o podia controlar, sendo, pois, distinto dos outros. Eu não entendia o que se passava na alma nem o que ela desejava para estar tão alterada. Reclinei-me, pois nem sentada conseguia ficar, já que me faltava toda a força natural.

10. Estando nisso, vejo sobre a minha cabeça uma pomba, bem diferente das de cá, porque não tinha penas e exibia asas de umas conchinhas que lançavam para todos os lados um grande resplendor. Ela era maior do que as pombas comuns, e pareceu-me ouvir o ruído que fazia com as asas. Isso durou talvez o espaço de uma Ave-Maria. A alma já estava de tal maneira que, perdendo-se de si,5 não mais viu a pomba. Na presença de tão bom Hóspede, o espírito se acalmou. A meu ver, a graça tinha sido tão maravilhosa que o desassossegara e abismara. Mas, assim que começou a fruí-la, ele perdeu o medo e, com a felicidade, aquietou-se, ficando em êxtase.

11. Foi grandíssima a glória desse arroubo. Passei o resto da Páscoa tão abobada e estonteada que não sabia o que fazer, nem como cabia em mim tão grande favor e graça. Com o grande gozo interior, eu, por assim dizer, não ouvia nem via. A partir daquele dia, percebi ter tido um grande aproveitamento, tendo aumentado muito o amor de Deus e ficado muito mais fortalecidas as virtudes. Bendito e louvado seja Ele para sempre. Amém.

12. Em outra ocasião, via a mesma pomba acima da cabeça de um padre da Ordem de São Domingos.6Desta feita, tive a impressão de que os raios e resplendores das asas se estendiam muito mais. Tive a revelação de que ele atrairia muitas almas para Deus.

13. De outra vez, vi Nossa Senhora pondo um manto muito branco sobre o Presentado dessa mesma Ordem,7 de quem tenho falado algumas vezes. Disse-me Ela que, pelo serviço que ele Lhe tinha prestado ao ajudar a fundar esta casa, lhe dava aquele manto como sinal de que doravante manteria a sua alma limpa e não a deixaria cair em pecado mortal. Tenho para mim que isso de fato ocorreu; porque poucos anos depois ele morreu, e a vida que viveu teve tanta penitência e a morte, tanta santidade que, pelo que se pode saber, não há por que duvidar.

Um frade que tinha assistido à sua morte me contou que, antes de expirar, ele disse que tinha Santo Tomás a seu lado. Ele faleceu com grande gozo e vontade de sair deste desterro.8 Ele me tem aparecido algumas vezes, coberto de glória, e dito algumas coisas. Era tão dedicado à oração, quando de sua morte, que, embora tivesse desejado não fazê-la, devido à grande fraqueza em que estava, não o podia, pois tinha muitos arroubos. Pouco antes do evento, enviou-me uma carta perguntando que meios haveria de empregar, porque, assim que acabava de dizer missa, ficava muito tempo em êxtase sem poder evitá-lo. No fim, o Senhor lhe deu a recompensa pelo muito que O tinha servido por toda a vida.

14. Do reitor9 da Companhia de Jesus, a quem mencionei algumas vezes, tenho visto algumas coisas das grandes graças que o Senhor lhe dava, que não narro aqui para não me estender. Certa feita, ele passou por extrema tribulação, sendo muito perseguido e vendo-se deveras aflito. Um dia, quando eu ouvia missa, vi Cristo na cruz no momento da elevação da hóstia. Cristo me disse algumas palavras destinadas a ele, para consolá-lo e preveni--lo do que estava por vir, lembrando-lhe o que Ele tinha padecido em seu favor e advertindo-o de que se preparasse para sofrer. Isso muito o consolou e animou, tendo tudo ocorrido tal como o Senhor me disse.

15. Também tenho visto grandes coisas dos membros da Ordem desse padre, a Companhia de Jesus, e de toda a Ordem junta. Algumas vezes, eu os vi no céu, com bandeiras brancas nas mãos, tendo visto também outras coisas deles que causam muita admiração. Por isso, tenho enorme veneração por essa Ordem, tanto porque me relaciono muito com eles como por ver que a sua vida corresponde ao que o Senhor me tem falado sobre eles.

16. Uma noite, estando eu em oração, o Senhor começou a me dizer algumas palavras, fazendo-me recordar de quão má tinha sido a minha vida, o que me infundiu grande confusão e pesar. Porque essas palavras, embora não sejam ditas com rigor, provocam mágoa e pena a ponto de me desfazerem. Uma única palavra dessas nos permite conhecer a nós mesmos de maneira muito melhor do que o conseguiríamos em muitos dias de consideração da nossa miséria, pois cada um contém em si um cunho de verdade que não se pode contestar.

Ele me representou as afeições que eu tivera outrora com tanta vaidade, dizendo-me que eu deveria ter por grande graça a que me concedia ao querer e admitir que Lhe fosse dedicada uma amizade como a minha, antes tão mal empregada. Em outras ocasiões, fez-me recordar a época em que eu parecia ter por honra contrariar a Sua. Em outras, ainda, instou-me a me lembrar do que eu Lhe devia, porque, quando me concedia graças, maior era o golpe que Ele recebia. Quando cometo alguma falta, o que não é incomum, Sua Majestade me infunde tal luz para que eu a perceba que me deixa, por assim dizer, desfeita. Quando me acontecia ser repreendida pelo confessor e procurar me consolar na oração, nela encontrava a verdadeira repreensão.

17. Voltando ao que dizia:10 o Senhor começou a me trazer à lembrança minha vida ruim, e pensei, debulhada em lágrimas, que Ele, já que, na minha opinião, eu nada tinha feito, estava querendo me fazer algum favor. É que, com muita freqüência, recebo uma graça particular do Senhor depois de me aniquilar interiormente. Creio que o Senhor faz assim para que eu veja bem que estou muito longe de merecê-la.

Pouco depois, o meu espírito foi tomado por tal arrebatamento que senti estar ele quase todo fora do corpo, ou, ao menos, eu não percebia que ele estivesse unido ao corpo. Vi a Humanidade Sacratíssima com uma glória excessiva que eu jamais experimentara. Ele se manifestou, de modo admirável e claro, repousando no seio do Pai. Não sei dizer como foi, porque, sem ver, senti-me na presença daquela divindade. Foi tão forte o abalo que passei muitos dias, pelo que me lembro, sem poder voltar a mim, sempre com a impressão de trazer presente aquela majestade do Filho de Deus, mas de uma maneira diferente da primeira. Essa presença, por mais breve que tenha sido, fica tão impressa na imaginação que não se apaga por algum tempo, resultando daí um grande consolo e muito proveito.

18. Voltei a ter essa visão outras três vezes. Trata-se, a meu ver, da mais sublime visão que o Senhor me permite ter, trazendo consigo enormes benefícios. Ela parece purificar por inteiro a alma, afastando-nos dos nossos sentidos. É uma grande chama que parece abrasar e destruir todos os desejos da vida. Eu, graças a Deus, já não punha desejos em coisas vãs; nessas ocasiões, contudo, ficou ainda mais claro que tudo é vaidade e que de nada valem as grandezas da terra. É um grande ensinamento que leva os nossos desejos à verdade pura; deixa impressa uma reverência que não sei elucidar, mas que muito difere de tudo quanto se pode alcançar aqui. A alma fica muito abismada ao ver como se atreveu, e como outros podem se atrever, a ofender uma Majestade tão sublime.

19. Já falei dos efeitos das visões e de outras coisas, tendo afirmado também11 que há maior ou menor aproveitamento. O desta última visão é enorme. Depois disso, ao me aproximar para comungar, eu me lembrava da imensa Majestade que vira e me dava conta de que era Ele que estava no Santíssimo Sacramento, o que fazia os meus cabelos se arrepiarem e me dava a impressão de estar toda desfeita. Ainda mais que em muitas ocasiões o Senhor ainda permite que eu O veja na hóstia.

Ó Senhor meu! Se não encobrísseis Vossa grandeza, quem se atreveria a unir tantas vezes com uma tão grande Majestade uma coisa tão suja e miserável? Bendito sejais, Senhor! Louvem-Vos os anjos e todas as criaturas, pois assim arranjais as coisas de acordo com a nossa fraqueza, para que, fruindo de graças tão soberanas, não fiquemos espantados diante de Vosso grande poder a ponto de não nos atrevermos sequer a nos regozijar com elas, como pessoas fracas e miseráveis.

