segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Capítulo 7




Conta como foi perdendo as graças que o Senhor lhe fizera e a vida ruim que começou a ter.
Fala dos males decorrentes de os mosteiros de monjas não serem muito fechados.
1. E assim comecei, de passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade, de ocasião em ocasião, a envolver-me tanto em tão grandes ocasiões e a estragar a alma em grandes vaidades que tinha vergonha — em tão particular amizade como é tratar de oração — de me aproximar de Deus. Contribuiu para isso o fato de que, como os pecados aumentaram, o gosto e a alegria da prática da virtude começaram a escassear.1 Eu via muito claramente, Senhor meu, que isso me faltava por eu faltar a Vós.
Esse foi o mais terrível engano que o demônio me podia fazer sob a capa de humildade: por me ver tão perdida, passei a temer a oração. E eu tinha a impressão de que era melhor andar como os muitos.2 Porque, em ser ruim, eu era das piores, rezando apenas as orações a que estava obrigada, e vocalmente, pois não era justo fazer oração mental e relacionar-se tanto com Deus quem merecia estar na companhia dos demônios e enganava os outros, visto que, no exterior, mantinha as aparências. A casa onde eu estava não tem culpa, porque eu, com a minha malícia, fazia com que me tivessem em alta conta. Mas eu não o fazia em sã consciência, fingindo cristandade; porque, em termos de vanglória e hipocrisia — glória a Deus! —, não me lembro de O ter um dia ofen dido, pelo que posso julgar. Ao primeiro sinal, era tanto o meu pesar que o demônio era derrotado, e eu lucrava; nesse aspecto, poucas tentações tenho tido. Se por acaso Deus tivesse permitido que eu fosse tentada nisso com a mes ma intensidade com que o tenho sido em outras coisas, eu também teria caído; mas Sua Majestade até agora me tem protegido disso. Seja para sempre bendito! Na realidade, desgostava-me muito que gostassem de mim, porque eu sabia o que havia em segredo em mim.
2. Não me julgavam tão ruim porque, apesar de eu ser jovem e de estar fre qüentemente exposta a tantas oportunidades de pecado, as pessoas viam que eu inúmeras vezes me afastava, buscando a solidão para rezar e ler, falar muito de Deus, fazer pintar a sua imagem em vários lugares e conservar o ora tório, colocando nele coisas que produzissem devoção. Eu não falava mal dos outros, havendo ainda em mim outros hábitos aparentemente virtuosos. E eu, iludida, sabia aproveitar as coisas que o mundo em geral estima. Assim, da vam tanta liberdade a mim quanto às mais antigas, e até mais. Eu era obje to de grande confiança. De fato, cometer certas ousadias ou fazer coisas sem licença, como falar por alguma fresta, por cima dos muros ou à noite, num mosteiro, não eram do meu feitio. Nunca o fiz, porque o Senhor me segurava com a mão. Creio — porque com atenção e ponderação eu observava muitas coisas — que eu não queria correr o risco de, pela minha ruindade, pôr em perigo a honra de tantas boas religiosas. Como se fossem dignas outras coisas que eu fazia! Na verdade, ainda que fosse muito, o mal não era tão consciente, como o seria se eu fizesse essas coisas.
3. A meu ver, causou-me grande prejuízo não estar num mosteiro enclau su rado. Porque a liberdade que as que eram boas podiam ter sem culpa (por que não lhes era exigido mais, já que não prometiam clausura)3 a mim, que sou ruim, por certo teria levado ao inferno se eu não tivesse sido libertada desse risco por tantos meios, remédios e dons particulares do Senhor. Por isso, considero muito perigosos mosteiros de mulheres com liberdade. Eles se tornam portas abertas para que as que quiserem ser ruins tomem o caminho do inferno, em vez de remédio para as suas fraquezas.
Isso não se aplica ao meu.4 Nele, há muitas que servem ao Senhor com sinceridade e bastante perfeição, não podendo Sua Majestade, por ser bom, deixar de favorecê-las; além disso, não é dos mais abertos e, nele, respeita--se toda a observância. Falo de outros, que conheço e vi.
4. Muito me entristece que o Senhor precise fazer apelos particulares — e não uma, mas repetidas vezes — para que as monjas se salvem, dada a permissão para cortesias e entretenimentos mundanos e o tão mau entendimento daquilo a que estão obrigadas. Queira Deus que elas não tenham por virtude o que é pecado, como tantas vezes fiz. Compreender essas verdades é tão difícil que, para consegui-lo, é necessário que o Senhor ponha nisso realmente a Sua mão.
