quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

capitulo 8

Fala do grande bem que obteve do fato de não se afastar por inteiro da oração para não perder a alma e do grande auxílio que isso é para se recuperar o que se perdeu.

Defende essa prática por parte de todos. Diz que são grandes os ganhos dela decorrentes e que, mesmo que a deixem, é muito bom fruir por algum tempo de tão grande bem.

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1. Houve uma causa para que eu insistisse tanto em relatar essa época da minha vida. Sei bem que não agrada a ninguém ver coisa tão ruim, e por cer to eu gostaria que os que lessem isto me detestassem ao ver uma alma tão teimosa e ingrata para com quem tantas graças lhe tem dado. Gostaria de ter permissão para falar das muitas vezes que, nessa época, falhei diante de Deus, por não1 me ter apoiado na forte coluna da oração.

2. Singrei esse mar tempestuoso durante quase vinte anos, caindo e levan tan do — levantando-me mal, pois voltava a cair. Era tão pouca a minha per feição que quase não me importava muito com os pecados veniais, e, em bora temendo os mortais, nem por isso me afastava dos perigos. Trata-se de uma das vidas mais penosas que, a meu ver, se pode imaginar: eu não me rejubilava em Deus nem me alegrava no mundo. Nos contentamentos mundanos, era atormentada pela lembrança do que devia a Deus; quando estava com Ele, era perturbada pelos contentamentos do mundo. É tão dura essa batalha que nem sei como suportaria um mês, quanto mais tantos anos.

Porém, vejo claramente a grande misericórdia do Senhor ao me dar ânimo para orar enquanto eu tratava com o mundo. Digo ânimo, porque não creio que haja na terra algo que exija mais coragem do que trair o rei, sabendo que ele o sabe, sem conseguir sair de sua presença. Naturalmente, todos estão sempre diante de Deus; mas, para quem trata da oração, isso ocorre em outro plano; enquanto estes percebem que o Senhor os olha, os outros conseguem às vezes passar muitos dias sem nenhuma lembrança de que Deus os vê.

3. É verdade que, nesses anos, houve muitos meses e, talvez, anos em que eu não ofendi ao Senhor, dedicando-me à oração e me esforçando para não desagradá-lo. Digo-o para não faltar à verdade. Pouco me lembro dessas boas épocas, que devem ter sido raras, já que as outras foram muito mais numerosas. Poucos dias passei sem ter longos períodos de oração, a não ser que estivesse muito mal de saúde ou bastante ocupada; quando estava doente, relacionava-me melhor com Deus, procurando levar as pessoas próximas a assim ficarem, suplicando ao Senhor que as ajudasse e falando dele freqüentemente.

Desse modo, afora o ano de que falo, em vinte e oito anos de oração, passei mais de dezoito nessa luta entre lidar com Deus e lidar com o mundo.2 Nos outros, de que ainda vou falar, mudou a razão da contenda, mas a guerra ainda é dura. Contudo, estando, a meu ver, a serviço de Deus e com conhecimento da vaidade que é o mundo, tudo foi suave, como adiante direi.

4. Eu me estendi tanto, como já disse,3 para que se vejam a misericórdia de Deus e a minha ingratidão, bem como para que se compreenda o grande be nefício que Deus dá à alma dispondo-a a ter oração com vontade, mesmo que a sua dis posição não seja a necessária. Com perseverança, tenho certeza de que o Senhor conduzirá a alma a um porto de salvação, como — pelo que vejo agora — fez comigo, apesar dos pecados, tentações e mil quedas que o de mônio ocasiona. Queira Sua Majestade que eu não volte a me perder.

5. O bem que quem pratica a oração — refiro-me à oração mental — obtém já foi tratado por muitos santos e homens bons. Glória a Deus por isso! Se assim não fosse, embora pouco humilde, eu não sou tão soberba que me atre vesse a falar disso.

Do que tenho experiência posso falar: quem começou a ter ora ção não deve deixá-la, por mais pecados que cometa. Com ela, terá como se recuperar e, sem ela, terá muito mais dificuldades. E que o demônio nunca tente ninguém como tentou a mim, levando-me a abandonar a oração por hu mildade; creiam-me que as palavras do Senhor não hão de faltar se nos arre pendermos de verdade e tivermos o firme propósito de não mais ofendê-Lo; nesse caso, Ele nos recebe com a mesma amizade, concedendo-nos as mes mas graças de antes e, às vezes, se o arrependimento fizer jus a isso, muitas mais.

