terça-feira, 5 de outubro de 2010

capitulo 31 e 32

Capítulo 31


Fala de algumas tentações exteriores e aparições que o demônio produzia nela, bem como dos tormentos que lhe infligia. Trata também de algumas coisas muito boas, como aviso para pessoas que seguem o caminho da perfeição.

1. Desejo falar, já que falei de tentações e perturbações interiores e secretas que me eram causadas pelo demônio,1 de outras quase públicas em que a sua presença não podia ser ignorada.

2. Eu estava certa vez num oratório e me apareceu, do lado esquerdo, uma figura abominável; percebi especialmente a boca, porque falava: era horrível. Parecia que lhe saía do corpo uma grande chama, muito clara, sem nenhuma sombra. Disse-me, aterrorizando-me, que eu me livrara de suas garras, mas que voltaria a elas. Fiquei com muito temor e fiz o sinal-da-cruz como pude. Ela desapareceu, mas logo voltou. Isso me aconteceu por duas vezes. Não sabendo o que fazer, peguei da água benta que ali havia e lancei--a para onde essa figura se encontrava. Ela nunca mais voltou.

3. Em outra ocasião, o demônio me atormentou durante cinco horas com dores e desassossegos interiores e exteriores tão terríveis que pensei não poder suportar. As pessoas que estavam comigo ficaram espantadas e não sabiam o que fazer, nem eu a que recorrer. Costumo, quando as dores e o mal corporal são muito intoleráveis, fazer atos interiores como posso, suplicando ao Senhor que, se for do Seu agrado, me conceda paciência e me deixe sofrer assim até o fim do mundo.

Nessa ocasião, vendo um padecimento tão rigoroso, procurei refugiar-me nesses atos e na determinação de resistir. Quis o Senhor que eu percebesse que era o demônio, já que vi ao meu lado um negrinho bem abominável, ran gendo os dentes como se estivesse desesperado ao perceber que, em vez de ganhar, perdia. Eu, ao vê-lo assim, ri-me e não tive medo. Estavam ali algumas irmãs a quem eu não podia recorrer e que não sabiam como aliviar tanto tormento. Eram grandes os golpes que ele me fazia dar, levando-me, sem que eu pudesse resistir, a bater o corpo, a cabeça e os braços. O pior era o desassossego interior, que de forma alguma me permitia descansar. Eu não me atrevia a pedir às irmãs água benta, para não assustá-las e para que não percebessem do que se tratava.

4. A partir de muitos fatos, obtive a experiência de que não há coisa de que os demônios fujam mais, para não voltar, do que da água benta. Eles tam bém fogem da cruz, mas retornam. Deve ser grande a virtude da água benta. Minha alma sente particular e manifesta consolação quando a tomo. É certo que tenho quase sempre um alívio que eu não saberia explicar, uma espécie de deleite interior que me conforta toda a alma. Não se trata de ilusão nem de coisa que só aconteceu uma vez, mas sim de algo freqüente que tenho observado com cuidado. Digamos que seja como se a pessoa estivesse com muito calor e sede e bebesse um jarro de água fria, sentindo todo o seu corpo refrescar. Penso em quão importante é tudo o que a Igreja ordena, e alegra--me muito ver que tenham tanta força as palavras que comunica à água para que esta fique tão diferente da comum.2

5. Como, pois, não cessasse o tormento,3 eu disse às pessoas que, se não fossem rir, eu pediria água benta. Trouxeram-na e me aspergiram com ela, mas não adiantou; lancei-a na direção onde estava o demônio, e ele se foi de imediato e o mal desapareceu por inteiro como se fosse retirado por uma mão, muito embora eu estivesse cansada como se tivesse sido espancada com muitos paus. Foi muito proveitoso ver que o demônio, se já faz tanto mal a uma alma e a um corpo que não lhe pertencem, quando o Senhor o permite, muito mais faria se eles fossem definitivamente seus. Isso renovou o meu ânimo de livrar-me de companhia tão ruim.

6. Há pouco tempo me aconteceu o mesmo, embora não tenha durado tanto nem ocorrido na presença de pessoas; pedi água benta, e as pessoas que entraram depois que os demônios tinham partido (eram duas monjas dignas de crédito que de nenhuma maneira mentiriam) sentiram um cheiro muito ruim, como se fosse de enxofre. Eu não o senti, mas durou tanto que pôde ser percebido.

Em outra ocasião, estando no coro, caí em profundo recolhimento. Afastei--me dali para que não percebessem, mas todas as que estavam ali perto ouviram grandes pancadas no lugar onde eu estava e, ao meu lado, ouvi vozes como que combinando alguma coisa, mas não entendi nada, pois estava mergulhada na oração; também não tive medo. Isso sempre acontecia quando o Senhor me concedia a graça de, por meu intermédio, beneficiar alguma alma.

Também me aconteceu o que vou narrar agora (e disso há muitos testemunhos, em especial daquele que agora me confessa,4 que o viu escrito numa carta; sem que eu lhe dissesse qual a pessoa referida na carta, ele bem sabia quem era):

7. Veio a mim uma pessoa que há dois anos e meio estava num pecado mortal dos mais abomináveis de que tenho notícias e que, por todo esse tempo, não o confessava nem se emendava e dizia missa. Embora confessasse outros, dizia que este não o podia, por ser coisa muito feia. Tinha grande desejo de redimir-se, mas não tinha forças para isso. Fiquei muito triste e com muita pena ao ver que se ofendia a Deus dessa maneira. Prometi-lhe suplicar muito a Deus para que Ele o corrigisse e fizesse com que outras pes soas Lho pedissem, pois eram melhores que eu. Eu escrevia a ele por intermédio de uma pessoa a quem ele me dissera que eu podia entregar as cartas.