Se quisessem seguir o meu conselho, os pais que põem as filhas em mosteiros onde elas, em vez de encontrar recursos para seguir o caminho da salvação, correm maiores riscos do que no mundo fariam melhor, para a própria honra das filhas, se as casassem, mesmo em condições humildes, ou as mantivessem em casa. Isso é preferível a tê-las nesses mosteiros, a não ser que elas tenham ótimas inclinações. Mesmo assim, que Deus as ajude a conservá-las. Na casa dos pais, o mau comportamento só se mantém oculto por pouco tempo; nesses mosteiros, pelo contrário, mantém-se até que o Senhor tudo revele. Os danos atingem não apenas a culpada, mas a todas. Às vezes, as pobrezinhas não têm culpa, porque seguem o que vêem; é uma lástima verificar que, com freqüência, afastando-se do mundo e acreditando que vão servir ao Senhor e preservar-se dos perigos, elas se encontram em dez mundos juntos, sem saber como se valer nem remediar; a mocidade, a sensualidade e o demônio as convidam e inclinam a seguir coisas que são do próprio mundo; elas vêem ali o que é considerado bom, por assim dizer. Acho que elas são em parte como os desventurados hereges, que querem cegar a si mesmos e ensinar que é bom aquilo que seguem, e assim o crêem, embora não acreditem de fato, porque têm dentro de si quem lhes diga que é mau.
5. Ó enorme mal, enorme mal dos religiosos — refiro-me tanto às mu lhe res como aos homens —, que vivem onde não se guarda a religião, num mos teiro onde existem dois caminhos, igualmente trilhados: o da virtude e da religião, e o da falta de religião. Não faço justiça, eles não são igualmente trilhados; devido aos nossos pecados, o mais seguido, e mais favorecido, é o mais imperfeito. O da verdadeira religião é tão pouco percorrido que quem desejar de fato vivê-lo em tudo, seguindo sua vocação, deve temer mais os de sua própria casa do que toda a corte demoníaca. Essas pessoas devem ter mais cautela e reserva ao falarem da amizade que desejam ter com Deus do que de outras amizades e vontades introduzidas nos mosteiros pelo demônio. Não vejo de fato razão para estranharmos os tantos males que há na Igreja se os que de veriam ser modelo de virtude exibem uma imagem tão apagada que não lembra o primor que os santos do passado, com o seu espírito, dei xa ram nas ordens religiosas. Que a divina Majestade remedie tanto mal, como vê que é preciso, amém.
6. Porque, tendo começado a participar dessas coisas, visto não me parecer — por ser costume — que disso viessem para a minha alma o prejuízo e a distração — o que só mais tarde constatei —, tive a impressão de que essas visitas, tão generalizadas em muitos mosteiros, não fariam maior mal a mim que às outras, cuja bondade eu conhecia. Eu não via que elas tinham muito mais virtudes e que, onde para elas talvez não houvesse perigo, para mim havia. Não duvido de que, mesmo limitadas à perda de tempo, essas coisas envolvem perigo. Estando com uma pessoa que há pouco conhecera, percebi que o Senhor queria dar-me a entender que aquelas amizades não eram convenientes, alertando-me e me esclarecendo sobre a minha grande ce gueira: de fato, eis que vi Cristo representado diante de mim, com muito ri gor, mostrando-me o quanto aquilo lhe pesava.5 Vi-o, com os olhos da alma, com mais clareza do que o poderia ver com os olhos do corpo. A sua imagem tornou-se tão indelével que até hoje, mais de vinte e seis anos depois, ainda tenho a sensação de vê-lo. Tomada de um profundo temor e de grande perturbação, não quis mais receber a pessoa com a qual me encontrava então.
7. Muitos prejuízos me causou não saber ser possível ver sem usar os olhos do corpo; e o demônio me ajudou para que eu assim pensasse, fazendo--me entender que isso era impossível, que seria imaginação, artes diabólicas e coisas semelhantes. No fundo, porém, mantive a impressão de que se tratava de obra de Deus; mas, como aquela lembrança não me agradasse, procurei me dissuadir, sem ousar contar aquilo a pessoa alguma. Insistiam muito comigo, garantindo-me que receber aquela visita não me prejudicava e que, em lugar de perder a boa fama, eu, fazendo-o, a aumentaria. Por isso, voltei atrás. A partir de então, em outras oportunidades e com outras pessoas, permaneci vários anos nesse divertimento pestilento. No entanto, eu não o considerava, visto participar dele, como mau, embora visse claramente que não era bom. Mas nenhuma pessoa me trouxe tanta dissipação quanto essa, dada a afeição que eu nutria por ela.
