terça-feira, 23 de março de 2010

Capítulo 9



Conta de que modo o Senhor começou a despertar a sua alma, dando-lhe luz em tão grandes trevas, e a fortalecer suas virtudes para não ofendê-Lo.

1. A minha alma já estava cansada e, embora quisesse, seus maus costumes não a deixavam descansar. Aconteceu-mede, entrando um dia no oratório, ver uma imagem guardada ali para certa festa a ser celebrada no mosteiro. Era um Cristo com grandes chagas que inspirava tamanha devoção que eu, de vê-Lo, fiquei perturbada, visto que ela representava bem o que Ele passou por nós.1 Foi tão grande o meu sentimento por ter sido tão mal-agradecida àquelas chagas que o meu coração quase se partiu; lancei-me a seus pés, derramando muitas lágrimas e suplicando-lhe que me fortalecesse de uma vez para que eu não O ofendesse.

2. Eu era muito devota da gloriosa Madalena e muitas vezes pensava em sua conversão, em especial quando comungava, certa de que o Senhor estava dentro de mim, pondo-me a Seus pés, por ter a impressão de que as minhas lá grimas não seriam desdenhadas; e eu não sabia o que dizia (pois muito fa zia quem permitia que eu as derramasse, já que eu logo esquecia aquele sen timento), encomendando-me a essa gloriosa Santa para que ela me alcanças se o perdão.

3. Mas esta última vez, com a imagem de que falei, parece-me ter sido mais proveitosa, porque eu já desconfiava muito de mim mesma e depositava toda a minha confiança em Deus. Creio que eu disse que não me levantaria dali enquanto a minha súplica não fosse atendida. Tenho certeza de que isso me beneficiou, porque a partir de então fui melhorando muito.

4. Eu rezava assim: como não podia raciocinar com o intelecto, esforçava-me por representar Cristo dentro de mim, e sentia-me melhor — ao que pa rece — nas passagens onde o via mais sozinho. Eu acreditava que, estando só e aflito, Ele haveria de me acolher, sendo eu pessoa necessitada. Eram mui tas as minhas simplicidades desse tipo.

Eu me sentia muito bem, em especial na oração do Horto, onde Lhe fazia companhia; ficava pensando no suor e na aflição que ele sofrera, desejando, caso fosse possível, enxugar-Lhe o suor tão doloroso, mas lembro-me de que nunca ousei fazê-lo, pois vinham à lembrança os meus graves pecados; eu fi cava ali, com Ele, enquanto os meus pensamentos deixavam, porque eram muitos os que me atormentavam. Por longos anos, quase todas as noites, antes de dormir, ao me encomendar a Deus para dormir, eu sempre pen sava um pouco nessa passagem da oração do Horto, mesmo antes de ser monja, porque me disseram que com isso se obtinham muitos perdões; e tenho para mim que a minha alma muito ganhou com isso, porque comecei a orar sem saber que o fazia, tendo esse costume ficado tão constante que nunca o aban donei, assim como nunca deixei de me persignar para dormir.

5. Voltando ao que dizia do tormento que os pensamentos me tra ziam: proceder sem o discurso do entendimento requer que a alma esteja muito con centrada ou perdida, perdida em distrações. Aproveitando, é grande o ga nho da alma, por ser progresso no amor. Mas, para chegar a isso, fazem--se grandes esforços, a não ser que o Senhor se digne conduzir a alma, num breve espaço de tempo, à oração de quietude, o que acontece com algumas pessoas que conheço. Para quem segue esse caminho, é útil um livro que leve ao rápido recolhimento. Eu também me beneficiava de ver campos, águas, flores; encontrava nessas coisas a lembrança do Criador, isto é, elas me despertavam e me recolhiam, servindo-me de livros, ao mesmo tempo que me lembrava da minha ingratidão e dos meus pecados. Era tão grosseiro o meu intelecto que jamais pude imaginar coisas do céu ou coisas elevadas, até que o Senhor as representasse de outra maneira para mim.

6. Eu era tão pouco hábil na representação de imagens mentais que, se não visse com os meus próprios olhos, pouco uso fazia da imaginação, ao contrá rio de certas pessoas que conseguem servir-se dela quando se recolhem. Eu só podia pensar em Cristo como homem, mas nunca pude representá--Lo no meu interior, por mais que lesse sobre a Sua beleza e por mais que con templasse as Suas imagens; eu agia como uma pessoa cega ou no escuro, e que, falando com outra, sabe que está com ela porque tem certeza da sua pre sença (digo, percebe e crê que ela está ali, mas não a vê); assim ficava eu quando pensava em Nosso Senhor. E por isso eu gostava tanto de imagens. In felizes os que por sua culpa perdem esse bem! Bem parece que não amam o Senhor, porque, se o amassem, gostariam de ver o Seu retrato, como no mun do há prazer em contemplar o retrato daqueles a quem se quer bem.