Com a primeira carta, ele se confessou, pois Deus quis (pelas muitas pessoas tão santas que haviam dirigido súplicas a Ele, pessoas a quem eu o encomendara) fazer tal misericórdia com essa alma; e eu, embora miserável, fazia o que estava ao meu alcance com muito cuidado. Ele me escreveu que melhorara tanto que havia dias sem recaída; mas que era tão grande o tormento trazido pela tentação que lhe parecia estar no inferno. E me pedia que o encomendasse a Deus. Voltei a encomendá-lo às minhas irmãs, por cujas orações o Senhor deveria conceder-me esse favor, e estas desempenharam a tarefa com muito ânimo. Tratava-se de uma pessoa que ninguém devia identificar. Supliquei a Sua Majestade que se aplacassem aqueles tormentos e tentações e que viessem contra mim aqueles demônios, desde que eu nada fizesse contra Deus. Assim, passei um mês acossada por enormes tormentos. Foi nessa ocasião que aconteceram as duas coisas de que falei.5

8. O Senhor foi servido, pois, como me escreveram, os demônios o deixaram. Eu lhe dei conta do que passara naquele mês, sua alma recobrou forças, e ele ficou totalmente livre, nunca se fartando de dar graças a Deus — e a mim, como se eu tivesse feito alguma coisa, quando na verdade fora o crédito que eu tinha de receber favores do Senhor que lhe trouxera benefícios. Ele me disse que, quando se via aflito, lia minhas cartas e ficava livre da tentação, ficando muito espantado com o que eu padecera e com o modo como ele se livrara. Eu também me espantei, e teria sofrido muitos outros anos para ver aquela alma liberta. Seja louvado por tudo o Senhor, pois muito poder tem a oração dos que O servem, como creio que o fazem nesta casa6 minhas irmãs. Vendo que eu as estimulava, os demônios se lançaram ainda mais contra mim, e o Senhor, devido aos meus pecados, permitia a sua ação.

9. Naquela época, pensei certa noite que iam me estrangular; lançamos muita água benta, e vi uma multidão demoníaca se afastando, como se caísse de grande altura. São tantas as ocasiões em que esses malditos me atormentam, e tão pouco o medo que agora tenho deles, por saber que não podem se mexer se o Senhor não lhes der licença, que eu cansaria vossa mercê, e a mim, se as contasse.

10. Que isso seja útil ao verdadeiro servo de Deus, que assim vai desdenhar os espantalhos com que os demônios desejam nos causar temor. Saibam que, quanto mais os desprezamos, tanto menor fica a sua força e tanto mais senhora de si fica a alma. Sempre resta algum grande proveito, que não vou descrever para não me estender; direi somente o que me aconteceu numa noite de Finados: estando num oratório, tendo rezado um noturno, eu dizia umas orações muito devotas — que estão no fim do nosso Breviário —, quando o demônio se pôs sobre o livro para que eu não acabasse de fazê-las. Persignei-me e ele desapareceu. Quando recomecei, ele retornou. Creio que por três vezes o tentei, só o consegui quando lancei água benta. Tão logo acabei, vi que saíram algumas almas do purgatório, almas cuja expiação pouco faltava para se completar e que o demônio, pensei eu, pretendia perturbar.

Poucas vezes vi o demônio em forma corporal, sendo comum vê-lo sem nenhuma forma, como na visão que descrevi antes, na qual não há forma sensível, embora se perceba com clareza a sua presença.7

11. Também quero relatar algo que muito me espantou; estando num dia da Santíssima Trindade completamente arrebatada no coro de certo mosteiro, vi uma grande contenda entre demônios e anjos. Não pude entender o que significava aquela visão. Não se passaram quinze dias e entendi quando irrompeu certa desavença entre pessoas de oração e muitas outras que não o eram. Isso causou graves prejuízos à casa, tendo sido uma batalha que muito durou e trouxe farto desassossego.

Outras vezes, eu via uma densa multidão deles ao meu redor, estando eu cercada por uma grande claridade que não lhes permitia a aproximação. Entendi que Deus me guardava para que não chegassem a mim de um modo que O ofendesse. Pela minha experiência, entendi que era uma verdadeira visão. Com efeito, já compreendi o pouco poder que tem o demônio quando não estou contra Deus, e quase não o temo; de nada valem suas forças se ele não vê almas entregues e covardes, pois só assim mostra seu poder.8

Por vezes, nas tentações de que falei,9 eu tinha a impressão de que todas as vaidades e fraquezas de tempos passados voltavam a despertar em mim, que bem fazia em me encomendar a Deus. Vinha então o tormento de pensar que tudo em mim vinha do demônio. Isso só passava quando o confessor me acalmava; porque, para mim, quem recebia tantas graças do Senhor não podia sequer ter um primeiro movimento de mau pensamento.

12. Eu também ficava muito angustiada, e ainda fico, ao ver que me consideram muito, em especial pessoas importantes, e que falam muito bem de mim. No tocante a isso, sofri bastante e ainda sofro. Quando isso acontece, concentro-me de imediato na vida de Cristo e dos santos, tendo a impressão de que ando ao contrário, pois eles só encontraram desprezo e injúrias. Isso me faz ficar temerosa, e quase não ouso erguer a cabeça, desejando não ser vista, o que não faço quando me atingem perseguições, porque, então, a alma está tão senhora de si, ainda que o corpo padeça e eu também me ressinta, que não sei como pode ser. Mas assim é; nas tribulações, a alma parece estar no seu reino, trazendo tudo sob os pés.

Era comum que isso me acontecesse, durando muitos dias. Na época, parecia-me virtude e humildade, mas vejo com clareza agora que era tentação (um frade dominicano, muito instruído, me esclareceu sobre isso) pensar que as graças que o Senhor me concede viriam a ser conhecidas e ter um sofrimento tão excessivo a ponto de inquietar muito a alma. Isso chegou a tal ponto que, analisando-o, penso que estaria mais disposta a ser enterrada viva do que a sofrê-lo; por essa razão, quando comecei a não poder resistir, mesmo em público, aos grandes recolhimentos ou arroubos, eu ficava depois muito coberta de vergonha, não desejando ser vista por ninguém.

13. Estando eu muito fatigada disso, o Senhor me perguntou por que eu te mia, se, nesse caso, só havia duas alternativas: murmurarem de mim ou lou varem a Ele. Deus dava a entender que os que acreditavam nele O louvariam e os que não acreditavam me condenariam, sendo eu inocente, e que essas duas coisas representavam ganhos para mim, motivo pelo qual eu não devia me afligir. Isso me deixou bastante sossegada e me consola quando me vem à mente. A tentação atingiu um tal grau que eu quis sair deste lugar e ir para um mosteiro, muito mais fechado que aquele em que estava, de cujos rigores ouvira falar.10 Também era um convento da minha Ordem, e muito distante. Meu consolo seria estar onde não me conhecessem, mas o confessor nunca me permitiu.