20. Poderia acontecer conosco o que se passou com um lavrador — e tenho certeza de ser isso verdade. Ele encontrou um tesouro, vendo-se, de repente, possuidor de riquezas que em muito superavam a sua avareza. Não sabendo como aproveitá-las, ficou com tamanha aflição e preocupação que aos poucos definhou e terminou por morrer. Se tivesse achado o tesouro não todo junto, mas em parcelas, ele teria ficado mais contente do que quando era pobre e não teria perdido a vida.

21. Ó riquezas dos pobres! Como sabeis admiravelmente sustentar as almas! E, sem que elas vejam tão grandes riquezas, pouco a pouco as ides mostrando! Assim, quando vejo, desde aquela visão, uma tão grande Majestade oculta em coisa tão pequena como uma hóstia, não posso deixar de me admirar com tão grande sabedoria. Nem imagino como ousaria me aproximar do Senhor se Ele, que me deu e ainda me dá muitas graças, não me infundisse força e coragem.

Sem Ele, eu também não poderia disfarçar a minha admiração nem me impedir de dizer em altos brados tão grandes prodígios. Pois que sente uma miserável como eu, cheia de abominações e que com tão pouco temor de Deus tem desperdiçado sua vida, ao ver aproximar-se de si este Senhor de tão imensa majestade quando Ele quer que minha alma O veja? Como pode tocar aquele corpo gloriosíssimo, cheio de pureza e carregado de piedade uma boca que tantas palavras proferiu contra Ele? O amor que aquele rosto tão formoso revela com tamanha ternura e afabilidade traz à alma muito mais mágoas e aflições por não tê-Lo servido do que temor da Majestade que nele vê. Mas que poderia eu ter sentido nas duas vezes em que vi o que vou contar?12

22. É certo, Senhor meu e glória minha, que tenho dito que, de alguma maneira, nessas grandes aflições que a minha alma sente tenho feito algo para Vos servir. Ai de mim, que já não sei o que digo, pois quase já não sou eu quem escreve isto! Estou muito perturbada e quase fora de mim, por ter trazido de volta à memória essas coisas. Caso esse sentimento viesse de mim, eu bem poderia, Senhor meu, afirmar ter feito algo por Vós. Como nada fiz, visto que nem um único bom pensamento pode existir se não o dais, eu sou a devedora, Senhor, e Vós, o ofendido.

23. Indo comungar, vi com os olhos da alma,13 com maior clareza do que com os do corpo, dois demônios deveras abomináveis. Tive a impressão de que, com os seus chifres, mantinham presa a garganta do pobre sacerdote. E, na hóstia que ia receber, vi meu Senhor, com a majestade que descrevi, posto naquelas mãos, que percebi com clareza serem transgressoras, compreendendo que aquela alma estava em pecado mortal. Que seria, Senhor meu, ver Vos sa formosura entre figuras tão abomináveis? Elas estavam como que ame drontadas e espantadas diante de Vós, e creio que de boa vontade teriam fugido se Vós lhes tivésseis permitido.

Isso me provocou tamanha perturbação que não sei como pude comungar, e fui tomada de grande temor, pensando que, se fosse visão de Deus, Este não me permitiria ver o mal que se instalara naquela alma. O Senhor me disse que rogasse por ele e que permitira semelhante coisa para que eu enten desse que força tinham as palavras da consagração e visse que, por pior que seja o sacerdote que as pronuncia, Deus está sempre ali; disse também que o fizera para que eu conhecesse Sua grande bondade, que se põe nas mãos do inimigo só para o meu bem e o de todos.

Vi com nitidez que os sacerdotes estão mais obrigados a ser bons do que os outros e que é uma coisa terrível receber o Santíssimo Sacramento indignamente. Dei-me conta também de que o demônio é senhor da alma que está em pecado mortal. Essa visão me trouxe inúmeros benefícios e fez-me perceber com profundidade o quanto eu devia a Deus. Bendito seja Ele para sempre!

24. Em outra ocasião, ocorreu um fato semelhante que me deixou com imenso terror. Eu estava num certo lugar onde morrera certa pessoa que vivera muito mal por muitos anos, segundo me disseram. Antes de morrer, contudo, passara dois anos enfermo e, ao que parece, se corrigira em algumas coisas. Morreu sem confissão, mas, mesmo assim, não me pareceu que fosse ser condenado. Enquanto o seu corpo era amortalhado, vi muitos demônios o agarrarem, parecendo divertir-se com ele, além de torturá-lo. Isso me encheu de grande pavor, pois eles o passavam uns aos outros com grandes garfos. Quando vi que ele seria enterrado com as mesmas honras e cerimônias concedidas a todos, fiquei pensando na bondade de Deus, que não quisera que aquela alma fosse difamada, deixando encoberto o fato de ela ser Sua inimiga.

25. Fiquei meio atordoada com isso. Durante o Ofício, não vi nenhum demônio; mais tarde, quando o corpo foi sepultado, era tão numerosa a legião demoníaca que o cercava que quase perdi os sentidos, sendo preciso muita determinação para tudo dissimular. Considerei o que fariam com aquela alma se assim dominavam o triste corpo. Quem dera o Senhor permitisse que todos os que estão em mau estado vissem, como eu, aquela coisa horripilante, pois creio que isso seria um grande estímulo para que vivessem bem. Tudo isso me faz ver ainda mais o que devo a Deus e aquilo de que Ele me livrou. Até falar disso com o meu confessor, fiquei muito receosa, pensando se não seria ilusão do demônio para difamar uma alma considerada tão cristã. Na verdade, embora não tenha sido ilusão, sempre tenho temor quando me recordo.

26. Já que comecei a falar de visões de pessoas mortas, quero contar algumas coisas que o Senhor me mostrou de algumas almas. Limitarei os exemplos para não me alongar e porque não vejo muito proveito em fazê-lo.

Disseram-me que morrera um ex-Provincial nosso, na época em outra Província, com quem eu tinha tido relações e a quem devia alguns favores.14 Era pessoa muito virtuosa. Ao saber de sua morte, fiquei muito perturbada, pois temi pela sua salvação, já que ele tinha sido prelado durante vinte anos, o que sempre me inspira temor, pois me parece muito perigoso o encargo de zelar por almas. Com extrema aflição, fui a um oratório. Ofereci em seu be nefício todo o bem que eu fizera em minha vida, que não era muito, di­zendo ao Senhor que suprisse com os seus méritos o que aquela alma precisava para sair do purgatório.

27. Quando eu estava pedindo isso ao Senhor da melhor maneira que podia, pareceu-me ver o prelado sair da terra, do meu lado direito, e subir ao céu com enorme alegria. Embora fosse bem velho, vi-o com uns trinta anos ou menos, tendo grande resplendor no rosto. Essa visão foi muito breve, mas me trouxe consolação tão extrema que nunca mais sofri pela sua morte, mesmo diante da aflição de muitas pessoas por ele, que era muito querido.

Era tamanho o consolo que invadia minha alma que eu em nenhum momento duvidei de ser boa a visão, isto é, eu tinha certeza de não se tratar de ilusão. (Quando isso aconteceu, não se tinham passado quinze dias de sua morte.) Fiz que o encomendassem a Deus, e também me dediquei a isso, mas não com o fervor com que o teria feito se não tivesse tido aquela visão; porque, se o Senhor me mostra alguma alma assim e depois desejo encomendá--la a Ele, tenho a impressão de dar esmola a um rico. Depois, porque ele morreu bem longe daqui, eu soube da morte que Deus lhe deu; foi de tamanha edificação que todos ficaram admirados com a sabedoria, as lágrimas e a humildade com que ele terminou seus dias.

28. Morrera na casa uma monja, grande serva de Deus,15 há mais ou menos um dia e meio. Durante o Ofício de Defuntos, rezando em sua intenção no coro, eu estava de pé para dizer um versículo com outra monja. Estando no meio, tive a impressão de ver a alma sair das profundezas da terra, no mesmo lugar da visão anterior, e ir para o céu. Essa visão não foi imaginária, como a do Provincial, mas das que não têm imagem, de que já falei,16 que deixam tão pouca dúvida quanto as imaginárias.

29. Morreu também no mesmo convento outra monja. Ela vivera enferma por dezoito ou vinte anos; era muito serva de Deus, jamais faltava ao coro e tinha muitas virtudes. Eu tinha certeza de que lhe sobrariam méritos e de que, tendo passado por tantas enfermidades, não entraria no purgatório. Quando rezava as horas canônicas, antes do seu enterro, passadas pouco mais de quatro horas da morte, percebi que também ela ia para o céu.