8. Certa vez, entretida em sua companhia, vimos — e outras pessoas que estavam ali também o viram — uma espécie de sapo grande dirigir-se para nós, caminhando com uma rapidez que não é própria dessas criaturas.6 Não tenho como explicar o aparecimento, em pleno dia, de semelhante criatura naquele lugar, pois aquilo nunca ocorrera. E o que isso me causou por certo envolvia mistério, jamais tendo saído da minha lembrança. Ó Deus, quão grandioso sois! Com que solicitude e piedade me avisáveis de todas as maneiras, e que pouco proveito tirei!
9. Havia ali uma monja, minha parente, antiga e grande serva de Deus, muito religiosa. Ela também me alertava algumas vezes; eu, porém, não acreditava nela e ainda ficava desgostosa, pensando que ela se escandalizava sem motivo.
Disse isso para que se entenda a minha maldade, e a grande bondade de Deus, e para que se veja o quanto mereci o inferno por tamanha ingratidão. E também para que, se em algum momento Deus ordenar, e for obedecido, que se leia isto, as monjas possam tirar proveito de minhas experiências. Peço a todas que, por amor a Nosso Senhor, fujam dessas recreações. Possa Sua Majestade, através de mim, resgatar as tantas pessoas que enganei sem desejar, dizendo-lhes que isso não era ruim, e promovendo tão grande perigo com a cegueira que tinha. Certo é que, devido ao mau exemplo, como eu disse,7 causei bastante mal, sem pensar que o fazia.
10. Estando doente naqueles primeiros dias, antes que pudesse valer-me a mim mesma, eu tinha grande desejo de fazer o bem aos outros — tentação muito comum aos iniciantes, que comigo teve bons resultados. Era tanto o meu amor pelo meu pai que resolvi transmitir-lhe o tesouro que acreditava ter encontrado na oração, que eu considerava o maior desta vida. Fazendo rodeios, da maneira possível, também tentei levá-lo a ter aquele bem que tanta alegria me dava. Com esse propósito, dei-lhe livros. Ele, muito virtuoso, como já falei,8 se dedicou tanto a esse exercício que em cinco ou seis anos fizera muitos progressos; com isso, vinha-me um grande consolo, e eu muito louvava o Senhor. Provações de grande monta o atingiram de todos os lados, tendo ele sofrido todas em perfeita concordância com a vontade de Deus. Ele me visitava muitas vezes, consolando-se ao falar sobre coisas de Deus.
11. Mais tarde, quando eu andava tão destruída e sem ter oração, não tolerei dei xá-lo pensar que eu era a mesma de antes; porque passei mais de um ano sem ter oração, acreditando ser com isso mais humilde. Essa, como depois di rei,9 foi a maior tentação que tive porque, por meio dela, eu acabaria de me perder. Enquanto ora va, mesmo ofendendo a Deus algumas vezes, eu conseguia, com o Seu au xílio, recolher-me e apartar-me da ocasião. Como o bendito ho mem se apegava a esses assuntos, eu sofria por vê-lo tão enganado ao pen sar que eu tratava com Deus como costumava e lhe disse que já não orava, mas não lhe contei a causa. Atribuí-o às minhas enfermidades, porque, embo ra curada daquela doença tão grave, sempre tive e tenho ainda outros grandes ma les. É verdade que há algum tempo tenho melhorado, pois as dores não são tão intensas; no entanto, elas não deixam de me afligir de várias maneiras.
Em especial, tive durante vinte anos vômitos pela manhã, o que me impedia de alimentar-me até o meio-dia e, por vezes, até mais tarde. Agora que freqüento mais vezes a comunhão, é à noite, antes de me deitar, com muito mais sofrimento, que tenho de provocá-los com penas ou outras coisas, porque, se não o faço, é muito grande o meu mal-estar; e vejo que quase nunca estou sem muitas dores, às vezes bem graves, especialmente no coração, se bem que esse mal, antes contínuo, agora é bem raro. Há oito anos curei-me da paralisia aguda e das freqüentes febres. Incomodo-me tão pouco com todos esses males que é comum eu ter alegria, porque tenho a impressão de com isso servir ao Senhor de alguma maneira.