14. Esses temores também me tiravam em larga medida a liberdade de espírito, mas depois vim a entender que não eram verdadeira humildade, visto que me inquietavam tanto. E o Senhor me ensinou esta verdade. Se estivesse determinada e convencida de que nenhuma coisa boa vinha de mim, mas de Deus, assim como não me custava ouvir louvar outras pessoas (eu até gostava e me consolava muito por ver manifesta aí a presença de Deus), tam pouco me custaria que Ele mostrasse em mim as Suas obras.

15. Também cheguei a outro extremo, que foi suplicar a Deus — e numa oração particular — que, quando alguma pessoa pensasse bem de mim, Sua Majestade lhe declarasse meus pecados para que ela visse com quão poucos méritos meus Ele me concedia graças, desejo que tenho sempre muito vivo. Meu confessor me disse que não agisse dessa maneira; contudo, até há pouco tempo, quando via que alguém pensava muito bem de mim, eu usava de ro deios e outros recursos para revelar-lhe meus pecados e, com isso, me sentia descansada. Também me ordenaram ter muito escrúpulo nisso.

16. Vejo que isso não provinha da humildade, mas da tentação, de uma tentação que gerava muitas outras. Eu achava que enganava a todos e, se bem que seja verdade que as pessoas se enganam ao pensar que há algum bem em mim, não era minha intenção fazê-lo, nem nunca o pretendi; é o Senhor que, com algum objetivo, o permite. Mesmo com os confessores, só tratei do assunto quando havia necessidade, e sempre com grande cuidado.

Todos esses temorezinhos, aflições e sombras de humildade eram uma grande imperfeição, e falta de mortificação, percebo-o agora. Porque uma alma que se abandona por completo nas mãos de Deus é indiferente ao mal e ao bem que falam dela, se entender de verdade — caso o Senhor a queira agraciar com essa compreensão — que nada tem de si. Ela confia naquele que lhe dá tantos bens, pois saberá mais tarde por que Ele os revela, prepara-se para a perseguição, que é certa nos tempos de hoje quando o Senhor quer que se saiba que alguma pessoa recebe dele semelhantes favores.11 Para uma alma como essa, há mil olhos, enquanto para mil almas de outra natureza não há um único.

17. Na verdade, não há poucas razões para temer, e esse devia ser o meu temor; não a humildade, mas a fraqueza. De fato, uma alma que, com a permissão de Deus, passa a ser alvo dos olhos de todos tem condições de se preparar para ser mártir do mundo: se ela não desejar morrer para ele, ele mesmo lhe dará a morte. Com certeza não vejo nele nada que me pareça útil, a não ser não consentir nos bons faltas que, à força de murmúrios, não sejam corrigidas.

Afirmo que é preciso ter mais ânimo, se não se é perfeito, para seguir o caminho da perfeição do que para sacrificar a vida; porque a perfeição não é alcançada num instante, a não ser que o Senhor deseje conceder o privilégio particular de tal graça. O mundo, ao ver a pessoa começar a trilhar esse caminho, deseja que ela logo alcance a perfeição e, depois de muitos quilômetros, ao ver uma falta que talvez seja virtude, faz com que a condenem pessoas que cometem a mesma falta, e que até estão viciadas nela, julgando o outro por si.

O mundo não lhe permite comer, nem dormir, nem, como dizem, respirar. E quanto mais a alma o tem em boa conta, tanto mais parece esquecer que ainda está no corpo mortal e que, por mais perfeita que a considerem, ela ainda está sujeita a muitas misérias da terra, por mais que as tenha sob os pés. Assim, como eu digo, é preciso muito ânimo, já que a pobre alma, nem bem começou a andar, já a querem obrigar a voar; nem bem venceu as paixões, e já se espera que em ocasiões de perigo seja perfeita como os santos confirmados na graça.

É para louvar o Senhor o que se passa nessas circunstâncias, bem como de cortar o coração; porque são inúmeras as almas que recuam, pobrezinhas que não sabem a que recorrer. E creio que assim teria ocorrido com a minha se o Senhor, tão misericordiosamente, não fizesse todo o trabalho por ela. E, mesmo que Ele, com Sua bondade, tenha me tomado a Seu cargo, vossa mercê sabe que a minha vida tem sido um constante cair e levantar.

18. Eu gostaria de saber explicá-lo, porque acredito que aqui se enganam muitas almas que aspiram a voar antes de receber de Deus asas. Creio que já fiz essa comparação,12 mas ela cabe aqui. Vou tratar disso porque vejo algumas almas muito aflitas por essa razão. Elas começam com grandes desejos, fervor e determinação de avançar na virtude, e algumas deixam por Ele todas as coisas exteriores. Contudo, vendo em outras pessoas mais avançadas na perfeição virtudes muito grandes que lhes são concedidas pelo Senhor, virtudes que não podemos conseguir por nós mesmos; vendo em todos os livros de oração e contemplação coisas que temos de fazer para nos alçar a essa dignidade, mas que não conseguem praticar logo, elas se desconsolam.

Trata-se de ensinamentos como estes: não devemos nos incomodar que falem mal de nós, contentando-nos até mais do que quando falam bem; devemos desprezar a honra, desapegar-nos dos parentes de maneira tal que, se não têm oração, não queiramos tratar com eles e até nos cansemos com a sua pre­sença; e muitas outras coisas dessa espécie, que constituem, pelo que sei, antes bens sobrenaturais ou contrários à nossa inclinação natural, que só podem ser concedidos por Deus. Que essas almas não se fatiguem e esperem no Senhor, pois o que agora têm em desejos Sua Majestade fará com que tenham em obras, desde que perseverem na oração e façam quanto estiver ao seu alcance. De vido à nossa fraqueza natural, é muito necessário ter grande confiança e não de sanimar nem pensar que, se nos esforçarmos, deixaremos de alcançar a vitória.