7. Deram-me nessa época as Confissões de Santo Agostinho.2 Parece que o Senhor o ordenou, porque nunca as procurei nem as tinha visto. Sou muito afei çoada a Santo Agostinho, porque o mosteiro onde fui secular era de sua Ordem,3 e também por ele ter sido pecador. Nos santos que o foram e, de pois de sê-lo, foram atraídos outra vez pelo Senhor eu encontrava muito con solo, parecendo-me que neles encontraria ajuda e que, como os havia per­doado, o Senhor também poderia me perdoar. Só uma coisa me desconso lava, como eu disse:4 o Senhor só os chamou uma vez, e eles não voltaram a cair; quanto a mim, já eram tantos os chamados que isto me afligia. Mas, considerando o amor que Ele tinha por mim, eu me reanimava, pois da Sua misericórdia jamais duvidei, enquanto de mim duvidava com freqüência.

8. Valha-me Deus! Como me espanta a teimosia da minha alma, apesar de tanta ajuda de Deus! Traz-me medo ver minha grande fraqueza e os vín culos que me impediam de me entregar por inteiro a Deus.

Começando a ler as Confissões, tive a impressão de me ver ali. Passei a encomendar-me muito a esse glorioso Santo. Quando cheguei à sua conversão e li que ele ouvira uma voz no jardim,5 senti ser o Senhor quem me fa lava, tamanha foi a dor do meu coração. Passei muito tempo chorando, com grande aflição e sofrimento. Como sofre uma alma, valha-me Deus, por perder a liberdade de ser senhora de si mesma, e que tormentos padece! Hoje me admiro por ter podido viver com tanta aflição. Glória a Deus, que me deu vida para eu sair de uma morte tão mortal.

9. A minha alma ganhou grandes forças da Divina Majestade, que deve ter ouvido minhas súplicas e ter-se condoído por tantas lágrimas. Aumentou em mim a vontade de ficar mais tempo com Ele; passei a fugir das ocasiões de pecado porque, livre delas, logo voltava a amar Sua Majestade. Eu bem sabia que O amava, mas não compreendia, como iria entender, o que é amá--Lo verdadeiramente.

Creio que eu nem bem me dispunha a querer servi-Lo e Sua Majestade já recomeçava a me deliciar. Eu via que aquilo que os outros procuram adquirir com muito esforço, o Senhor instava comigo para que eu o recebesse, visto que, nos últimos anos, já me concedia gostos e regalos.6 Jamais me atrevi a suplicar que me desse isso ou ternura de devoção; eu lhe pedia apenas que me desse graças para que não O ofendesse e que perdoasse os meus grandes pecados. Vendo-os tão grandes, nunca me atrevi conscientemente a desejar regalos ou gostos. Para mim, a Sua piedade já fazia demais permitindo-me permanecer diante de Si e trazendo-me à Sua presença, pois eu via bem que, se Ele não me procurasse tanto, eu sozinha nunca o faria.

Lembro-me apenas de uma ocasião em que Lhe pedi consolações, por estar muito necessitada; porém, vendo que o fazia, fiquei tão confusa que a dor de me ver com tão pouca humildade me deu o que eu me atrevera a pedir. Eu sabia que não era errado pedi-las, mas achava que quem as merecia eram os que estavam bem dispostos, e que tinham procurado a verdadeira devoção com todas as suas forças, sendo esta não ofender a Deus e estar pronto e determinado para todo bem. Eu pensava que as minhas lágrimas eram coisinhas de mulher, ineficazes, pois eu não conseguia com elas o que desejava. No entanto, acho que me valeram; porque, especialmente depois dessas duas vezes7 de tão grande arrependimento e de tanta dor no coração, passei a me dedicar mais à oração e a me afastar das coisas que me pudessem trazer a perdição, embora não o fizesse de todo, contando com a ajuda de Deus para delas me separar. Como Sua Majestade só esperava alguma correspondência de minha parte, as graças espirituais foram aumentando da maneira como vou contar. Trata-se de algo incomum, porque o Senhor as costuma dar aos que têm maior pureza de consciência.


2 comentários:

  1. Este nono capítulo do Livro da Vida tem por objeto a narração da conversão de Santa Teresa. Ela destaca dois acontecimentos que favoreceram a sua decisão em lutar para não mais ofender a Deus: o seu encontro com uma imagem de Cristo Chagado, que lhe provocou a sensibilidade com relação a todo o sofrimento de Jesus, e a leitura das Confissões de Santo Agostinho.
    Em todo o capítulo, a Santa Madre faz referência ao arrependimento de todos os seus pecados. Buscava a intercessão de Santa Maria Madalena e de Santo Agostinho, a fim de obter o perdão do Senhor. Ela lastimava o fato de cair em pecado tantas vezes, diante de um Deus tão Bondoso. Foram abundantes as lágrimas que verteu, chorando os seus pecados. Buscava consolo nos Santos acima mencionados porque tinham sido pecadores e alcançaram o perdão de Deus. Ainda assim, Teresa lamentava que ela, tendo sido tão favorecida pelo Senhor por meio da oração, continuasse a cair em pecado, ao passo que esses Santos, uma vez convertidos, não voltaram a ofender a Deus.
    Mas Teresa reconhece que o seu encontro com a imagem de Cristo Chagado (por meio da qual ela se sensibilizou diante de todo o sofrimento que Jesus passou para salvar a Humanidade) e a leitura das Confissões foram acontecimentos fundamentais no processo de sua conversão. Com efeito, ela mesma narra: "especialmente depois dessas duas vezes, de tão grande arrependimento e de tanta dor no coração, passei a me dedicar mais à oração e a me afastar das coisas que me pudessem trazer a perdição, embora não o fizesse de todo, contando com a ajuda de Deus para delas me separar".
    Diante da sua conversão, o Senhor a cumula de graças e favores divinos, aos quais ela chama "gostos e regalos". Importante é sua reflexão quanto a estes "gostos e regalos". Não deve a alma buscar ao Senhor a fim de alcançar tais graças. Elas são concedidas pelo Senhor, mas não devem ser o objetivo da oração. Se o Senhor concede consolo na oração, muito bem, é uma graça, uma dádiva gratuita do Senhor. No entanto, o objetivo da oração há de ser elevar a alma a Deus, buscando exaltá-Lo, e não usar da oração para alcançar deleites. Ou seja, a meta da oração é Deus e não a pessoa que ora; a glória é de Deus e não se deve usar da oração para alcançar a própria glória, buscando favores espirituais para alimentar a própria vaidade. Não sei se estou me expressando bem, mas o que quero dizer é que a oração é o meio de intimidade com o Senhor, onde se busca adorá-Lo em espírito e verdade, porque Ele é Deus; a oração não deve ter como objetivo alcançar gostos ou consolos. Se eles vêm, ótimo! Mas eles não devem ser o objetivo da oração.
    Finalmente, o Senhor concede graças espirituais à Santa Teresa, tendo em vista a sua correspondência ao Senhor, buscando evitar toda ocasião de pecado.

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  2. Cristo é a pessoa que intervém na vida de Santa Teresa com absoluta eficácia e capacidade de curar e plenificar. Este capítulo 9 explica seu encontro decisivo com Ele, na ocasião em que viu a imagem de Cristo com grandes chagas, em um oratório. Ela se surpreendeu inesperadamente e diante de seu aspecto “fiquei perturbada, visto que representava bem o que Ele passou por nós... lancei-me a seus pés, derramando muitas lágrimas e suplicando-Lhe que me fortalecesse de uma vez para que eu não o ofendesse”. “Era a imagem de um tristíssimo e terno Eccehomo, que ainda é venerada na Mosteiro de Ávila”.(Silvério – V 9,1). Também a lembrança da mulher bíblica, Madalena e, mais tarde, seu encontro com Santo Agostinho, em suas Confissões, fizeram-na levar em conta que eles, depois de convertidos, não voltaram à vida de antes, enquanto ela, muitas vezes, necessitou procurar o caminho da conversão.
    Agora, com esta visão da imagem – que não fora nada sobrenatural e sim muito real e ocasional – Teresa se sente realmente outra, com uma melhoria que a introduz no seu decisivo caminho, porque intensifica e aprofunda as inefáveis graças do “trato de amizade com Cristo”. Todo seu método de oração passou a consistir em “trazer Jesus Cristo, nosso bem e Senhor, dentro de mim presente” (V 9,4)..
    Santa Teresa rezava tentando representar Cristo nas passagens onde estava mais sozinho e insistia, em sua própria vida, na importância capital da meditação e contemplação da vida de Cristo, particularmente da Paixão. Para Santa Teresa a devoção à Paixão de Cristo é insubstituível; é a forma eficaz de dar realismo à oração e de fazer da vida mística uma imitação de Jesus na vida concreta. Observa que muito ganhou com isto, uma vez que encontrou na humanidade de Jesus a garantia de equilíbrio e realismo da contemplação cristã. Sempre pedia ao Senhor que conduzisse sua alma, brevemente, à oração de quietude. Só podia pensar em Cristo como homem, não conseguindo representá-lo no seu interior. Isto ela mesma declara porque percebe e crê que o Senhor estava ali presente, quando pensava nEle. Movida pela vontade de estar sempre com o Senhor, passou a evitar as ocasiões de pecado, porque livre delas estaria sempre mais perto de Deus. Compreendeu que o essencial é pedir ao Senhor as graças necessárias para não ofendê-Lo e o perdão dos pecados.
    Compreendendo Santa Teresa sentimos que ela nos conduz à devoção à Paixão de Cristo e nos torna conscientes que devemos evitar as ocasiões de pecado, trazendo Jesus sempre presente em nós. Faz-nos conhecer que todas as outras coisas: gostos e regalos (no léxico teresiano designam certas graças ou formas de oração mística-V 9,9 nota 6) ou ternura de devoção, o Senhor nos concede por sua infinita misericórdia. Para merecê-las, precisamos procurá-las usando todas as nossas forças para não ofendê-Lo e com toda humildade, conscientes de que o Senhor costuma dar graças espirituais aos que têm maior pureza de coração.

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