12. E o meu pai acreditou ser essa a causa, porque, como ele não dizia mentira, considerou, conforme o que eu tratava com ele, que também eu não a diria. Acrescentei, tentando convencê-lo mais, que já era muito esforço rezar o ofício no coro (embora eu visse que não havia desculpa para isso). Por outro lado, isso não era suficiente para deixar de fazer uma coisa que não exige força corporal, mas só amor e costume. Quando queremos, o Senhor dá sempre oportunidade. Sempre, repito, visto que, se em certas circunstâncias ou em caso de doença, não se consegue ter muito tempo de solidão, há outras ocasiões em que a saúde o permite. Na doença e em situações difíceis, a alma que ama tem como verdadeira oração fazer a dádiva dos seus sofrimentos, lembrar-se daquele por quem os padece, conformar-se com as suas dores, havendo muitas outras coisas possíveis. Trata-se do exercício do amor; pois não somos obrigados a orar quando temos momentos de solidão, porque, mesmo à falta destes, sempre se pode orar. Com um pouquinho de boa vontade, obtêm-se muitos lucros nos momentos em que o Senhor nos tira o tempo da oração com sofrimentos. E assim era comigo quando a minha consciência era boa.
13. Mas ele, com a sua opinião de mim e o amor que me tinha, em tudo acreditou, e de mim teve pena. Mas o seu espírito tinha se elevado tanto que eram rápidas as suas visitas. Logo depois de me ver, partia, dizendo que permanecer era tempo perdido. Como eu desperdiçava tempo com outras vaidades, nem me dava conta disso.
Também tentei fazer com que outras pessoas tivessem oração. Mesmo acossada por essas vaidades, eu percebia que elas gostavam de rezar e lhes dizia como meditar, e lhes dava livros, o que lhes trazia proveito. Porque esse desejo de que outros servissem a Deus, eu o tinha, como já disse,10 desde que comecei a fazer oração. Eu julgava justo que, como não servia ao Senhor de acordo com a minha consciência, a iluminação que Sua Majestade me dera não se perdesse, levando outros a servi-lo por mim. Narro-o para que se veja a minha grande cegueira ao me deixar perder e procurar ao mesmo tempo salvar os outros.
14. Nessa época meu pai foi acometido da doença que o matou, e que durou alguns dias. Fui cuidar dele, estando mais enferma da alma do que ele do corpo, presa de muitas vaidades, embora não de forma que — pelo que eu sabia — estivesse em pecado mortal nesse tempo perdido de que falo, pois, entendendo-o eu, de nenhuma maneira o estaria.
Enfrentei grandes trabalhos durante a sua doença. Creio tê-lo compensado pelo que ele passara com as minhas. Apesar de estar muito mal, eu me esforçava, pois, faltando-me ele, faltar-me-iam todo o bem e todo o consolo que ele me trazia.11 Fingindo nada sentir, mostrei-me forte, sem deixá-lo perceber a minha pena, tendo ficado ao seu lado até que expirasse; no entanto, tive a impressão, ao ver que a sua vida acabava, de que me arrancavam a alma, tanto era o amor que lhe tinha.
15. A sua morte e a sua vontade de morrer foram dignas de louvores ao Senhor. Ele nos aconselhou, depois de ter recebido a Santa Unção, encarregando-nos de encomendá-lo a Deus, de pedir misericórdia para ele; disse-nos que sempre O servíssemos, que nos lembrássemos de que tudo desta vida se acaba. Falava-nos, em lágrimas, do grande pesar de não ter servido ao Senhor como deveria; meu pai desejava ter sido um frade que seguisse a mais estreita observância.
Tenho certeza de que, quinze dias antes, o Senhor o fizera ver que não havia de viver; porque, antes disso, embora estivesse mal, não pensava nisso; a partir de então, embora melhorasse e fosse consolado pelos médicos, pouco caso fazia disso e só se importava em preparar a alma.
16. O que mais o afligia era uma permanente dor, muito forte, nas costas; esta se tornava às vezes tão aguda que o atormentava. Eu lhe disse que, por ser ele tão devoto do Senhor carregando a cruz, pensasse que Sua Majestade desejava, com essa dor, levá-lo a sentir algo do que sofrera com aquela dor. Foi tal a sua consolação que, pelo que sei, ele nunca mais gemeu.
Ele passou três dias quase sem sentidos. No dia da morte, o Senhor lhe devolveu a consciência de um modo tão perfeito que nos causou admiração. Assim se manteve até que, no meio do Credo, que ele mesmo dizia, expirou. Parecia um anjo — e estou convencida de que realmente o fosse, por ter alma tão boa, bem como disposição.