30. Estando num colégio da Companhia de Jesus, às voltas com as grandes dores da alma e do corpo que por vezes tenho, eu estava num estado que, segundo me parece, me impedia de ter um único bom pensamento.17 Tinha morrido naquela noite um irmão da casa.18 Quando o encomendava a Deus, como podia, e ouvindo missa em sua intenção rezada por um padre da Companhia, caí em profundo recolhimento e o vi subir ao céu, com muita glória, acompanhado do Senhor. Vi ser aquilo uma graça particular de Sua Majestade.

31. Um frade da nossa Ordem,19 muito bom religioso, estava com grave enfermidade. Durante a missa, entrei em recolhimento e vi que ele morrera e subia ao céu sem passar pelo purgatório. Mais tarde, eu soube que ele falecera na hora em que o vi. Eu me espantei por ele não ter passado pelo purgatório; percebi que, como tinha sido frade e correspondido à sua profissão, aproveitara as Bulas da Ordem para evitar o lugar de expiação.20 Não sei por que entendi assim; creio que foi porque o fato de ser religioso não se traduz por envergar o hábito, isto é, não basta usá-lo para usufruir do estado de maior perfeição que é ser frade.

32. Não vou mais falar dessas coisas, porque, como eu disse,21 não há razão para tal, muito embora sejam muitas as vezes que o Senhor me concede vê-las. Mas, em todas que vi, nenhuma alma deixou de entrar no purgatório, pelo que entendi, exceto a desse padre, a do santo Frei Pedro de Alcântara e a do padre dominicano de que falei.22 De algumas almas, o Senhor quis me mostrar os graus de glória que têm, revelando-me os lugares em que estão. É grande a diferença que há entre umas e outras.23


cap.39-ss

Capítulo 39

Continua a tratar das grandes graças que o Senhor lhe tem concedido. Afirma que Ele lhe prometeu fazer pelas pessoas o que ela Lhe pedisse. Fala de algumas ocasiões especiais em que Sua Majestade fez esse favor.

1. Estando eu, certa vez, importunando muito o Senhor para que fizesse uma pessoa — a quem eu devia obrigações e de quem tinha pena — recuperar a visão, quase toda perdida, receei que, devido aos meus pecados, o Senhor não me ou visse. Ele me apareceu como de outras vezes,1 e começou a me mostrar a chaga da mão esquerda, tirando com a direita um grande cravo que estava nela. Parecia-me que, ao lado do cravo, tirava carne. Ele me deixava perceber a grande dor que sentia, o que me deixava muito condoída. Disse-me que, tendo suportado aquilo por mim, melhor faria o que eu Lhe pedisse,prometendo-me que não deixaria de fazer o que eu Lhe pedisse, pois sabia que eu só pediria o que fosse conforme à Sua glória, e que por isso atenderia à minha súplica daquela hora.

Ele me mostrou que, mesmo quando eu não O servia, nunca deixara de atender ao que eu Lhe pedia, atendendo às minhas súplicas para além do que eu sabia pedir, e que o faria muito melhor agora, pois tinha certeza do meu amor. Portanto, que eu não duvidasse de Suas promessas. Creio que em menos de oito dias o Senhor restituiu a visão àquela pessoa. O meu confessor logo o soube. Pode ser que isso não se devesse às minhas orações; mas, como tinha tido essa visão, eu fiquei com a certeza de que Ele me fizera esse favor e Lhe dei muitas graças.

2. Em outra ocasião, uma pessoa estava muito mal de uma dolorosa enfermidade que, por não conhecê-la, não nomeio aqui.2 Ela sofria há dois meses dores tão insurpotáveis que quase se despedaçava. Meu confessor, que era o Reitor3 de quem tenho falado, foi vê-la; ele ficou muito angustiado e disse-me que não deixasse de ir vê-la, pois era pessoa a quem eu podia visitar, um parente meu. Fui e tive tamanha piedade que comecei a pedir de modo importuno pela sua saúde ao Senhor. Vi claramente, sem nenhuma dúvida, a graça que me foi concedida; porque, no dia seguinte, a pessoa estava totalmente livre da dor.

3. Eu estava certa feita com enorme pesar, pois sabia que uma pessoa a quem devia muitas obrigações queria fazer uma coisa contra Deus e contra sua própria honra, já estando muito determinada a isso. Era tamanha a minha aflição que eu não sabia o que fazer; parecia já nada haver que a demovesse. Supliquei a Deus que a fizesse mudar de opinião, com toda a sinceridade, mas, enquanto não O via, a minha dor não se aliviava. Nesse estado, fui a uma capela bem afastada,4 pois há várias neste mosteiro, e, estando numa onde Cristo está atado à coluna, roguei-Lhe que me concedesse essa graça. Ouvi-O falar-me em voz muito suave, muito semelhante a um murmúrio. Eu me arrepiei toda, pois isso me deixou assombrada. Eu queria compreender o que Ele me dizia, mas foi tamanha a rapidez que não o pude.

Passado o assombro inicial, que foi curto, fiquei com um sossego, um gozo e um deleite interior tamanhos que me espantei com o fato de o mero ouvir uma voz (pois eu a ouvi, e com os ouvidos corporais, sem entender palavra) produzir tal efeito na alma. Assim, concluí que o que eu pedira seria atendido, e toda a angústia que eu sentia se dissipou, como se o meu desejo já estivesse realizado, como depois o foi. Contei isso a meus confessores, que, na época, eram dois religiosos muito instruídos e servos de Deus.5

4. Veio ao meu conhecimento que uma pessoa que estava decidida a servir muito verdadeiramente a Deus e que tivera oração por alguns dias, tendo recebido de Sua Majestade muitas graças, abandonara a oração por causa de certas situações bem perigosas nas quais se envolvera e de que ainda não se afastara. Isso me infundiu um imenso pesar, por ser ela pessoa a quem eu muito devia e queria. Creio que passei mais de um mês suplicando a Deus incessantemente que a voltasse para si.

Estando um dia em oração, vi um demônio perto de mim; ele, com muita raiva, despedaçou uns papéis que tinha na mão. Isso me deu grande consolo, pois me pareceu que o que eu pedira fora feito. E assim foi, pois mais tarde soube que a pessoa se confessara com grande contrição e passara a se dedicar a Deus com tanta fidelidade que, espero em Sua Majestade, há de avançar sempre muito. Bendito seja Ele por tudo. Amém.

5. Acontece muitas vezes de Nosso Senhor tirar almas de pecados graves e levar outras a uma maior perfeição devido a súplicas minhas. No tocante a tirar almas do purgatório e outras coisas especiais, são tantas as graças que o Senhor me concede, mais em termos da saúde das almas do que da dos corpos, que seria tedioso contá-las todas. Isso é uma coisa notória, havendo inúmeras testemunhas. Logo depois que isso acontecia, eu ficava muito envergonhada, pois não podia deixar de crer que o Senhor o fazia atendendo à minha oração — sem falar em Sua bondade, que é o principal. Mas são tantos os fatos, e tão conhecidos por outras pessoas, que não me aflijo em crer nisso e louvo Sua Majestade. Fico, no entanto, confusa ao ver que Lhe devo mais; isso, a meu ver, faz crescer o desejo de Servi-Lo e de avivar o amor que Lhe tenho.

O que mais me espanta é que, quando o Senhor percebe que as coisas que peço não convêm, por mais que eu queira e me esforce, não posso pedi--las com a mesma força, o mesmo zelo e o mesmo favor com que peço outras coisas que Sua Majestade me concede. Sinto poder pedir muitas vezes e com insistência favores que o Senhor me faz; quando não observo bem as coisas, Ele as apresenta a mim para que eu as distinga.

6. É grande a diferença entre esses dois modos de pedir, e não sei bem como explicar. Porque certas coisas, embora eu peça (pois não deixo de me esforçar ao suplicá-las ao Senhor, mesmo que não sinta o fervor que há em outras e mesmo que o assunto muito me toque), me trazem a língua como que travada, e eu, embora queira falar, não o consigo e, ainda que o faça, percebo não ser entendida. Em outras, é como se eu falasse clara e distintamente a quem vejo que me ouve de boa vontade. Aquelas são pedidas como que em oração vocal, por assim dizer; estas, numa contemplação tão sublime que o Senhor se mostra de uma maneira que nos faz ver que nos entende, que Se alegra com o nosso pedido e que vai nos conceder a graça.