Por isso, peço aos que ainda não começaram que, por amor a Deus, não se privem de tanto bem. Não há o que temer, mas o que desejar. Porque, mes mo que não vá adiante nem se esforce pela perfeição, a ponto de merecer os gostos e regalos que Deus dá aos perfeitos, ao menos irá conhecendo o ca minho que leva ao céu. Se perseverar, tudo espero da misericórdia de Deus, pois ninguém fez amizade com Ele sem dele obter grande recompensa.4 Para mim, a oração mental não é senão tratar de amizade — estando muitas vezes tratando a sós — com quem sabemos que nos ama. E se ainda não O amais (porque, para que o amor seja verdadeiro e duradoura a amizade, deve haver compatibilidade; o Senhor exige, como se sabe, que não se cometam faltas, que se seja perfeito; nós, no entanto, somos viciosos, sensuais e ingratos), não podeis por vós mesmos chegar a amá-Lo, porque não é de vossa condição; mas, levando-se em conta o muito que Ele vos ama e o quanto vale ter a Sua amizade, passai pelo sofrimento de estar muito na presença de quem é tão diferente de vós.

6. Ó infinita bondade do meu Deus, que me parece que Vos vejo e me vejo dessa maneira! Ó delícia dos anjos, que, ao ver isso, todo o meu ser gostaria de desfazer-se em Vosso amor! Como é certo que sofreis com quem sofre por ter-Vos junto a si. Que bom amigo sois, Senhor meu! Como vais brindando a alma, e sofrendo, à espera de que ela alcance Vossa condição, suportando a sua, até que ela o consiga! Considerais, Senhor meu, os instantes em que ela o quer e, por um vislumbre de arrependimento de sua parte, esqueceis que ela Vos tem ofendido!

Vi isso com clareza em mim mesma, e não entendo, Criador meu, por que o mundo inteiro não procura travar convosco essa amizade particular. Os maus, que não têm a Vossa condição, deviam fazê-lo para que nos fizésseis bons. Isso acontecerá se eles permitirem que estejais com eles ao menos duas horas por dia, mesmo que não estejam convosco, mas às voltas com mil cuidados e pensamentos do mundo, como eu fazia. Devido ao esforço que fazem por querer estar em tão boa companhia, sabeis que, no princípio, e até depois, não podem fazer mais; Vós, como recompensa, impedis os ataques dos demônios, reduzindo a força destes a cada dia, ao mesmo tempo que for taleceis a alma. Jamais matais os que confiam em Vós e que Vos querem por amigo — Vida de todas as vidas! Vós lhes sustentais a vida do corpo, dan do-lhes mais saúde, vivificando a alma.

7. Não entendo o que temem os que temem começar a ter oração mental, nem sei de onde vem esse medo. Bem sabe o demônio criá-lo para provocar o verdadeiro mal, levando-me, pelo terror, a não pensar em que ofendi a Deus nem no muito que Lhe devo; assim agindo, ele não deixa que pensem no inferno, na glória e nos grandes sofrimentos e dores que Deus passou por mim.

Nessas coisas consistiu toda a minha oração enquanto eu corria esses perigos, sendo esses os meus pensamentos quando eu podia. E muitas vezes, durante alguns anos, eu me preocupava mais em desejar que passasse o tempo para mim determinado de estar ali e em escutar quando batia o relógio, do que em outras coisas boas. Com freqüência, acolhia com maior vontade alguma penitência grave do que o recolhimento em oração.

E é certo que a força que o demônio fazia — ou o meu mau costume — era tão incomparável, e tamanha a tristeza que eu sentia ao entrar no oratório, que eu precisava empregar todo o meu ânimo (que, dizem, não é pouco, tendo Deus me feito mais corajosa do que a maioria das mulheres, embora eu a tenha usado mal) para me obrigar, contando por fim com a ajuda do Senhor.

E, depois de me ter obrigado assim, eu ficava com maior quietude e alegria do que algumas vezes em que tinha desejo de rezar.

8. Porque, se o Senhor suportou por tanto tempo alguém tão ruim quanto eu, sendo claro que foi por isso que se curaram todos os meus males, que pessoa, por pior que seja, poderá temer? Porque, por mais que o seja, não o será por tantos anos depois de ter recebido tantas graças do Senhor. Quem poderá duvidar disso se o Senhor tanto me suportou, apenas porque eu desejava e procurava algum lugar e tempo para que Ele estivesse comigo, e isso muitas vezes sem vontade, graças à grande força que eu empregava contra mim ou que o próprio Senhor usava em mim? Se para os que não O servem, mas O ofendem, a oração faz tão bem e é tão necessária, quem poderia objetar que não há maior dano para os que servem a Deus e O querem servir do que deixar de fazê-la? Com certeza não posso entender que as pessoas passem com mais dores pelos sofrimentos da vida ao fecharem para Deus a porta através da qual Ele lhes daria a verdadeira felicidade. Na verdade, tenho pena delas, pois servem a Deus prejudicando a si mesmas, enquanto os que se dedicam à oração recebem a ajuda do Senhor, que, por menos que eles se esforcem, lhes dá contentamento para que suportem os sofrimentos.