Não sei por que contei isso, a não ser para culpar mais a minha vida ruim depois de ter visto aquela morte e de ter entendido aquela vida. Eu deveria ter melhorado, pelo menos para ser um pouco parecida com o meu pai. Seu confessor, um dominicano12 muito erudito, falou que não duvidava de que meu pai tivesse ido direto para o céu. Como o confessava há alguns anos, esse dominicano louvava a sua pureza de consciência.13
17. Esse padre dominicano, virtuoso e temente a Deus, muito me ajudou. Confessei-me com ele, e ele se encarregou de zelar pela minha alma e de alertar-me para a perdição a que eu me entregara. Ele me fazia comungar de quinze em quinze dias. E, pouco a pouco, no contato com ele, falei-lhe de minha oração. Ele me disse que não a abandonasse, que ela só me podia trazer proveito. Comecei a voltar a ela, embora sem evitar as ocasiões de pecado, e nunca mais a deixei.
A minha vida era trabalhosa ao extremo, porque, na oração, eu via melhor as minhas faltas. De um lado, Deus me chamava; do outro, eu seguia o mun do. Davam-me grande alegria todas as coisas de Deus, mas eu me via li gada às do mundo. Tenho a impressão de que desejava conciliar esses dois co ntrários, tão inimigos um do outro: a vida espiritual e os gostos, alegrias e divertimentos dos sentidos. Na oração, eu passava por grandes trabalhos, por que o espírito não era senhor, mas escravo; por isso, eu não podia me recolher dentro de mim (que era o meu modo de proceder na oração) sem levar comigo mil vaidades.
Passei assim muitos anos, a ponto de agora me espantar com o fato de uma criatura poder sofrer tanto tempo sem deixar um ou outro desses contrá rios. Bem sei que deixar a oração já não estava em minhas mãos, porque Aquele que me queria para me conceder maiores graças me sustentava com as Suas.
18. Oh! Valha-me Deus! Se eu pudesse dizer as ocasiões de que Sua Majestade me livrou nesses anos, e de como eu tornava a me envolver nelas, para não falar do risco, de que Ele me afastou, de perder todo o crédito. E eu, nas minhas obras, revelava quem era, enquanto o Senhor, encobrindo o mal, fazia surgir alguma pequena virtude, se é que eu a tinha, tornando-a gran de aos olhos de todos, de modo que estes sempre me tinham em alta conta! Porque, apesar de algumas vezes as minhas vaidades se evidenciarem, todos viam outras coisas que pareciam boas e por isso não acreditavam naquelas.
O Conhecedor de todas as coisas já via então que isso era necessário para que eu tivesse algum crédito mais tarde, quando me dedicasse a Seu serviço. Sua soberana grandeza não via os grandes pecados, mas sim os desejos que eu muitas vezes tinha de servi-Lo e o pesar por não ter em mim forças para levá-lo a efeito.
19. Ó Senhor da minha alma! Como poderei enaltecer as graças que me concedestes nesses anos? E o fato de, na época em que eu mais Vos ofendia, Vós logo fazerdes com que eu me arrependesse para fruir dos Vossos favores e consolações? Na verdade, escolhíeis, Rei meu, o castigo mais delicado e mais penoso que podia existir, pois bem sabíeis o que mais dores me causaria. Castigáveis as minhas faltas com enorme ternura.
E não acredito dizer desatinos, embora pudesse estar desatinada, ao recordar a minha ingratidão e maldade.
Para mim, era muito mais penoso receber mercês, tendo cometido graves faltas, do que receber castigos. Uma única graça por certo me abalava, confun dia e fatigava mais do que as minhas muitas enfermidades, ao lado de outras provações. Estas últimas, como eu bem o via, eram merecidas, expiando de alguma maneira um pouco dos meus grandes pecados (embora tudo fosse pouco, porquanto eles eram muitos). Mas ser recebida com ternura outra vez, tendo sido tão ingrata nas anteriores, era um tormento ine narrável para mim e, acredito, para todos os que têm algum conhecimento ou amor de Deus, algo que, sendo virtuosos, podemos perceber aqui. Vinham -me lágrimas e aborrecimentos por eu ver o que sentia, percebendo-me prestes a cair outra vez, embora a minha determinação e o meu desejo fossem fi rmes naquela hora.