Bendito seja Ele para sempre, que tanto dá e tão pouco recebe de mim. Porque, Senhor meu, que faz quem não se desfaz por inteiro por Vós? E quanto, quanto, quanto — eu podia repetir mil vezes — me falta para isso! Só por isso eu não devia querer viver, embora haja outras causas, pois não vivo de acordo com o que Vos devo. Com quantas imperfeições me vejo! Com que relaxamento em Vosso serviço! Certo é que, algumas vezes, eu gostaria de estar sem sentidos para não perceber tanto mal em mim. Que Aquele que tudo pode o remedie!

7. Estando eu na casa daquela senhora de que já falei,6 era constante a necessidade de sempre levar em conta a vaidade presente em todas as coisas da vida, pois eu era muito estimada e festejada, e porque me ofereciam muitas coisas a que eu podia me apegar se pensasse em mim mesma. Eu, no entanto, pensava Naquele que tem a verdadeira visão de tudo, para que Ele não me negasse a Sua mão…

8. Por falar em “verdadeira visão”, lembro-me dos grandes sofrimentos que passam as pessoas a quem Deus mostra o que é a verdade ao se envolverem com as coisas na terra, onde a verdade está tão encoberta, como me disse uma vez o Senhor. Muitas coisas que escrevo aqui não vêm da minha cabeça, sendo ditas por esse meu Mestre celestial. Em especial, quando declaro: “Ouvi isto” ou “Disse-me o Senhor”. Tenho muito cuidado para não pôr nem tirar uma única sílaba. Quando não me lembro bem de tudo, eu escrevo como se eu mesma tivesse dito, bem como porque às vezes eu mesma disse. Não digo que o que é meu seja bom, pois sei que não há em mim o que o seja; eu assim classifico o que o Senhor, sem que eu o mereça, me transmite. Por isso, considero “dito por mim” o que não me foi permitido ouvir em revelação.

9. Mas ai, Deus meu! Quantas vezes desejamos, nas coisas espirituais, fazer nossos próprios julgamentos, distorcendo a verdade, como se tratássemos de coisas do mundo! Que pretensão a nossa, querendo medir o nosso aproveitamento pelos anos em que nos dedicamos à oração, como se quiséssemos impor limites Àquele que dá ilimitadamente os Seus dons quando quer, e que pode conceder, em meio ano, mais a uma alma do que a outra em muitos! Eu tenho visto isso tantas vezes em tantas pessoas que me abismo de que alguém possa duvidar.

10. Creio que não se enganará nisso quem tem o dom de discernir espíritos e recebeu do Senhor a verdadeira humildade. Quem assim é avalia pelos efeitos, pela determinação e pelo amor, recebendo do Senhor luz para fazê--lo. Considera o crescimento e o aproveitamento das almas, e não os anos, pois pode ter alcançado em meio ano mais do que outro em vinte, já que, como eu disse, o Senhor dá a quem quer e a quem melhor se dispõe a receber.

Vejo agora chegar a esta casa umas moças bem novas;7 mal Deus as tocou, dando-lhes um pouco de luz e de amor — isto é, mal provaram os regalos que Ele brevemente lhes concedeu —, elas logo corresponderam a Ele e não viram impedimentos, porque, desdenhando refeições, elas se trancam em casa, sem renda, como quem só avalia a vida nos termos Daquele por quem sabem ser amadas. Deixam tudo, não querem ter vontade e não temem se descontentar com tanta clausura e austeridade. Juntas, oferecem-se a Deus em sacrifício.

11. Com grande boa vontade reconheço que, nesse aspecto, elas têm vantagens sobre mim. E eu devia ter vergonha diante de Deus; o que Sua Majestade não conseguiu comigo na multidão de anos desde que comecei a ter oração e desde que Ele começou a me fazer graças consegue delas em três meses — e, em alguns casos, até em três dias —, fazendo-lhes muito menos favores do que a mim, embora lhes pague com generosidade. Elas, sem nenhuma dúvida, não estão descontentes com o que têm feito por Ele.

12. Para que nos humilhássemos, eu gostaria que nos lembrássemos dos muitos anos que temos de profissão e que as pessoas têm de oração; façamos isso com esse fim, e não para afligir os que num curto tempo avançam muito, fazendo-os voltar atrás para seguir o nosso passo, nem obrigar os que voam como águias, com as graças que Deus lhe concede, a andar como frangos amarrados. Pelo contrário, voltemos os olhos para Sua Majestade e, se virmos essas pessoas com humildade, deveremos deixá-las soltas, pois o Senhor, que tantos favores lhes faz, não as deixará cair.

Elas se entregam a Deus baseadas na verdade da fé que conhecem. E não havemos nós de entregá-las a Ele, em vez de preferir medi-las pelas nossas medidas, avaliá-las de acordo com o nosso pouco ânimo? Não vamos agir assim. Se não alcançamos os grandes efeitos que ocorrem nelas nem a sua determinação — que sem experiência mal podemos entender —, humilhemo--nos em vez de condená-las. Porque, sem isso, parecemos visar ao bem do próximo e terminamos por perder o nosso, deixando passar a ocasião que o Senhor nos proporciona para nos humilhar e ver o que nos falta. Essas almas devem estar muito mais desapegadas do mundo e unidas a Deus, visto que Sua Majestade tanto se aproxima delas.

13. Não entendo nem desejo entender outra coisa: prefiro a oração que em pouco tempo produz efeitos muito grandes (que logo são percebidos, pois não é possível deixar tudo, só para contentar a Deus, sem ser movido por um grande amor) à que em muitos anos não levou a alma a estar mais determinada no último dia do que no primeiro a fazer por Deus coisas ínfimas como grãos de sal, que não têm peso nem volume — parecendo poder ser levados no bico de um pássaro —, e que consideramos grandes atos e mortificações. Damos importância a certas coisas insignificantes que fazemos pelo Senhor; lastimo que nos demos conta delas, mesmo que sejam muitas. Eu sou assim: a cada passo, esqueço-me das graças.

Não digo que Sua Majestade não as valorize muito, porque é bom; mas eu gostaria de não fazer caso delas, nem perceber que as faço, porque elas nada são. Perdoai-me, Senhor meu, e não me culpeis, pois com alguma coisa hei de me consolar, já que em nada Vos sirvo. Se eu Vos servisse em grandes coisas, nem sequer perceberia as ninharias. Bem-aventurados os que Vos servem com obras grandes! Se de algo valer a inveja que tenho deles e o meu desejo de imitá-los, não ficarei muito atrás em contentar-Vos; contudo, Senhor meu, nada valho. Vós, que tanto me amais, ponde em mim o valor.

14. Num destes dias, a fundação ficou totalmente concluída, pois chegou um Breve de Roma8 permitindo que a casa não tenha renda. Aconteceu-me de, estando consolada de ver a obra assim concluída e pensando nos sofrimentos por que tinha passado — e louvando o Senhor, que de alguma maneira quisera servir-se de mim —, considerar todas as coisas até então decorridas. Vi que, em cada coisa em que eu parecia ter feito algo, havia muitas faltas e imperfeições, e, por vezes, pouco ânimo e fé minúscula. Vejo que se cumpriu tudo o que o Senhor prometera a respeito desta casa, mas até agora não tinha conseguido crer de todo que se cumpririam todas as promessas feitas pelo Senhor sobre ela, embora também não pudesse duvidar.

Não consigo explicar como era isso. Por um lado, eu julgava muitas vezes impossível, mas, por outro, não podia duvidar, isto é, crer que a obra não se realizaria. Por fim, descobri que, quanto ao bem, o Senhor fizera Sua parte, e, quanto ao mal, eu dera a minha contribuição. Por isso, deixei de pensar nessas coisas, e gostaria de não me recordar delas para não deparar com tantas faltas minhas. Bendito seja Aquele que de todas essas faltas extrai o bem quando assim o deseja. Amém.

15. Digo, pois, que é um perigo contar os anos de oração, porque, mesmo com humildade, creio que pode ficar uma tentaçãozinha de pensar que se merece alguma coisa pelos serviços prestados. Não digo que não se mereça, nem que não se vá ser bem-recompensado; mas qualquer pessoa espiritual que pensar merecer esses regalos de espírito pelos muitos anos de oração por certo não chegará ao ponto mais alto.

Não basta conseguir que Deus nos tenha conduzido pela mão para que não O ofendamos como o fazíamos antes de começar a ter oração? Queremos ainda, como se diz, exigir direitos na justiça? Isso não me parece profunda humildade; talvez seja, mas eu o considero atrevimento, porque, embora a minha não seja muita, também nunca ousei fazer tal exigência. Pode ser que, como nunca O servi, também nunca tenha pedido isso; talvez se O tivesse servido, eu viesse a querer, mais do que todos, que o Senhor me pagasse.