9. Como tratarei adiante das alegrias dadas pelo Senhor aos que perseveram na oração, nada falarei aqui. Digo apenas que a oração foi a porta que me levou às grandes graças que recebi; se a fecharmos, não sei como Ele as poderá conceder; porque, ainda que queira entrar para deliciar-se com uma alma e cumulá-la de contentamento, Deus não terá por onde, pois a quer sozinha, pura e com vontade de recebê-Lo. Se lhe impusermos obstáculos e nada fizermos para retirá-los, como Ele poderá vir até nós? E ainda queremos que Deus nos conceda grandes favores!

10. Para que todos vejam a misericórdia de Deus e o grande benefício que tive por não ter abandonado a oração e a lição ou leitura, falarei, pois importa muito que se entenda isso, de como o demônio ataca uma alma para conquistá-la, e do artifício e benevolência com que o Senhor busca levá-la para Si. Digo-o para que se acautelem dos perigos que não evitei. Peço sobretudo, por amor de Nosso Senhor e pela grande afeição com que Ele procura fazer-nos voltar para Si, que se evitem as ocasiões de pecado; porque, uma vez nelas, em nada podemos confiar numa guerra onde tantos inimigos nos combatem e onde são tão fracas as nossas defesas.

11. Eu gostaria de saber descrever a escravidão da minha alma naquela época, porque bem entendia que estava cativa, mas não percebia em que con sistia o cativeiro, nem podia crer de todo que aquilo que os confessores não consideravam tão grave fosse tão ruim como eu o sentia em minha alma. Um deles, a quem consultei a respeito de uma reserva minha, disse-me que, mesmo que eu chegasse a um alto grau de contemplação, as relações e conversas de que eu me ressentia não me fariam mal.

Isso aconteceu nos últimos tempos, quando eu, com o favor de Deus, me afastara mais dos grandes perigos, apesar de não evitar por inteiro as ocasiões. Como me viam com bons desejos e ocupada com a oração, pensavam que eu fazia muito; minha alma, contudo, sabia que eu não fazia o que Aquele a quem eu tanto devia merecia. Lamento agora o quanto a minha alma sofreu, e a pouca ajuda que recebeu, a não ser de Deus, bem como a liberdade que lhe era dada para os passatempos e alegrias por aqueles que os consideravam lícitos.

12. Não era pequeno o meu tormento nos sermões, de que gostava muito. Quando eu via alguém pregar com espírito e discorrer bem, adquiria por essa pes soa uma afeição particular, sem que eu a procurasse e sem saber de onde me vi nha. Quase nunca o sermão me parecia tão ruim que eu não o ouvisse com von tade, embora os presentes dissessem que [o pregador] não pregava bem. Se fosse bom, causava-me um deleite particular. Eu quase nunca me cansava de falar de Deus ou de ouvir sobre Ele depois que comecei a ter oração. De um lado, con se guia grande consolo nos sermões, mas, de outro, me atormentava, porque eles me faziam ver que em muitas coisas eu não era como devia ser. Eu suplicava ao Senhor que me ajudasse; mas, pelo que vejo agora, eu não depositava total con­fiança em Sua Majestade nem perdia de todo a que punha em mim. Eu pro curava soluções, fazia esforços; mas ainda não compreendia que isso de nada serve se, mesmo não confiando por inteiro em mim, eu não pusesse a confiança em Deus.

Eu desejava viver, pois bem entendia que não vivia, combatendo, em vez disso, uma sombra da morte, sem que ninguém me desse vida e sem poder consegui-la eu mesma; e quem podia dá-la a mim tinha razão para não socorrer--me, pois tantas vezes me chamara a Si e outras tantas fora abandonado.