20. Grande mal é estar a alma só entre tantos perigos. Tenho a im pressão de que, se tivesse com quem falar disso tudo, eu teria tido ajuda para não fraquejar outra vez, ao menos por vergonha, já que, com relação a Deus, já não a tinha.
Por isso, eu aconselharia aos que têm oração que, especialmente no prin cípio, procurem ter amizade e relações com pessoas que se ocupem da mesma coisa. Isso é importantíssimo, pois, além da ajuda mútua nas orações, muito há a lucrar aí! E não sei por que (já que, para conversas e prazeres hu manos, mesmo que não sejam muito bons, procuramos amigos com quem folgar e melhor aproveitar esses prazeres vãos) não se há de permitir à alma que começa a amar e a servir a Deus com sinceridade que compartilhe da companhia de pessoas que têm oração, confiando-lhes suas alegrias e tris te zas, visto serem os seus sentimentos os mesmos. De fato, quem realmente deseja obter a amizade do Senhor não deve temer a vanglória, para que, ao primeiro sinal de fraqueza, possa escapar com mérito. Creio que, tendo esse objetivo, obterá maior proveito para si e para os seus ouvintes, adquirirá mais experiência e, ainda sem entender como, ensinará a seus amigos.
21. Quem se vangloriar por conversar sobre isso também terá vanglória em ouvir a missa com devoção quando estiver sendo observado, bem como em praticar outras coisas que, a não ser que deixe de ser cristã, a pessoa tem de fazer sem temer a vanglória.
Porque isso tem tamanha importância para almas que não estão fortalecidas na virtude — que têm tantos inimigos e amigos a incitá-las ao mal — que não sei como insistir mais. Acho que o demônio usa um ardil que muito lhe serve: ele leva os bons a ocultar o fato de buscarem realmente amar e contentar a Deus; e tem incitado a que se descubram outras amizades pouco honestas, tão em uso, quase se gloriando delas e chegando a apregoar as ofensas que, assim agindo, cometem contra Deus.
22. Não sei se falo despropósitos. Se o faço, que Vossa Mercê os revele; e, se não o faço, suplico-vos que me ajudeis na minha ignorância, acrescentando aqui outros elementos. Porque as coisas do serviço de Deus já andam tão fracas que é necessário, aos que O servem, apoiarem-se mutuamente para irem em frente, tal é a fama de bondade dos divertimentos e vaidades mundanos — para os quais poucos olhos estão atentos.14 Contudo, se uma única al ma começa a cuidar de Deus, são tantos os murmúrios que ela é obrigada a procurar defesa e companhia até ficar forte e não ter medo de padecer. Se não o fizer, ver-se-á em grandes apuros.

Creio ser esse o motivo de muitos santos irem viver nos desertos; é pró prio do humilde não confiar em si mesmo, mas acreditar que o Senhor lhe da rá auxílio em atenção àqueles com quem conversa, pois a caridade aumenta ao ser transmitida, havendo mil benefícios a ser obtidos, de que eu não falaria se não tivesse grande experiência da enorme importância disso.
Reconheço ser mais fraca e ruim que todos os nascidos, mas acredito que quem se humilha, embora sendo forte, nunca perde, razão por que precisa dar crédito a quem tem mais experiência. Quanto a mim, digo ape nas que, se o Senhor não me tivesse revelado essa verdade e me dado con dições de ter contatos freqüentes com pessoas que têm oração, eu teria ter minado, caindo e levantando, no centro do inferno. Para a queda, tinha a aju da de muitos; para levantar-me, no entanto, estava tão sozinha que até hoje me espanta não ter caído de vez. Louvo a misericórdia de Deus, pois só Ele me dava a mão.
Bendito seja para sempre e sempre. Amém.

7 comentários:

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  2. Temos a considerar neste capítulo 7:

    - Teresa nos adverte quanto a nos envolvermos com as vaidades e preocupações mundanas, que podem nos levar a sentirmos vergonha de nos aproximar de Deus. Ela admite haver passado a temer a oração, rezando vocalmente apenas as orações a que estava obrigada. Sentia-se prejudicada por não estar em um mosteiro totalmente enclausurado: visitas e tagarelices não só no parlatório, mas também nas janelas ou através de frestas dos muros. Com isso, mais tarde, aprendeu a considerar muito perigosos os mosteiros com mulheres com liberdade, “onde existem dois caminhos, igualmente trilhados: o da virtude e da religião, e o da falta de religião... devido aos nossos pecados, o mais seguido e mais favorecido, é o mais imperfeito”. Ali, na Encarnação se tornara uma monja como as outras: esqueceu-se das apaixonadas leituras do Terceiro Abecedário, dos tempos em que experimentara a amizade com Deus e as alegrias e o conforto da oração interior. Chamou-me a atenção Santa Teresa observar que nos mosteiros o mau comportamento demora mais a ser descoberto que na casa dos pais: só quando o Senhor tudo revela. Portanto, aconselha aos pais manterem em casa as filhas que não demonstram vocação religiosa. Expõe suas experiências, para que nós, carmelitas, delas passamos tirar proveito, sabendo que a grande bondade do Senhor supera nossas maldades.