16. Não afirmo que, se a sua oração for humilde, a alma não vá crescendo nem Deus deixe de recompensá-la. Mas é preciso esquecer esses anos, porque tudo quanto podemos fazer de nada vale em comparação com uma gota de sangue que o Senhor derramou por nós. Se, ao servi-Lo mais, mais Lhe devemos, que recompensa é essa que pedimos? Pagamos um centavo da dívida e recebemos em troca mil ducados. Pelo amor de Deus, abandonemos esses juízos que só a Ele pertencem. Essas comparações nunca são boas, mesmo quando aplicadas às coisas da terra, quanto mais àquilo que só Deus conhece — como bem o mostra Sua Majestade ao pagar tanto aos últimos como aos primeiros.9

17. Escrevi estas três últimas folhas tantas vezes e em tantos dias — porque tive e tenho, como disse,10pouco tempo livre — que ia me esquecendo do que comecei a narrar. Eis a visão: estando em oração, vi-me sozinha num grande campo, cercada de muita gente de todas as espécies. Tive a impressão de que todos tinham armas nas mãos para me agredir; uns tinham lanças, outros, espadas, adagas e outras armas. Eu não podia escapar sem me pôr em risco de morte e não contava com ninguém do meu lado. Meu espírito estava nessa aflição, e eu não sabia o que fazer de mim; então, levantei os olhos na direção do céu e vi Cristo. Ele não estava no céu, mas bem acima de mim, no ar, estendendo-me a mão e amparando-me de tal modo que eu não tinha temor de toda aquela gente, nem as pessoas, embora quisessem, podiam me fazer mal.

18. Essa visão que parece sem fruto tem me feito um grande bem, pois vim a entender o seu significado. De fato, pouco depois, quase sofri um ata que semelhante, vindo a saber ser aquela visão uma imagem do mundo: tudo quanto há nele parece portar armas para ferir a triste alma. Não vamos falar dos que pouco servem ao Senhor, nem das honras, riquezas, prazeres e outras coisas semelhantes, que, é evidente, enredam ou ao menos procuram enredar a alma não prevenida. Refiro-me aos amigos, aos parentes e, o que mais me causa espanto, a pessoas muito boas. Todos esses mais tarde me atormentaram tanto que eu não sabia como me defender nem o que fazer. E todos julgavam que faziam bem.

19. Oh! Valha-me Deus! Se eu contasse os vários sofrimentos de toda espécie que tive nessa época — depois do que contei —, que bela ocasião para nos acautelarmos e esquecermos por inteiro do mundo! Essa foi, creio eu, a maior perseguição de todas as que sofri. Sim, repito, em certos momentos vi-me tão cercada que o único remédio era erguer os olhos ao céu e chamar por Deus. Eu me lembrava bem do que contemplara naquela visão; isso muito me serviu para que eu não confiasse em ninguém, porque só Deus é estável. Como o Senhor já me revelara, sempre havia, a mando Seu, quem me desse a mão, visando apenas agradar ao Senhor. Assim agistes, Senhor, para sustentar o pouquinho de virtude que eu tinha em desejar servir-Vos. Sede para sempre bendito!

20. Em outra ocasião, eu estava muito inquieta e confusa, sem poder me recolher, envolvida numa árdua luta, numa enorme batalha interior; meu pensamento se dirigia a coisas imperfeitas, a ponto de me parecer que eu não estava com o desapego que costumo ter. Vendo-me assim tão ruim, temi que as graças que o Senhor tinha me concedido fossem ilusões; eu estava, em suma, com a alma envolta numa grande escuridão.

Estando eu nesse padecer, o Senhor começou a me falar, dizendo-me que não me afligisse. Vendo-me nesse estado, eu compreenderia quão miserável eu seria se Ele se afastasse de mim e que, enquanto estamos nesta carne, não há segurança. Ele me permitiu compreender a validade desta batalha diante da recompensa a ser ganha, e tive a impressão de que Ele tinha pena dos que vivem neste mundo. Ele me disse que não pensasse que Se esquecera de mim; nunca me deixaria, mas eu precisava fazer tudo o que pudesse. Ele me disse isso com uma compaixão e ternura, e com outras palavras em que me fazia uma grande graça, que não tenho termos para descrever.

21. Sua Majestade tem me dito muitas vezes, mostrando grande amor por mim, estas palavras: Já és minha, e Eu sou teu. Eu sempre costumo Lhe dizer e, a meu ver, com sinceridade: pouco me importo comigo, Senhor, mas apenas Convosco. As palavras que Ele me dirige e os regalos que me concede me deixam tão confusa que, quando me lembro de quem sou, como já disse outras vezes11 e ainda digo algumas ao meu confessor, penso que é preciso mais coragem para receber essas graças do que para suportar os piores sofrimentos. Quando isso acontece, eu me esqueço de minhas obras e vejo apenas que sou ruim, sem o trabalho do intelecto, numa sensação que às vezes me parece sobrenatural.

22. Acometem-me por vezes uns anseios tão grandes de comungar que nem sei explicar. Certa manhã em que chovia muito, parecendo que o tempo não era bom para sair, estando eu fora do meu mosteiro, estava tão tomada por aquele ímpeto que, se apontassem lanças para o meu peito, creio que me atiraria contra elas, quanto mais contra a água. Chegando à igreja, veio-me um grande arroubo. Tive a impressão de ver os céus abertos, e não apenas uma entrada como já ocorreu de outras vezes.12 Foi-me apresentado o trono que já vi algumas vezes, como informei a vossa mercê, e outro acima dele; neste, de uma maneira que não sei descrever, entendi estar a Divindade, embora nada visse.

Ele parecia estar sustentado por uns animais, cuja significação já me foi explicada. Imaginei que fossem talvez representações dos evangelistas.13 Não vi como era o trono nem quem estava nele, mas apenas uma grandíssima multidão de anjos. Eles me pareceram incomparavelmente mais belos do que todos os que tenho visto no céu. Fico a imaginar se serão serafins ou querubins, pois a glória destes parece ser superior, e eles dão a impressão de estar inflamados. Há, repito, muita diferença entre eles.14

A alegria de que me senti inundada não pode ser descrita de nenhuma maneira, nem a pode imaginar quem não a experimentar. Entendi estar ali, junto, tudo o que se pode desejar, mas nada vi. Disseram-me — não sei quem — que eu podia compreender ali que nada podia entender e ver o nada que era tudo comparado com aquilo. Mais tarde, a minha alma ficava envergonhada só de pensar que podia se deter em alguma coisa criada ou, o que seria pior, se afeiçoar a ela, porque tudo me parecia um formigueiro.

23. Comunguei e assisti à missa, nem sei como. Pareceu-me que só se passara pouco tempo. Fiquei espantada quando o relógio deu as horas e vi que tinha passado duas naquele arroubo e glória. Mais tarde, eu me maravilhava ao ver como, vindo o fogo do verdadeiro amor de Deus, pois parece vir de cima (porque, por mais que eu o queira, o procure e me desfaça por ele, nada sou nem posso fazer para conseguir uma única centelha sua, a não ser quando Sua Majestade o deseja dar, como eu já disse15), o homem velho é totalmente consumido com as suas faltas, fraquezas e misérias.

Tal como a fênix, que, como li,16 depois de queimada, renasce das próprias cinzas, assim também a alma, depois disso, se transforma, tendo desejos diferentes e uma grande força. Ela não parece ser a mesma de antes, recomeçando, com pureza renovada, a trilhar o caminho do Senhor. Quando supliquei a Sua Majestade que assim fosse e que eu começasse a servi-Lo de novo, Ele me disse: Boa comparação fizeste; procura não te esqueceres dela para buscares ir sempre melhorando.

24. Estando outra vez com a mesma dúvida de que há pouco falei,17 se essas visões eram mesmo de Deus, o Senhor me apareceu e me disse, com rigor: Ó filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Acrescentou que eu examinasse bem em mim uma coisa: se me entregara de todo a Ele ou não; que, se assim tinha feito, e era Sua por inteiro, acreditasse que Ele não deixaria que eu me perdesse.