19. E, como tenho muita experiência nesse assunto, direi algo para alertar vossa mercê; não pense, embora lhe pareça acertado, ter adquirido a virtude sem antes experimentá-la pelo seu contrário.13Devemos sempre duvidar e não nos descuidar enquanto vivermos; pois com muita facilidade nos apegamos se, como digo, não estiver concedida de modo pleno a graça de perceber o que tudo é e que nesta vida só há muitos perigos. Há alguns anos, eu tinha a impressão de que não só estava desapegada dos meus parentes, mas de que me cansava com a sua convivência, e, de fato, sua conversa não me interessava. Surgiu certo assunto de muita importância e tive de tratar com uma irmã minha de quem muito gostava antes, e embora na conversa, apesar de ela ser melhor que eu, eu não me entendesse com ela (porque, como o seu estado é diferente, sendo mulher casada, não podíamos conversar os assuntos que me agradavam, e porque eu, sempre que podia, ficava sozinha), vi que seus sofrimentos eram compartilhados por mim, muito mais do que os do próximo, e que eu sentia até certa preocupação.14 Entendi então que não estava tão livre quanto pensava e que ainda necessitava fugir das ocasiões para que essa virtude que o Senhor tinha começado a me conceder pudesse crescer. Desde então, com o Seu favor, tenho procurado agir assim.

20. Devemos considerar muito importante uma virtude quando o Senhor começa a nos agraciar com ela e de nenhuma maneira devemos colocar-nos em perigo de perdê-la. Isso se aplica a coisas que atingem a reputação e a muitas outras; creia vossa mercê que nem todos os que pensamos estar desapegados de tudo o estamos de fato, sendo imperativo nunca descuidar disso. E qualquer pessoa que se perceba presa a algum ponto de honra, se quiser aproveitar, acredite em mim e livre-se desse apego, por ser ele uma corrente que nenhuma lima quebra, a não ser com a ajuda de Deus, obtida na oração e em muito esforço de nossa parte. Isso me parece um empecilho neste caminho, causando-me espanto o dano que faz.

Vejo algumas pessoas santas em suas obras, que são tão grandes que deixam as pessoas abismadas. Valha-me Deus! Por que ainda se encontra na terra uma tal alma? Como não está ela no auge da perfeição? Que é isto? Quem detém a quem tanto faz por Deus?15 Oh, ela está presa a um ponto de honra…! E o pior é que não quer entender que o está e, às vezes, o demônio a convence de ser obrigada a conservar esse apego.

21. Acreditem em mim, creiam pelo amor do Senhor nessa formiguinha que Ele quer que fale! Se não for tirado, esse defeito será como uma lagarta; talvez não estrague a árvore inteira, restando algumas virtudes, se bem que todas carcomidas. A árvore não é frondosa, não medra nem deixa medrar as que estão perto de si, porque a fruta que dá de bom exemplo nada tem de sã e pouco vai durar. Eu digo muitas vezes16 que, por menor que seja, o ponto de honra é como o canto acompanhado por um órgão que toca um trecho ou compasso errado, desafinando toda a música. Trata-se de coisa que em toda parte muito prejudica a alma, mas que, neste caminho de oração, gera pestilência.

22. Procuramos juntar-nos com Deus e queremos seguir os conselhos de Cristo, carregado de injúrias e de falsos testemunhos, desejando conservar íntegros a nossa honra e o nosso crédito? Se sim, não poderemos chegar lá, pois essas duas coisas não seguem o mesmo caminho. O Senhor se aproxima da alma quando nos esforçamos e procuramos renunciar ao nosso direito em muitas coisas. Dirão alguns: “Não tenho em que aplicar isso nem me surgem oportunidades”. Acredito que quem mantiver essa determinação não verá o Senhor permitir a perda de bem tão precioso; Sua Majestade lhe propiciará tantas ocasiões para obter essa virtude que a pessoa as julgará excessivas. Mãos à obra.

23. Quero falar das insignificâncias e bagatelas que fazia quando comecei, ou pelo menos de algumas delas: as palhinhas que, como tenho dito,17 atiro ao fogo, por não ser capaz de ir além disso. O Senhor tudo recebe; bendito seja para sempre!

Entre as minhas faltas estava o pouco conhecimento da salmodia, dos procedimentos do coro e do modo de oficiar; isso ocorria devido ao meu descuido e preocupação com muitas vaidades, mesmo vendo outras noviças que podiam me ensinar. Eu não lhes perguntava nada, para que não percebessem que pouco sabia. Vinha-me logo a idéia do bom exemplo, o que é muito freqüente. No entanto, Deus me abriu um pouco os olhos, e eu, mesmo sabendo, por menor que fosse a dúvida que tivesse, consultava as meninas. Com isso, não perdi a honra nem o crédito; pelo contrário, quis o Senhor, a meu ver, dar-me doravante uma memória melhor.

Eu não sabia cantar direito. Sentia tanto se não tinha estudado o que me mandavam (e não por cometer uma falta diante do Senhor, o que seria virtu de, mas por causa das muitas pessoas que me ouviam) que, por puro amor--pró prio, me perturbava a ponto de dizer muito menos do que sabia. Mais tarde, tomei a resolução de, quando não o sabia muito bem, dizer que nada sabia. No início, foi doloroso, mas depois passei a gostar disso. Desse modo, a partir do momento em que já não me importava o fato de perceberem a mi nha ignorância, passei a cantar muito melhor. É que a negra honra antes me impedia de fazer bem o que devia, essa honra que cada qual põe onde quer, e que eu colocava nessas coisas.

24. Essas pequenas coisas, que nada são — sendo eu ainda menos, visto me incomodar com elas —, pouco a pouco se traduzem em atos. Com essas pequenas decisões, que vão sendo reforçadas por Deus, já que vêm dele, nós O ajudamos a conseguir coisas maiores. Assim é que, em termos de humildade, por exemplo, vendo que todas progrediram na virtude, exceto eu18 — porque nunca servi para nada —, passei a recolher e dobrar as capas das irmãs que saíam. Eu tinha a impressão de servir àqueles anjos que ali louvavam a Deus. Fiz isso até que, não sei como, vieram a saber, o que me deixou bem confusa, visto que a minha virtude não chegava a suportar a revelação dessas coisas, e não por humildade, mas para que não rissem de mim diante de ações tão desimportantes.