    - Relatando, a seguir, seu grande desejo de fazer bem aos outros, nos coloca perante às suas relações com seu pai. Transmitiu a ele o grande tesouro que havia encontrado na oração, dando-lhe livros. E ele dedicou-se à oração, tornando-se mais piedoso ainda. Esse proceder de Santa Teresa serviu muitíssimo de apoio e conforto para o pai, durante sua doença e, em especial, na hora de sua morte. Seu confessor, Pe. Vicente Barrón declarou que ele foi direto para o céu. Teresa nos faz compreender que a alma que ama, na doença e em situações difíceis, sabe que a verdadeira oração é fazer a dádiva de seus sofrimentos, como um exercício de amor a Deus.
    - Pe. Vicente Barrón muito a ajudou a retomar a oração. Aprendemos com Santa Teresa que a oração nos ajuda a ver melhor nossas faltas, a optar pela vida espiritual e não pelos gostos, alegrias e divertimentos dos sentidos. O Senhor fazia, muitas vezes, que uma pequena virtude nela se tornasse grande aos olhos dos outros, para que suplantasse suas vaidades. Como reconhecia Santa Teresa, o Senhor assim agia, para que ela pudesse, mais tarde, possuir créditos para se dedicar ao Seu serviço Aconselha a todos que têm gosto pela oração, para que não fiquem sós entre os perigos do mundo: “procurem ter amizade e relações com pessoas que se ocupem da mesma coisa”. Santa Teresa nos abre os olhos para a necessidade de nos darmos as mãos, apoiando-nos mutuamente para crescermos no serviço a Deus, que muitas vezes é superado pela fama da bondade dos divertimentos e vaidades do mundo, acrescendo a este ensinamento um preceito muito forte: “quem se humilha, embora sendo forte, nunca perde, razão porque precisa dar crédito a quem tem mais experiência”. Para a queda, a ajuda é muita; para levantar-se, é preciso confiar na misericórdia de Deus, pois Ele sempre nos dá a mão.

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  3. aqui Deus me toca profundamente nas palavras de Teresa, quando ela reflete sobre os caminhos que seguimos certos ou errados á custa de nossa salvação e levados pelos desejos e encantos do mundo vamo-nos distraindo sem dar ouvidos ás chamdas de Deus.Até que ELE , na sua misericórdia , precise nos fazer ver, colocando sua mão nos nossos caminhos, nos acontecimentos e na nossa vida, talvez nos deixando perplexos diante do que chegamos a ver, se verdadeiramente vemos ali sua mão misericordiosa nos trazendo de volta a´seu seio e coração apaixonado por nós.
    Aqui Santa Teresa é muito pratica em nos mostrar que ou fazemos a vontade de Deus ou a nossa, e quando escolhemos a nossa vontade fechamos as portas á toda graça e virtude, a toda liberdade de ter em Deus nosso conforto e refugio.
    a mim particularmente, desejo pedir ao meu Rei e Senhor que me cure de meu egoísmo e orgulho e me leve por caminhos seguros, e que eu seja sensível ao toque de suas mãos.

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  4. Neste sétimo capítulo, chama-me a atenção os conselhos dados pela Santa Madre, todos referentes à oração.
    Em primeiro lugar, ela diz que, em razão de sua "vida ruim", tinha receio de orar. Talvez ela se questionasse muito com relação ao testemunho de vida, porque considerava não corresponder às graças que recebia do Céu. Ela não se julgava digna. Mas, com efeito, quem pode se considerar digno de ter amizade com o Senhor? Ele, no entanto, é um mar de misericórdia, e é em razão desta misericórdia que o Senhor encontra prazer em relacionar-se conosco, por meio do trato de amizade que é a oração.
    Um segundo conselho diz respeito ao fato de que o Senhor sempre concede oportunidades para a oração, mesmo na doença, quando a alma pode oferecer seus sofrimentos por amor ao Senhor.