Fiquei muito aflita com aquela exclamação. Ele me disse, com grande ternura e carinho, que eu não me perturbasse, pois Ele já sabia que, se fosse por mim, eu não deixaria de tudo suportar para servi-Lo. Ele me prometeu fazer tudo o que eu quisesse. E foi assim que se fez o que eu Lhe suplicava então. Prosseguindo, o Senhor disse que eu devia ver o amor por Ele que, dia após dia, ia aumentando em mim, para assim perceber não serem as visões obra do demônio. Eu nem devia pensar que Ele fosse permitir ao inimigo tamanho domínio sobre as almas dos Seus servos, nem condições para dar a clareza de compreensão e a paz que eu tinha. Fez-me compreender que eu agiria mal se não acreditasse nas tantas pessoas, e tão capacitadas, que diziam que era Deus.

25. Estando uma vez rezando o salmo Quicumque vult,18 foi-me explicado o modo pelo qual Deus é um só em três Pessoas com tanta clareza que eu fiquei abismada e muito consolada. Isso muito me favoreceu no maior conhecimento da grandeza de Deus e de Suas maravilhas, e, quando penso na Santíssima Trindade, ou quando ouço falar dela, tenho a impressão de que entendo como isso pode ser, o que me dá imenso contentamento.

26. Num dia da Assunção da Rainha dos Anjos e Senhora nossa, quis o Senhor fazer-me o seguinte favor: num arroubo, apresentou-me Sua subida ao céu e a alegria e solenidade com que Ela foi recebida, bem como o lugar onde está. Eu não saberia dizer como ocorreu isso. O meu espírito teve uma enorme exultação ao contemplar tão imensa glória. Isso deixou em mim grandes efeitos, fazendo-me desejar cada vez mais suportar grandes sofrimentos e servir a essa Senhora, que tanto o mereceu.

27. Estando num colégio da Companhia de Jesus,19 vi, quando os irmãos da casa comungavam, um pálio resplendente acima de suas cabeças. Isso aconteceu duas vezes. Quando outras pessoas comungavam, eu não o via.

Capítulo 40

Continua a narrar os grandes favores que o Senhor lhe concedeu. Diz que de alguns deles é possívelextrair uma doutrina muito boa. Afirma que, como tem dito, a sua principal intenção, depois de obedecer,foi descrever as graças que podem ser de proveito para as almas. Diz que, com este capítulo, acaba o relato de sua vida. Dedica esse relato à glória do Senhor. Amém.

1. Estando uma vez em oração, fui invadida por tamanha felicidade que, sendo indigna de tal bem, comecei a pensar que merecia muito mais estar naquele lugar que eu tinha visto preparado no inferno para mim, porque, como venho dizendo,1 nunca me sai da memória a sensação que ali tive. Ao considerar isso, senti a alma inflamar-se mais, vindo-me um arroubo de espírito que não sei descrever. Eu parecia ter o espírito imerso naquela Majestade que de outras vezes percebi.

Compreendi nessa Majestade uma verdade que é a plenitude de todas as verdades; mas não sei descrever como, porque nada vi. Disseram-me (não sei quem, mas percebi que era a mesma Verdade):Não é pouco o que faço por ti, sendo uma das coisas em que muito me deves; porque todo mal que vem ao mundo decorre de não se conhecerem as verdades da Escritura com clareza, da qual nem uma vírgula ficará por cumprir.2 Pareceu-me que eu sempre tinha acreditado nisso e que todos os fiéis o crêem. O Senhor me disse: Ai, filha, quão poucos me amam de verdade! Se Me amassem, Eu não lhes encobriria meus segredos. Sabes o que é amar-Me com verdade? Entender que tudo o que não é agradável a Mim é mentira. Verás com clareza isso que agora não entendes pelo fruto que sentirás em tua alma.

2. E assim ocorreu, seja o Senhor louvado; desde então, considero tão vaidoso e mentiroso tudo o que vejo que não está voltado para o serviço de Deus que eu não saberia exprimir até que ponto o entendo nem o pesar que sinto diante dos que estão em trevas com relação a essa verdade. Com isso, obtive outros benefícios que vou narrar, embora muitos deles eu não saiba descrever. O Senhor me disse aqui uma palavra particular de enorme graça.3 Não sei como foi isso, porque nada vi; mas fiquei de uma maneira que nem posso descrever: surgiram em mim uma grande força e uma verdadeira determinação de cumprir com todo o empenho a mínima palavra da divina Escritura. Creio que não deixaria de enfrentar nenhum obstáculo para fazê-lo.4

3. Essa Verdade divina, que me foi apresentada sem eu saber como nem por quem, deixou impressa em mim uma verdade que me faz respeitar Deus de modo inteiramente novo, porque dá um conhecimento de Sua Majestade e do Seu poder que é impossível descrever; só posso dizer que esse dom é grande coisa. Fiquei com uma imensa vontade de só falar coisas muito verdadeiras que estejam acima das coisas do mundo, começando por isso a sofrer por viver nele.

Essa graça infundiu em mim grande ternura, deleite e humildade. Parece--me, sem que eu saiba como, que o Senhor muito me concedeu aqui. De maneira nenhuma suspeitei que fosse ilusão. Embora nada visse, compreendi o grande benefício que há em não considerar senão as coisas que nos aproximam de Deus e, assim, compreendi o que é estar uma alma na verdade na presença da própria Verdade.5Mediante isso, compreendi que o Senhor é a própria Verdade.

4. Todas essas coisas me foram reveladas por palavras ou sem elas.6 Quando sem palavras, a compreensão era às vezes ainda mais clara do que quando havia palavras. Aprendi enormes verdades sobre essa Verdade, mais do que se tivesse sido ensinada por muitos eruditos. Creio que de forma alguma eles poderiam imprimir assim no meu espírito, nem me explicar tão claramente, a vaidade do mundo.

Essa Verdade é em si mesma verdade, não tendo princípio nem fim. Todas as outras verdades dependem dessa Verdade, assim como todos os demais amores, desse Amor, e todas as outras grandezas, dessa Grandeza. Mas o que digo é, em comparação com a luz com que o Senhor me explicou isso, obscuro. E como brilha o poder dessa Majestade que em tão breve tempo deixa um proveito tão grande, imprimindo essas verdades na alma!

Ó Grandeza e Majestade minha! Que fazeis, Senhor meu todo-poderoso? Vede a quem concedeis tão soberanos favores! Não vos dais conta de que esta alma foi um abismo de mentiras, uma imensidão de vaidades, e tudo por minha culpa; e de que, apesar de me terdes dado uma natureza que abomina a mentira, eu mesma me obriguei a lidar com muitas coisas a partir da mentira? Como se tolera, Deus meu, como se permite que tão grande favor e graça possam ser dados a quem tão mal os tem merecido?

5. Estando uma vez nas Horas com todas as irmãs, a minha alma se recolheu de imediato e deu-me a impressão de ser um claro espelho.7 Não havia parte posterior, nem lados, nem alto, nem baixo que não fosse claridade; e, no centro, foi-me apresentado Cristo Nosso Senhor da maneira como costumo vê--Lo.8Eu parecia vê-Lo em todas as partes da minha alma claro como um espelho; e esse espelho, não sei como, também era feito todo do próprio Senhor, através de uma comunicação muito amorosa que não sei descrever.

Sei que essa visão me traz grande proveito cada vez que me lembro dela, em particular quando acabo de comungar. Compreendi que, quando a alma está em pecado mortal, esse espelho se cobre de densa névoa e fica muito escuro; o Senhor não pode se refletir nele nem O podemos ver, embora Ele esteja sempre presente, dando-nos o ser.

No tocante aos hereges, é como se o espelho estivesse quebrado, o que é muito pior do que apenas obscurecido. É enorme a diferença entre ver e explicar essas coisas, pois não há palavras que bastem para tanto. Mas disso tenho obtido muitos benefícios, infundindo-me uma grande angústia ao pensar nas vezes em que, com minhas faltas, obscureci a minha alma de uma maneira que não me permitia ver esse Senhor.

6. Essa visão me parece benéfica para as pessoas que se dedicam ao recolhimento,9 ensinando-as a considerar o Senhor no mais íntimo de sua alma, pois essa consideração nos envolve mais e dá muito mais frutos do que se O considerarmos fora de nós, como eu já disse.10 Em alguns livros de oração, diz-se ser aí que se deve buscar a Deus; o glorioso Santo Agostinho, em especial, diz que nem nas praças, nem nos contentamentos, nem em todos os lugares onde O buscou O encontrou como dentro de si. Isso é com certeza o melhor, já que não é preciso ir ao céu, nem procurar mais longe nem fora de nós mesmos; fazer estas últimas coisas cansa o espírito e distrai a alma, e sem dar tantos frutos.