25. Ó Senhor meu! Que vergonha é ver tantas maldades e contar uns grãos de areia que ainda não eram levantados da terra para Vosso serviço, mas que estavam envoltos em mil misérias! Debaixo dessas areias de Vossa graça19 ainda não brotava a água que as fizesse subir. Ó Criador meu, quisera ter alguma coisa importante para relatar, em meio a tantos males, pois narro as grandes graças que recebi de Vós. Assim, Senhor meu, não sei como pode suportá-lo o meu coração nem como poderá, quem isto ler, deixar de me desprezar ao ver tão mal correspondidos favores tão imensos; e não tenho vergonha de me referir a esses serviços, que são, afinal, meus.

Sim, Senhor meu, tenho vergonha, mas de não ter para contar senão atos tão minúsculos, para que quem os fizer grandes tenha esperança; porque, se os meus parecem ter sido levados em conta pelo Senhor, tanto melhor Ele acolherá esses outros. Queira Sua Majestade dar-me o favor de eu não ficar para sempre no princípio. Amém.

Capítulo 32

Trata de como o Senhor quis conduzi-la em espírito ao lugar do inferno que ela, por seus pecados, tinha merecido. Dá uma idéia do que lhe foi apresentado ali. Começa a tratar da maneira como se fundou o mosteiro de São José, onde ela agora se encontra.

1. Havendo já muito tempo desde que o Senhor começara a me conceder muitas das graças de que falei1e outras muito grandes, certo dia, estando em oração, vi-me de repente, sem saber como, no inferno. Entendi que o Senhor queria que eu visse o lugar que os demônios tinham preparado para mim ali e que eu merecera pelos meus pecados.2 Isso durou muito pouco tempo, mas, mesmo que eu vivesse muitos anos, parece-me impossível esquecer. A entrada me pareceu um longo e estreito túnel, semelhante a um forno muito baixo, escuro e apertado; o solo dava a impressão de conter uma água igual a uma lama muito suja e de odor pestilencial, havendo nele muitos répteis daninhos; havia no fundo uma concavidade aberta numa parede, parecida com um armário, onde fui colocada, ficando bastante apertada. Tudo isso é agradável em comparação ao que senti ali. Isto que digo está muito aquém da verdade.

2. O que senti parece ser impossível de definir de fato e de entender; mas senti um fogo na alma que não sei como explicar. As dores corporais eram tão insuportáveis que mesmo os tantos sofrimentos que tive nesta vida, que foram graves e, segundo os médicos, os maiores que se podem passar aqui (por exemplo, quando se encolheram todos os meus nervos e fiquei paralítica,3 sem falar de outros tantos padeceres de diversas espécies, alguns, como eu disse,4 causados pelo demônio), não foram nada em comparação com elas, ainda mais que percebi que elas seriam sem fim, incessantes.

Na verdade, em comparação com a agonia da alma, que é um aperto, um afogamento, uma aflição tão intensa, unida a um descontentamento tão desesperado e angustioso, que as palavras não podem descrever, tudo isso é insignificante. Porque dizer que é igual à sensação de que estão sempre arrancando a alma é pouco, pois isso seria equivalente a ter a vida tirada por alguém; nesse caso, no entanto, é a própria alma que se despedaça. Não sei como fazer jus com palavras ao fogo interior e ao desespero que se sobrepõem a gravíssimos tormentos e dores. Eu não via quem os provocava, mas os sentia queimando-me e retalhando. Mesmo assim, tenho a impressão de que aquele fogo e aquele desespero interiores são o pior.

3. Quando se está num lugar tão pestilento, sem poder esperar consolo, não se pode ficar sentado nem deitado, nem há lugar para isso, pois me puseram naquela espécie de buraco feito na parede; entre essas paredes, que espantam a visão, somos apertados e ficamos como que sufocados. Não há luz, mas sim trevas escuríssimas. Não entendo como pode ser que, não havendo luz, vê-se tudo que possa causar padecimento.

Nessa ocasião, o Senhor não quis que eu visse mais coisas do inferno; mais tarde, tive outra visão de coisas assombrosas sobre o castigo de alguns vícios. Vê-las me mostrou quão espantosas eram, mas, como não sentia o sofrimento, não tive tanto temor. Na visão referida, no entanto, foi vontade do Senhor que eu sentisse verdadeiramente os tormentos e aflições no espírito como se o corpo os estivesse padecendo. Não sei como isso aconteceu, mas bem entendi ser um grande favor e que o Senhor desejava que eu visse com os meus próprios olhos aquilo de que a Sua misericórdia me livrara. Porque uma coisa é ouvir dizer ou ter pensado sobre os diferentes tormentos (o que eu fizera poucas vezes, já que pelo temor a minha alma não era levada muito bem), ou saber pelos livros que os demônios supliciam e infligem outras torturas, e outra é passar por isso. Em uma palavra, saber disso e vivê--lo são tão diferentes quanto o desenho o é da realidade; queimar-se aqui na terra é dor muito leve em comparação com o fogo de lá.

4. Fiquei tão abismada, e ainda o estou quando escrevo, apesar de já se terem passado quase seis anos,5 que me parece ter o corpo enregelado de medo. A partir de então, não me lembro de ocasiões em que padeça sofrimentos ou dores e não considere um nada tudo o que se pode passar na terra, o que me dá a impressão de que, em parte, nos queixamos sem razão. Por isso, repito ter sido essa uma das maiores graças que o Senhor me concedeu, pois me trouxe grandes proveitos, tanto para que eu perdesse o temor das tribulações e contradições desta vida como para que me esforçasse por padecê-las e dar graças ao Senhor por ter me livrado, como é agora minha convicção, de males tão perpétuos e terríveis.

5. Desde então, como eu disse, tudo me parece fácil diante de um momento em que se tenha de sofrer o que lá padeci. Fico aturdida ao pensar que, tendo lido muitas vezes livros onde se explica algo das penas do inferno, eu não as temesse nem as tomasse pelo que são. Onde estava eu? Como podia ter descanso estando num caminho que me conduzia a lugar tão ruim?

Bendito sejais, Deus meu, para sempre! E como me tem parecido6 que me amáveis muito mais do que eu a mim mesma! Quantas vezes, Senhor, me livrastes de cárcere tão tenebroso e quantas eu, contra a Vossa vontade, voltava para ele!