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2 comentários:

  1. Santa Teresa nos comunica, neste capítulo 8, a importância de nos apoiarmos na forte coluna da oração, quando relata haver muitas vezes falhado com Deus neste sentido. Ela tem plena consciência de que a alegria dos prazeres mundanos jamais pode ser comparada ao gozo de estar na presença de Deus, através da oração contemplativa; e sabe que a grande misericórdia de Deus nos conduz à oração, mesmo quando tratamos das coisas do mundo. Deus não desvia seu olhar daqueles que cultivam o gosto pela oração.
    Santa Teresa passou, em vinte e oito anos de oração, mais de dezoito, lutando entre lidar com Deus e com o mundo. Daí, concluirmos não ser fácil chegar, como ela, ao serviço de Deus, sabendo discernir as vaidades e contentamentos do mundo daquilo que é próprio de Deus. Somente a perseverança na oração fará com que o Senhor conduza nossa alma ao porto de salvação, usando de Sua misericórdia infinita. Mesmo o pecado não nos deve afastar da oração, porque ela nos ajudará a nos recuperarmos, sem dificuldades, das faltas cometidas.
    Sendo a oração mental, “um tratar de amizade - estando muitas vezes a sós - com quem sabemos que nos ama”, o Senhor exige que não cometamos faltas, que sejamos perfeitos, nos escreve Nossa Santa. Relata também que não entende porque o mundo inteiro não procura amar a Deus, sabendo que Ele é o bom amigo, que sofre com quem sofre para estar perto dEle: “Vós lhes sustentais a vida do corpo, dando-lhe mais saúde, vivificando-lhe a alma”.
    Injustificável é o proceder de quem reluta em começar a ter oração mental.
    Pensando que ofendemos a Deus, no muito que Lhe devemos, nos castigos merecidos, na glória dos Céus, nos grandes sofrimentos de Jesus pela nossa redenção e meditando e contemplando Sua vida - particularmente Sua Paixão- conseguimos quietude e alegria, pois sabemos que a humanidade de Jesus constitui sempre o único caminho de acesso a Deus e às exigências do Reino.
    A oração faz bem e é necessária a todos. Deixá-la seria o mesmo que fechar as portas para as grandes graças e contentamentos que o Senhor concede à alma e para a entrada da felicidade.
    Santa Teresa lamenta-se da pouca ajuda que obteve de seus confessores que, na época, não a ajudaram a afastar-se das ocasiões que considerava de pecado. Somente contou com a ajuda e a misericórdia de Deus. Tal relato nos deve abrir os olhos quanto à liberdade com os passatempos e alegrias, que por muitos são considerados lícitos, mas que não deixam de causar prejuízos. Sempre é louvável evitar as ocasiões de pecado, com bons desejos e ocupando-nos com orações. Falar com Deus e ouvi-Lo sempre nunca nos provocará cansaço, se soubermos amá-Lo e servi-Lo, de todo coração. Para tanto, há a necessidade de muito esforço e muita oração, nos adverte sempre Santa Teresa.

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  2. Neste capítulo 8, a Santa Madre faz reflexões profundas sobre a oração.
    Inicialmente, aconselha: "Quem começou a ter oração, não deve deixá-la, por mais pecados que cometa". Muitas vezes, acabamos por "cansar" de orar, por vários motivos: Queremos que Deus atenda nossos pedidos e, se Ele não nos atende, vemos nisto motivo para abandonar a oração. Queremos que as coisas aconteçam conforme nossos desejos e projetos,e nos esquecemos de que os pensamentos de Deus são diferentes dos nossos, e assim, Ele acaba por permitir certos acontecimentos em nossas vidas, os quais são contrários aos nossos desejos e projetos, e, por isso, "cansamos" de buscar o Senhor na oração.
    Isto sem falar nas tentações do inimigo: quantas vezes não quer o demônio convencer-nos de que não somos dignos de nos aproximarmos do Senhor por causa dos nossos muitos pecados? Com efeito, trabalha o demônio para que desistamos de buscar o Senhor na oração.
    Em segundo lugar, a Santa Madre nos apresenta sua célebre e clássica definição da oração: "Para mim, a oração mental não é senão tratar de amizade - estando muitas vezes a sós - com quem sabemos que nos ama". Trato de amizade com Deus, que nos ama. A definição da oração dada por Teresa é a expressão do que Jesus diz no Evangelho: "Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo, e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á" (Mt 6,6). A oração a sós com o Pai produz a intimidade com o Senhor e isto é trato de amizade, confiando-Lhe toda a nossa vida e sabendo que Ele nos ama, criou-nos por amor e tem um projeto para a vida de cada um de nós. Basta permitirmos que Ele, de fato, entre em nossa vida, sabendo que: "Os que se dedicam à oração recebem a ajuda do Senhor, que, por menos que eles se esforcem, lhes dá contentamento para que suportem os sofrimentos", e sabendo também que: "Porque, ainda que queira entrar para deliciar-se com uma alma e cumulá-la de contentamento, Deus não terá por onde, pois a quer sozinha, pura e com vontade de recebê-Lo".
    O caminho traçado por Teresa é certo e seus conselhos nos são de muita utilidade, para que nós, a exemplo de Teresa, permitamos que o Senhor seja o nosso maior Amigo.

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