7. Quero dar um aviso a quem tem grandes arroubos a respeito do que ocorre neles. Passado o momento em que a alma se encontra em união (em que as faculdades estão totalmente absortas, o que dura pouco, como eu já disse11), acontece-lhe de ficar recolhida e até sem condições de voltar a si, mas as duas faculdades, a memória e o intelecto, ficam quase frenéticas, delirando.

Isso acontece algumas vezes, como digo, principalmente no início. Creio que isso decorre do fato de a nossa fraqueza natural não suportar tanta força de espírito, o que leva ao debilitamento da imaginação. Sei que isso acontece com algumas pessoas. Nessas ocasiões, parece-me melhor que se esforcem por deixar a oração, recuperando em outro momento aquilo que então perdem. Elas não devem insistir, pois poderão provocar muito mal. A experiência indica que é muito acertado verificar quanto a nossa saúde pode agüentar.

8. Em tudo são necessárias a experiência e a direção, porque, chegando a alma a esse estado, surgirão muitas ocasiões em que é imperativo ter alguém com quem o tratar. Se, tendo buscado um diretor, a pessoa não o achar, o Senhor não lhe faltará, pois não faltou a mim, sendo eu quem sou. De fato, encontram-se poucos mestres, acredito eu, que tenham alcançado a experiência de coisas tão elevadas; não a tendo, em vão procuram ajudar a alma sem a deixar inquieta e aflita. Mas isso também o Senhor leva em conta, sendo assim melhor tratar disso, como eu já disse,12 com um confessor digno.

Eu talvez esteja repetindo tudo, porque a minha memória não ajuda. Especialmente quando se é mulher, é muito importante dizer tudo ao confessor. O Senhor concede essas graças muito mais a elas do que aos homens, como me disse o santo Frei Pedro de Alcântara e como eu mesma observei. Para ele, nesse caminho elas vão mais longe do que eles; ele apresentava excelentes razões, todas em favor das mulheres, que não é preciso repetir aqui.

9. Estando uma vez em oração, foi-me apresentado muito brevemente (sem que eu visse uma coisa formada, mas numa representação muito clara) como se vêem todas as coisas em Deus e como todas elas estão encerradas nele por inteiro. Não sei descrevê-lo, mas a imagem ficou muito impressa na minha alma, sendo essa uma das grandes graças que o Senhor me concede, uma das que mais me deixaram confusa e envergonhada quando me lembrei dos pecados que cometi. Acredito que, se o Senhor quisesse que eu visse isso em outra época, e se permitisse essa visão aos que O ofendem, nem eu nem eles teríamos coragem nem atrevimento para o fazer.

Parece-me que vi o que vou dizer, embora não o possa afirmar, digo desde já, que de fato vi alguma coisa. Mas algo devo ter visto, já que posso fazer essa comparação;13 mas tudo ocorre de modo tão sutil e delicado que o intelecto não o pode alcançar. Talvez seja eu quem não sabe entender essas visões, que não parecem imaginárias, embora algumas devam conter um quê de imagem. Mas, como isso ocorre com a alma em êxtase, as faculdades não conseguem reproduzir o que se vê tal como o Senhor lhes apresenta e lhes permite provar.

10. Digamos, portanto, que a Divindade é apresentada como um diamante muito claro, muito maior que o mundo inteiro, ou como um espelho — como eu já disse ao falar da outra visão,14 embora, nesta, tudo seja tão superior e sublime que não sei como lhe fazer jus. Nesse diamante, vemos tudo o que fazemos, pois ele encerra tudo em si, não havendo nada que exista fora de sua imensidade.

Foi um espetáculo maravilhoso ver nesse claro diamante, em tão breve espaço de tempo, tantas coisas juntas. Como lastimo, cada vez que me lembro disso, ter visto coisas tão feias como os meus pecados refletidas naquela claridade translúcida. Diante dessa lembrança, nem sei como posso resistir; fico tão envergonhada que não sei onde me esconder.

Quem dera se pudesse explicar isso aos que cometem pecados muito grandes e desonestos, para que se lembrassem de que não ficam ocultos e de que Deus, com razão, os sente, visto que cometemos esses pecados na presença de Sua Majestade, sendo grande o desacato com que O ofendemos! Vi como é justo merecer o inferno por um único pecado mortal. É gravíssima coisa cometê-lo diante de tão grande Majestade, à qual muito repugnam coisas semelhantes. Dessa maneira, vemos ainda mais a Sua misericórdia, porque, vendo que sabemos tudo isso, ainda assim nos suporta.

11. Isso me tem feito pensar: se uma visão como essa deixa a alma tão espantada, como será no dia do juízo, quando essa Majestade se mostrar bem claramente a nós e virmos o quanto O ofendemos? Valha-me Deus, que cegueira esta em que tenho vivido! Muitas vezes fico abismada com o que tenho escrito, e vossa mercê deve espantar-se apenas com o fato de eu ainda viver depois de ver essas coisas e a mim mesma. Bendito seja para sempre Quem tanto me tem suportado.

12. Estando certa vez em oração, muito recolhida e envolta em suavidade e quietude, senti-me rodeada de anjos e muito próxima de Deus. Comecei a rogar a Sua Majestade pela Igreja. Veio-me a compreensão do grande proveito que certa Ordem religiosa traria nos últimos tempos e da força com que seus filhos haveriam de sustentar a fé.15

13. Eu estava em oração perto do Santíssimo Sacramento quando me apareceu um santo cuja Ordem está um tanto decaída. Tinha nas mãos um grande livro, que abriu, dizendo-me que lesse umas palavras escritas em letras grandes e muito legíveis: Nos tempos vindouros, esta Ordem florescerá; haverá muitos mártires.16

14. De outra vez, estando no coro durante as Matinas, vi diante dos meus olhos seis ou sete religiosos dessa mesma Ordem — ou assim me pareceu — com espadas nas mãos. Isso significava, penso eu, que eles hão de defender a fé; porque mais tarde, quando eu estava em oração, meu espírito foi arrebatado, e eu parecia estar num enorme campo onde muitos lutavam; os combatentes dessa Ordem se batiam com grande ânimo. Seus rostos estavam formosos e muito abrasados; eles deixaram muitos caídos, vencidos, e outros mortos. Tive a impressão de que a batalha era contra os hereges.

15. Tenho visto algumas vezes este glorioso Santo,17 que tem me dito algumas coisas e agradecido minhas orações pela sua Ordem, prometendo me encomendar ao Senhor. Não nomeio as Ordens, para que as outras não fiquem ofendidas; se o Senhor quiser que se saiba, Ele mesmo as nomeará. Mas cada Ordem, ou cada membro, tinha de fazer com que, através de si, o Senhor os fizesse tão ditosos que pudessem servir à Igreja num momento de tão grande necessidade. Felizes as vidas que por isso se sacrificarem!

16. Uma pessoa me pediu que eu suplicasse a Deus para que Ele lhe dissesse se seria serviço Seu aceitar um bispado.18 Quando eu acabava de comungar, disse-me o Senhor: Quando entender com toda a verdade e clareza que a genuína autoridade é não possuir coisa alguma, ele o poderá aceitar. Isso significa que quem se destina às prelazias de modo algum deve desejá-las ou querê-las, ou, ao menos, não deve procurá-las.

17. Essas e muitas outras graças foram e são concedidas pelo Senhor a esta pecadora, parecendo-me desnecessário detalhá-las, pois, pelo que eu já disse, é possível conhecer a minha alma e o espírito que o Senhor tem infundido em mim. Bendito seja Ele para sempre, que tanto cuidado tem tido comigo.

18. Disse-me Ele certa feita, consolando-me com muito amor, que eu não me afligisse, porque nesta vida não podemos estar sempre num mesmo estado. Numas ocasiões, eu teria fervor e, em outras, estaria sem ele; numas, teria desassossego e, noutras, quietude e, em outras ainda, tentações. Contudo, eu devia confiar Nele e nada temer.

19. Um dia, eu estava pensando se seria apego gostar de estar com as pessoas com quem trato da minha alma e ter afeição pelos que considero servos fiéis de Deus, pois me consolava com eles. O Senhor me disse que, se um enfermo que está correndo risco de morte julgar que um médico lhe dá saúde, não teria virtude de sua parte ser-lhe grato e ter amizade por ele? Que teria sido de mim sem a ajuda dessas pessoas? Conversar com os bons não prejudica, mas as minhas palavras sempre deveriam ser ponderadas e santas, e eu não deveria deixar de tratar com eles, pois isso antes me traria proveito que prejuízo.