6. Isso também criou em mim uma grande compaixão pelas muitas almas que se condenam (em especial dos luteranos, que já eram, pelo batismo, membros da Igreja) e intensos ímpetos de salvar almas, pois tenho a impressão de que, para livrar uma só delas de aflições tão graves, eu voluntariamente enfrentaria muitas mortes. Se vemos aqui uma pessoa de quem gostamos de modo especial passar por um grande sofrimento ou dor, a nossa própria natureza nos impele à compaixão e, se a sua aflição for grande, tanto maior será a opressão do nosso coração. Assim sendo, ver uma alma imersa eternamente no sumo sofrimento, quem o pode suportar? Não há coração que veja isso sem compadecer-se, porque, se aqui, sabendo que a vida um dia vai acabar e que de qualquer maneira não é longa a sua duração, ainda assim somos movidos a tanta compaixão, quão maior não será o nosso desassossego diante dessa dor que não se acaba, infligida às tantas almas que o demônio leva consigo a cada dia!

7. Isso também me faz desejar que, numa coisa tão importante, não nos contentemos com fazer menos que tudo o que pudermos; não deixemos nada por fazer, e que o Senhor seja servido de nos dar graças para isso. Por outro lado, considero que, embora tão ruim, eu algo fazia para servir a Deus e não fazia certas coisas muito comuns no mundo, visto que, afinal, passava por grandes enfermidades e com muita paciência dada pelo Senhor. Eu não tinha inclinação para murmúrios, nem para falar mal dos outros, assim como, creio eu, não podia querer mal a ninguém, não tinha cobiça nem, pelo que me lembro, inveja, de modo a cometer ofensa grave contra o Senhor. Isso ocorria porque, embora tão ruim, eu costumava temer sempre a Deus; mesmo assim, vi o lugar que os demônios tinham preparado para mim, e é verdade que, considerando as minhas culpas, ainda julgava merecer maior castigo.

Contudo, digo que era um tormento terrível, sendo muito perigoso que uma alma que a cada passo cai em pecado mortal fique satisfeita, sossegada ou contente. Pelo amor de Deus, devemos evitar as ocasiões, e o Senhor nos ajudará, como me ajudou. Que Sua Majestade nunca tire a Sua mão para que eu não volte a cair, pois já vi onde iria parar. Não o permita o Senhor, por quem Sua Majestade é. Amém.

8. Estando eu (depois de ter visto essas e outras grandes coisas e segredos que o Senhor, por quem é, quis me mostrar da glória que será concedida aos bons e do castigo que recairá sobre os maus) em busca de maneiras de fazer penitência de tanto mal e de alcançar o mérito de obter tanto bem, desejava fugir das pessoas e afastar-me de uma vez por todas do mundo; meu espírito não sossegava, mas não era um desassossego inquieto, e sim delicioso. Via-se com clareza que isso vinha de Deus e que Sua Majestade concedera à alma calor para que ela saboreasse outros manjares mais suculentos do que aqueles que comia.

9. Imaginando o que poderia fazer por Deus, pensei que a primeira coisa era seguir o chamamento que Sua Majestade me fizera para ser religiosa, respeitando a minha Regra com a maior perfeição possível. E, embora na casa onde eu estava houvesse muitas servas de Deus, sendo Ele bem servido nela, por causa de uma grande necessidade as monjas saíam muitas vezes e passavam períodos em lugares onde, com toda a honestidade e religião, podiam estar. Por outro lado, a Regra não fora estabelecida com o seu rigor inicial, sendo respeitada de acordo com o que era costume na Ordem, seguindo-se a Bula de Mitigação.7 Havia também outros inconvenientes, parecendo-me demasiado o bem-estar, visto ser a casa grande e agradável.

Mas o problema das saídas, embora eu fosse uma que muito saía, era o maior para mim, porque algumas pessoas a quem os prelados não podiam dizer não gostavam de me ter em sua companhia; elas importunavam os prelados, que me mandavam ir. Assim, por seguir as ordens, eu ficava pouco no mosteiro. O demônio devia ter a sua parte, impedindo-me de ficar em casa, porque, quando ficava, eu transmitia a algumas irmãs aquilo que me ensinavam os religiosos com quem eu tratava, o que trazia grande proveito.

10. Certa feita, estando na companhia de uma pessoa, disseram a mim e a outras que se quiséssemos ser monjas à maneira das Descalças, seria talvez pos sível fundar um mosteiro.8 Eu, como o desejava, comecei a tratar disso com aquela senhora minha companheira,9 a viúva que, como eu disse, tinha o mesmo desejo. Ela começou a esboçar planos para obter recursos, planos que agora vejo não serem muito viáveis, parecendo-nos que eram devidos ao nosso desejo. Mas eu, por outro lado, estando muito contente na casa em que estava,10 que me agradava muito, assim como a cela que ocupava, que muito me servia, ainda me detinha. Contudo, combinamos de encomendar muito a Deus o nosso plano.

11. Certo dia, depois da comunhão, Sua Majestade me ordenou expressamen te que me dedicasse a esse empreendimento com todas as minhas forças, prome tendo-me que o mosteiro não deixaria de ser feito e dizendo que ali seria muito bem servido. Disse-me que devia ser dedicado a São José; esse Santo glorioso nos guardaria uma porta, e Nossa Senhora, a outra; Cristo andaria ao nosso lado, e a casa seria uma estrela da qual sairia um grande resplendor. Além disso, embora as religiões11 estivessem relaxadas, eu não devia pensar que Ele era pouco servido nelas, pois o que seria do mundo se não houvesse religiosos? O Senhor me ordenou ainda que revelasse tudo ao meu confessor e que lhe rogasse, em Seu nome, que não se opusesse ao projeto nem criasse obstáculos a ele.