    Em terceiro lugar, a Santa Madre relata a importância de se confessar com sacerdotes bem preparados. O sacerdote com quem ela se confessa diz a ela que não abandone a oração. Isto é um conselho muito importante porque muitas vezes somos tentados a deixar a oração, o que acontece frequentemente pelo fato de não termos paciência em aguardar a ação do Senhor.
    O quarto conselho diz respeito ao método de oração de Teresa: recolher-se em si mesma. Isto é de importância capital para um bom momento de oração, de encontro com o Senhor. É preciso silenciar-se e recolher-se, apesar das "mil vaidades". É preciso silenciar todas as "vozes" para ouvir somente a voz do Pastor.
    Um quinto conselho refere-se ao fato de que, ao começarmos a vida de compromisso com a oração, procurarmos amizade com quem também se ocupe da oração, para que haja apoio mútuo e progresso, e para que não tenhamos medo de padecer, por amor ao Senhor.
    Santa Madre começa, assim, a preparar nossa alma para desvendar o grande tesouro que é a oração.

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  5. Ainda sobre o capítulo 7: A oração, pouco a pouco, vai ganhando terreno em Teresa, porque abria para ela a vivência de um amor forte. Sentia-se envolvida do amor de Deus porque já não fugia dos pecados por medo do castigo e sim porque amava Aquele que a chamava cada vez com mais intervenções em sua alma. Todavia não se tratava do encontro definitivo de Teresa com Deus. Estes pequenos episódios de enamoramento não eram suficientes para superar totalmente a superficialidade e certa ambigüidade na vida de monja de Teresa. Neste capítulo ela nos deixa uma forte autocrítica, confessando que um dos erros deploráveis de sua prática de oração, na primeira parte de sua vida religiosa, foi considerar que a meditação e a contemplação da humanidade e vida de Jesus eram somente para os principiantes e que o progresso na oração devia deixar para trás o “apoio do sensível”. Confessa-se medíocre e nisto censura seus confessores, por sua falta de sabedoria. Sentia vergonha, ante si mesma, de tratar “tão particular amizade com Deus”. A convivência com Jesus, da maneira como ela levava, não podia satisfazê-la. Sentia-se mal diante de seus defeitos e sua falta de correspondência ao amor de Deus. Apesar de seu comportamento correto e mesmo exemplar na comunidade, Teresa sabia perfeitamente que não era este seu lugar no mundo. Não estava chamada a ser simplesmente uma monja e nos mostra que em qualquer estrutura é possível atender ao chamado que Deus faz a todos. Teresa não só luta para ter uma vida de oração e de correspondência aos dons de Deus: sua luta é essencialmente pela “liberdade”. Em sua vida, esta liberdade chega à sua máxima vivência na convivência com Deus e com o próximo.

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  6. Neste capítulo 7, Santa Teresa nos adverte que existem dois caminhos: o da virtude e da religião, e o da falta de religião. Mas eles não são igualmente trilhados; pois devido aos nossos pecados, o mais seguido, e mais favorecido, é o mais imperfeito.
    Trazendo para o mundo de hoje, vemos que o caminho da falta de religião é cada vez mais seguido e que a quantidade de pessoas sem Deus cresce de forma assustadora.
    Ora, até nós, que acreditamos em Deus e conhecemos a Verdade, estamos em constante queda, como a própria Santa Teresa diz: "Valha-me Deus! Se eu pudesse dizer as ocasiões de que Sua Majestade me livrou nesses anos, e de como eu tornava a me envolver nelas".
    Também eu estou constantemente a me envolver em ocasiões de pecado, onde às vezes há luta, mas outras vezes há entrega. Entretanto sempre fico constrangido com as imensas graças que Deus me concede, apesar de toda a minha fraqueza.
    Por isso nós, carmelitas seculares, a começar por mim, devemos seguir o exemplo deixado por Santa Teresa, que é unicamente reconhecer-se fraco e pecador, mas confiando sempre na infinita misericórdia de Deus, que nos "castiga" com sua imensa ternura:
    "Ó Senhor da minha alma! Como poderei enaltecer as graças que me concedestes nesses anos? (...) Na verdade, escolhíeis, Rei meu, o castigo mais delicado e mais penoso que podia existir, pois bem sabíeis o que mais dores me causaria. Castigáveis as minhas faltas com enorme ternura."
    Abçs,
    Luciano Dídimo

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  7. Esta muito legal esta partilha entre nos carmelitas!

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