Essas palavras muito me consolaram, porque algumas vezes, julgando haver apego, eu penso em deixar de lado esses relacionamentos. O Senhor sempre me aconselha em todas as coisas, chegando a me dizer como me relacionar com os fracos e com algumas pessoas. Ele jamais se descuida de mim; às vezes, sofro por me ver tão incapacitada para o Seu serviço e obrigada a perder um tempo maior do que eu gostaria com um corpo tão fraco e ruim como é o meu.

20. Estando em oração, chegou a hora de ir dormir. Eu estava com muitas dores, esperando o vômito costumeiro.19 Vendo-me tão prejudicada pelo corpo e vendo o espírito querendo tempo para si, fiquei tão perturbada que comecei a chorar, muito angustiada. Isso aconteceu muitas vezes, levando-me a ficar aborrecida comigo mesma, beirando o desprezo por mim. Mas, em geral, percebo que não me odeio o bastante nem recuso o que me parece necessário. Queira o Senhor que eu não tome muito mais do que é preciso! É bem provável que eu o faça.

Nessa ocasião de que falo, o Senhor me apareceu, consolando-me muito, dizendo que eu fizesse essas coisas por amor a Ele e a tudo suportasse, pois a minha vida ainda era necessária. Assim, desde que me determinei a servir com todas as forças a esse Senhor e consolador meu, não há ocasião em que Ele, embora me deixe padecer um pouco, não me console muito depois, o que tira os meus méritos de desejar sofrimentos.

Agora, não acho outro motivo para viver, além do sofrimento. E é isso o que peço a Deus com todo o empenho, dizendo-Lhe, por vezes: Senhor, só peço para mim o morrer ou o padecer. Fico consolada ao ouvir soar o relógio, pois tenho a impressão de que isso me aproxima um pouco mais de ver a Deus, tendo aquela hora da minha vida se extinguido.

21. Em outras ocasiões, é tal o meu estado que não me sinto viver nem pareço ter vontade de morrer. Fico com um tédio e um acabrunhamento em tudo, como eu disse,20 muito freqüentes por causa dos meus grandes sofrimentos interiores. E, tendo o Senhor desejado tornar públicas as graças que me faz, como Ele mesmo o previra há alguns anos, eu muito me afligi, e não é pouco o que tenho padecido até agora, como o sabe vossa mercê, porque cada um o interpreta a seu modo.

Consola-me saber que isso não ocorreu por minha culpa; porque tenho tido muito cuidado e grande reserva em não o contar senão a meus confessores ou a pessoas a quem eles o tenham comunicado. E ajo assim não por humildade, mas porque, como já disse,21 tenho vergonha de contá-lo até aos confessores. Agora, graças a Deus, embora falem muito de mim com bom zelo, havendo ainda os que temem ter relações comigo e até me confessar, e outros que me dizem muitas coisas, como vejo que o Senhor quis dar dessa maneira um corretivo a muitas almas (porque tenho visto isso com clareza e me recordo de quanto passaria pelo Senhor em benefício de uma só alma), pouco me importa o que dizem de mim.

Não sei se contribui para isso o fato de Sua Majestade ter-me posto neste lugar22 tão afastado, onde vivo como se já tivesse morrido. Eu pensava que ninguém mais se lembrasse de mim, mas não foi assim, pois sou obrigada a falar com algumas pessoas; contudo, como estou num local onde não podem me ver, creio que o Senhor já me trouxe a um porto que, espero em Sua Majestade, é seguro.

22. Como já estou fora do mundo, com poucas e santas companheiras, olho tudo de cima e nenhuma importância dou ao que se possa falar ou saber de mim; isso vale muito menos do que o mínimo proveito que uma alma possa obter. Desde que estou aqui, quis o Senhor que todos os meus desejos estejam voltados para isso. Ele tornou a minha vida uma espécie de sonho em que o que vejo não parece ter realidade: não vejo em mim nenhum contentamento nem pesar significativos.

Se alguma coisa me deixa pesarosa, é tal brevidade com que passa que fico abismada; o sentimento que fica em mim é como uma coisa sonhada. Isso é a pura verdade, porque, mesmo que depois eu queira me alegrar com um contentamento ou me afligir com um pesar, não está em minhas mãos fazê-lo, tal como não estaria nas de uma pessoa sensata angustiar-se ou rejubilar-se com um sonho. Isso acontece porque o Senhor já despertou a minha alma e a afastou daquilo que, por eu não estar mortificada nem morta para as coisas do mundo, me provocava tantos sentimentos. Sua Majestade não quer que a minha alma volte a ficar cega.

23. Assim vivo agora, senhor e padre meu.23 Suplique vossa mercê a Deus que me leve para Si ou me mostre como servi-Lo. Queira Sua Majestade que este manuscrito traga proveito a vossa mercê, porque, devido ao pouco tempo de que disponho, me custou algum trabalho. Mas bendito trabalho, se conseguir dizer algo que leve alguém, ao menos uma vez, a louvar o Senhor. Com isso eu me consideraria recompensada, mesmo que vossa mercê logo o queimasse.

24. Contudo, eu não gostaria que isso ocorresse sem que o vissem as três pessoas que vossa mercê sabe,24 que são e têm sido meus confessores. Se o que digo de nada vale, é bom que eles percam a visão favorável que têm de mim; se vale alguma coisa, sei que eles, que são bons e instruídos, verão de onde vem e louvarão Quem o disse por mim.

Que Sua Majestade sempre conduza vossa mercê pela mão e o torne um santo tão grande que, com sua luz e espírito, ilumine esta pessoa miserável, pouco humilde e muito atrevida que ousou pôr-se a escrever sobre coisas tão sublimes. Queira Deus que eu não tenha errado nisso, pois tive a intenção e o desejo de acertar e obedecer, pretendendo que, por meu intermédio, se louvasse um pouco o Senhor, coisa que Lhe suplico há muitos anos.

Como me faltam as obras, cometi a temeridade de tentar dar ordem à minha vida desorganizada, embora não tenha tido mais cuidado nem tempo do que o que foi necessário para fazer este relato. Contei apenas, com toda a lisura e verdade que estavam ao meu alcance, o que ocorreu comigo.

Queira o Senhor, que é poderoso e, se quer, pode, que em tudo eu faça a Sua vontade, não permitindo que se perca esta alma que Ele, com tantos artifícios e de tantas maneiras, tem tirado inúmeras vezes do inferno e trazido para Si. Amém.

JHS

1. O Espírito Santo esteja sempre com vossa mercê, amém.1

Não seria impróprio encarecer a vossa mercê este serviço para obrigá-lo a ter muito cuidado de me encomendar a Nosso Senhor, pois, pelo que tenho passado ao me ver retratada e ao trazer à lembrança tantas misérias minhas, eu bem o posso fazer. É verdade que senti mais por falar dos favores que o Senhor me tem feito do que das ofensas que tenho cometido contra Sua Majestade.

2. Fiz o que vossa mercê me mandou; fui extensa,2 mas com a condição de que vossa mercê faça o que prometeu, rasgando o que lhe parecer ruim. Eu não tinha acabado de lê-lo, depois de escrito, quando vossa mercê o mandou buscar. Pode ser que algumas coisas estejam maldescritas e outras repetidas, porque o meu tempo tem sido tão pouco que nem reli o que ia escrevendo. Suplico a vossa mercê que o emende e o faça copiar, se tiver de mandá-lo ao Padre Mestre Ávila,3 pois talvez alguém reconheça a letra.

Eu desejo muito que ele o veja, pois com essa intenção comecei a escrever; se ele achar que sigo um bom caminho, ficarei muito consolada, porque já não há nada que eu possa fazer de minha parte. Em tudo faça vossa mercê como melhor lhe parecer, vendo a quanto está obrigado diante de quem assim lhe confia a sua alma.

3. A de vossa mercê eu encomendarei por toda a vida a Nosso Senhor. Por isso, apresse-se em servir Sua Majestade para me fazer uma graça, pois vossa mercê verá, pelo que aqui escrevi, quão bem é empregada a vida de quem se entrega por inteiro, como vossa mercê começa a fazer, a Quem tão sem limites se entrega a nós.

4. Bendito seja Ele para sempre. Espero em Sua misericórdia que eu e vossa mercê nos encontremos onde vejamos mais claramente as grandezas que Ele nos concedeu, e onde para todo o sempre vamos louvá-lo, amém.

Este livro foi concluído em junho, no ano de 1562.4