12. Teve tal impacto essa visão, e tais efeitos as palavras que o Senhor me dirigiu, que não tive como duvidar de que era Ele. Fiquei muito pesarosa porque, em parte, imaginei os grandes desassossegos e sofrimentos que isso me custaria. Por outro lado, eu já vivia muito contente no meu convento; embora tratasse do assunto como antes, já não tinha tanta determinação nem certeza de que o projeto se realizaria. Nesse ponto, contudo, eu me sentia pressionada e, como via que começava a surgir um grande desassossego, estava em dúvida sobre o que faria. Mas foram tantas as vezes em que o Senhor voltou a me falar disso, exibindo-me tantas causas e razões, que eu via ser convincentemente Sua vontade que não mais me atrevi a não contá--lo ao meu confessor, a quem relatei por escrito tudo o que acontecera.12

13. Ele não teve coragem de me dizer claramente que eu não levasse o projeto adiante, mas via que não era viável nos termos da razão natural, já que havia pouquíssimas ou quase nenhuma possibilidade de a minha companheira, que era quem o havia de levar a efeito, conseguir recursos. Ele me disse que eu me entendesse com o meu prelado e que fizesse o que ele mandasse. Eu não tratava com o prelado dessas visões, mas a senhora em questão lhe disse que desejava fazer o mosteiro; e o Provincial13 concordou plenamente, visto que era amigo de tudo o que é da religião, dando-lhe todo o apoio necessário e dizendo-lhe que tomaria o mosteiro sob sua jurisdição. Eles trataram dos recursos necessários e do nosso desejo de haver no máximo treze14 religiosas na casa, por várias razões.

Antes de começarmos a tratar do negócio, escrevemos ao santo frei Pedro de Alcântara, relatando tudo o que acontecia; ele nos aconselhou a seguir em frente e nos deu seu parecer sobre todos os assuntos.15

14. Tão logo se soube do projeto do lugar, caiu sobre nós uma enorme perseguição cujo relato levaria muito tempo: choveram insinuações e risadas, bem como afirmações de ser um disparate. Diziam-me que eu estava bem na minha casa, perseguindo tanto minha companheira a ponto de deixá-la aflita. Eu não sabia o que fazer; em parte, parecia-me que tinham razão. Quando eu estava muito fatigada, encomendando-me a Deus, Sua Majestade começou a me consolar e animar. Ele me disse que, através daquilo, eu veria o que tinham passado os santos fundadores das religiões, devendo passar por tribulações muito maiores do que eu podia imaginar, mas que não devíamos ter medo.

Ele acrescentou algumas palavras que eu devia transmitir à minha companheira, e o que mais me espantava era que logo ficávamos consoladas pelo que tínhamos sofrido e com ânimo suficiente para resistir a todos. Na realidade, entre as almas de oração e até na própria cidade, não havia quase ninguém que na época não se opusesse a nós nem considerasse tudo um enorme desatino.

15. Foram tantas as insinuações e o alvoroço no meu mosteiro que o Provincial julgou impossível ter de enfrentar a todos, razão por que mudou de opinião e retirou o seu apoio. Ele afirmou que a renda não era suficiente, além de pouco segura, bem como muitos os nossos opositores. Ao que parece, devia estar coberto de razão. O fato é que retrocedeu e cancelou a licença. Quanto a nós, veio-nos a impressão de que esses eram os primeiros golpes, o que nos trouxe muito pesar; sofri em especial por ver o Provincial opor-se, visto que, se assim não fosse, eu teria como me desculpar diante dos outros. E já não queriam absolver a minha companheira caso ela não desistisse do projeto, dizendo-lhe que tinha a obrigação de interromper o escândalo.16

16. Ela foi procurar um erudito, grande servo de Deus, da Ordem de São Domingos, contando-lhe todos os eventos.17 Isso aconteceu antes de o Provincial recusar a licença, já que, em todo lugar, não tínhamos quem se dispusesse a nos favorecer, razão por que diziam que íamos adiante por puro capricho. Essa senhora relatou tudo ao santo homem, falando-lhe da renda advinda de suas propriedades, pedindo-lhe com fervor que nos ajudasse, visto ser ele o religioso mais instruído do lugar, havendo poucos mais sábios do que ele em sua Ordem.

Contei-lhe tudo o que pretendíamos fazer e falei de algumas das razões que nos moviam; não recorri a revelações, apresentando-lhe as razões naturais, por que queria que ele nos desse a sua opinião de acordo com estas últimas. Ele nos pediu um prazo de oito dias para responder e nos perguntou se nos dispúnhamos a fazer o que ele dissesse. Respondi-lhe que sim; mesmo afirmando, e creio que o cumpriria (porque na época não via como levar o projeto adiante), nunca deixei de acreditar no êxito do nosso empreendimento. Minha companheira tinha mais fé; ela nunca se disporia a abandonar o projeto por coisa alguma que lhe dissessem.

17. Eu, como disse, julgava impossível que a casa não viesse a ser fundada, tamanha a minha crença na verdade da revelação, pois não lhe daria fé se ela contrariasse a Sagrada Escritura ou as leis da Igreja, que somos obrigados a cumprir…18 Porque, embora me parecesse que de fato era vontade de Deus, se aquele douto me dissesse que não podíamos levá-lo a efeito sem ofendê-Lo e sem contrariar a consciência, creio que logo me afastaria daquilo ou procuraria outra solução; mas o Senhor só me dava uma alternativa: a fundação.

Mais tarde, aquele servo de Deus me confessou que tivera a firme determinação de tudo fazer para nos dissuadir, pois já chegara aos seus ouvidos o clamor do povo, sendo também seu o parecer de que o projeto era um disparate. Sabendo-se que o tínhamos procurado, enviou-se um emissário para avisá-lo de que visse o que fazia e pedir que não nos ajudasse. Quando ele começou a ponderar sobre a resposta que nos daria, examinando o empreendimento, a nossa intenção, o modo de vida e de prática religiosa que queríamos estabelecer, concluiu que isso muito serviria a Deus e que não podia deixar de ser feito. Por isso, ele nos respondeu que nos apressássemos a concluí-lo e nos indicou os meios e o modo de proceder; disse que, apesar de os recursos serem poucos, sempre se podia esperar em Deus. Afirmou também que todos os opositores deveriam procurá-lo, que ele se encarregaria de responder — e ele de fato sempre nos ajudou, como mais tarde vou dizer.19

18. Com isso, ficamos muito consoladas, e também porque algumas pessoas santas, que antes eram contrárias a nós, já estavam mais aplicadas, havendo até algumas que nos ajudavam. Entre estas últimas estava o fidalgo santo20 que já mencionei, o qual, virtuoso como era, percebia estar o nosso projeto inteiramente baseado na oração, embora acreditasse que os meios fossem difíceis e quase inviáveis; mesmo assim, ele achava que podia ser coisa de Deus, advinda do próprio Senhor. Era por certo Deus que o movia, tal como movera o Mestre, o clérigo servo de Deus que, como eu disse, foi o primeiro a quem falei;21 esse Mestre é um modelo para todos, pessoa que Deus tem para remédio e proveito de muitas almas, e que também já vinha em minha ajuda.

Estando as coisas nesse pé, e sempre com a ajuda de muitas orações, compramos uma casa em um bom lugar, embora pequena. Isso em nada me incomodava, pois o Senhor me dissera que começasse como pudesse e mais tarde veria o que Sua Majestade havia de fazer22 — e quão bem o tenho visto! Assim, embora reconhecesse que a renda era pouca, eu tinha fé no Senhor, que haveria de nos favorecer e prover tudo por outros meios.

3 comentários:

  1. Comentário dos Capítulos 31 e 32:-
    Penso que nestes dois Capítulos, a contribuição de Santa Teresa está no fato de aconselhar-nos a meditarmos sobre o inferno. Trata-se de uma realidade, e que nos leva a refletir sobre nossas atitudes. Com efeito, somos questionados acerca do nosso testemunho a todo instante. É realmente sério este questionamento, tendo em vista, inclusive, as palavras de Jesus: "tive fome..., tive sede..., estava nu..., estava preso..., estava enfermo...".
    Santa Teresa considera uma grande graça ter visto como é o inferno: "Por isso, repito ter sido essa uma das maiores graças que o Senhor me concedeu, pois me trouxe grandes proveitos, tanto para que eu perdesse o temor das tribulações e contradições desta vida como que para que me esforçasse por padecê-las e dar graças ao Senhor por ter me livrado, como é agora minha convicção, de males tão perpétuos e terríveis." Ou seja, a visão do inferno fez com que Teresa compreendêsse que os sofrimentos desta vida são nada diante do fogo eterno. E isto a fortaleceu.
    Também ela nos diz que o demônio não é tão poderoso assim e que não se deve ter medo dele: "Com efeito, já compreendi o pouco poder que tem o demônio quando não estou contra Deus, e quase não o temo; de nada valem suas forças se ele não vê almas entregues e covardes, pois só assim mostra seu poder". Grande arma contra ele, de acordo com o ensinamento de Teresa, é a água benta.
    Seguir ao Senhor não nos isenta de dor, sofrimentos, de tentações e provações, mas o Senhor nos ajuda a seguir em frente. Só em Deus encontramos o sentido da vida.

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  2. Capítulo 31

    Santa Teresa não ignorava a presença do demônio que muitas vezes lhe causava desassossego e muitas dores. Todavia ela entendeu, por sua experiência, que esta presença se tratava de uma verdadeira visão. Ensina-nos, como ensinou às suas filhas, sobre a importância que tem a força da água benta, fazendo com que os demônios fujam dela. E cita, neste capítulo, muitas ocasiões em que afastou o demônio, com o uso da água benta e muita oração.
    Teresa percebe a presença do demônio também em outras pessoas e possui o dom para corrigi-las com seus conselhos sábios, orações e súplicas à misericórdia de Deus. Em seus arrebatamentos, pressentia coisas que estavam por acontecer, por exemplo, quando viu uma grande contenda entre demônios e anjos e, quinze dias depois, aconteceram graves desavenças ao seu redor.
    Neste capítulo, faz alusões ao ambiente de suspeição que reinava na Espanha, por causa da Inquisição. Mas tal, não atemorizava Santa Teresa, que muito bem sabia que nós somos objeto permanente do perdão e da misericórdia de Deus. Assinala duas formas muito perigosas de falta de amor humilde, que ela conheceu: a busca do reconhecimento e estima dos outros e o que ela chama “pontos de honra”. Estes levam-nos a ficarmos ressentidos com os outros, porque não nos consideram e não nos dão suficiente importância. Isto destrói a fraternidade e o amor humilde, sobretudo na vida comunitária. Daí outra exigência da Santa: o desprendimento e a pobreza; pois o desprezo das coisas, bens, honras, prestígios e pessoas é uma consequência da humildade. O Senhor se aproxima de nós quando procuramos imitá-lo. Para tanto, não podemos desanimar e devemos nos aproximar daqueles que buscam a mesma coisa.
    Neste capítulo, dirige-se ao Padre Garcia de Toledo, com quem mantém sempre o diálogo. Relata também alguns pontos da Fundação de São José, na qual muito a ajudaram sua irmã Dona Juana e seu marido, Juan de Ovalle.

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  3. Capítulo 32.

    Nas obras de Santa Teresa, o tema do inferno aparece muitas vezes. Neste capítulo, a Santa narra como o Senhor a conduziu ao inferno e se admira ao ver a quantidade de almas que se condenam. Contempla o inferno como consequência do pecado, que afasta de Deus e conduz as almas à condenação eterna. Se propõe a fazer tudo o que tiver ao seu alcance para livrar as almas destes sofrimentos. O inferno que viu é um lugar sem luz, embora ela visse tudo o que ali se passava. E agradece ao Senhor por haver lhe mostrado aquele lugar de onde Sua Misericórdia a livrara. “Os tantos sofrimentos que tive na vida...não foram nada em comparação com as penas do inferno, ainda mais que percebi que seriam sem fim, incessantes” (V 32,2). Santa Teresa considera fonte de maior dor para os condenados a perda de Deus, para o qual foram criados.
    Também neste capítulo, encontramos relatos dos projetos da Fundação do Mosteiro de Descalças. Santa Teresa sabia que a primeira coisa para fazer a vontade de Deus era respeitar a Regra do Carmelo com toda perfeição. Para tanto, logo se viu envolvida, com algumas de suas irmãs, nos trabalhos de fundação do Mosteiro, que seria dedicado a São José, para este guardar uma porta e Nossa Senhora, a outra. Contou com a ajuda de sua amiga, Da. Guiomar de Ulloa.
    Teresa encontrou oposição por parte do Provincial; por outro lado foi incentivada por Frei Pedro de Alcântara e por muitas pessoas santas entre elas, Francisco de Salcedo. Apesar dos poucos recursos ela sabia que, com a ajuda de muitas orações, o Senhor a favoreceria e proveria por outros meios.

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