quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Capítulo 33 a 37

Capítulo 33

Continua a falar da fundação do mosteiro do glorioso São José. Explica que lhe deram ordens de não se envolver nela, relata o tempo em que obedeceu e algumas provações que teve, dizendo como o Senhor a consolava nisso.

1. Quando os negócios estavam a ponto de se resolver, visto que, no dia seguinte, seriam lavradas as escrituras, nosso Padre Provincial mudou de opinião.1 Pelo que vi depois, creio que ele foi movido por inspiração divina; porque, sendo tantas as orações, o Senhor ia aperfeiçoando a Sua obra e determinando que se fizesse de outro modo. Quando o Provincial não quis admitir a fundação, o meu confessor me ordenou que não mais me envolvesse nisso.2 Mas o Senhor sabe dos grandes sofrimentos e aflições que me tinha custado ter levado o empreendimento até esse ponto. Como ele foi abandonado e as coisas ficaram assim, confirmou-se mais a opinião de tratar-se de disparate de mulheres, aumentando os murmúrios sobre mim, embora tudo tivesse sido feito até então com a concordância do Provincial.

2. A opinião do meu mosteiro3 sobre mim não era das melhores, pois eu queria fazer um mosteiro de clausura mais estrita. As pessoas diziam que eu as ofendia, pois ali também se podia servir a Deus, havendo religiosas melhores que eu. Diziam também que eu não tinha amor pela casa e que melhor seria que procurasse obter recursos para ela do que para outra obra. Umas pensavam que eu devia ser lançada no cárcere;4 umas poucas faziam uma tímida defesa de mim. Eu bem via que em muitas coisas elas tinham razão e por vezes justificava a sua conduta, embora, como não pudesse falar do essencial, que era ter recebido ordens do próprio Senhor, não soubesse o que fazer, deixando assim de falar de outras coisas. O Senhor muito me agraciava porque, em tudo isso, não me deixava inquieta; deixei a obra de lado com muita facilidade e contentamento, como se até então não tivesse feito nenhum esforço. Ninguém pôde acreditar nisso, nem mesmo as almas de oração que tinham relação íntima comigo; pensava-se que eu estava muito confrangida e confusa, o que era a opinião do meu próprio confessor. Quanto a mim, tendo certeza de ter feito tudo o que podia, não mais me sentia obrigada a fazer esforços para cumprir a ordem do Senhor, ficando na casa em que estava muito contente e satisfeita. Se bem que jamais pudesse deixar de acreditar que a casa seria fundada, eu não via os meios para isso nem sabia como nem quando a obra se realizaria, mas achava que viria a existir.

3. O que me causou muito sofrimento foi ter recebido do meu confessor, como se eu tivesse feito coisa contra sua vontade (verdade é que o Senhor devia querer que também desse lado, que mais dores haveria de causar, eu não deixasse de receber sofrimentos), num momento em que uma multiplicidade de perseguições deveriam merecer dele, a meu ver, uma palavra de consolo, uma carta em que dizia perceber, diante do que ocorrera, que a obra não passava de sonho. Na carta, ele me ordenava que doravante desistisse do assunto e não mais falasse dele, devido ao escândalo e a tantas outras coisas lamentáveis.

Isso foi para mim mais lamentável do que todas as outras aflições juntas, dando-me a impressão de que, se eu fora causa e agente de ofensas a Deus, e se as visões que tivera eram uma ilusão, toda a oração que eu tinha era um engano, e eu estava perdida e errada. Isso me afligiu de modo tão extremo que fiquei toda perturbada e muito agitada. Mas o Senhor, que nunca me faltou, e que em todas as provações que me atingiram me consolou e animou muitas vezes — não cabendo relatá-las aqui —, me disse que eu não devia me afligir, que muito O servira, em vez de ofendê-Lo, naquele empreendimento e que obedecesse ao confessor, não me manifestando por enquanto, até que chegasse o momento de retomá-lo. Fiquei tão consolada e contente que toda a perseguição que me moviam me pareceu insignificante.

4. Nesse ponto, o Senhor me ensinou o imenso bem que é passar por so frimentos e perseguições por Ele, porque foi tanto o aumento do amor de Deus que vi em minha alma, ao lado de muitas outras coisas, que fiquei espantada. Isso me faz não poder deixar de desejar tribulações. As outras pessoas pensavam que eu estava envergonhada, e eu de fato estaria se o Senhor não me tivesse favorecido com tanto desvelo ao me conceder graça tão grande. Por essa época, comecei a ter aqueles ímpetos de amor a Deus já referidos5 e arroubos maiores, embora me calasse e não contasse a ninguém os ganhos que obtinha. O santo varão dominicano6 também tinha a mesma certeza minha de que a casa seria fundada; e, como eu não queria me envolver no assunto para não desobedecer ao meu confessor, ele o negociava com a minha companheira, escrevendo a Roma e dando todos os passos necessários.

5. Nesse ponto, o demônio também começou a espalhar, de boca em boca, que eu tinha tido alguma visão sobre o caso; por isso, as pessoas me procuravam, com muito medo, para me dizer que vivíamos tempos ruins7 e que poderiam levantar contra mim falsos testemunhos, denunciando-me aos inquisidores. Achei muita graça e ri, porque nunca tive temor disso, pois bem sabia que, em matéria de fé, eu antes morreria mil vezes do que me oporia a qualquer coisa da Igreja ou a qualquer verdade da Sagrada Escritura. Eu lhes disse que não temessem quanto a isso, pois em estado bem ruim estaria a minha alma se houvesse nela algo que me levasse a recear a Inquisição; se achasse que havia, eu mesma iria procurá-la. Eu disse ainda que, em caso de falsos testemunhos, o Senhor me livraria de tudo e ainda me propiciaria algum benefício.

Procurei o padre dominicano que, como eu disse, era tão instruído8 que eu podia ficar tranqüila diante do que ele me dissesse, e lhe contei todas as visões, o modo de oração e as grandes graças que o Senhor me concedia, com a maior clareza que pude, suplicando-lhe que a tudo examinasse muito bem e me dissesse se havia naquilo algo contra a Sagrada Escritura. Ele me tranqüilizou muito e, a meu ver, tirou algum proveito das minhas confidências, porque, embora fosse já muito bom, doravante se dedicou ainda mais à oração e se recolheu a um mosteiro de sua Ordem, muito mais solitário,9 para melhor poder praticar virtudes, tendo estado ali por mais de dois anos, até que a obediência o tirou dali — o que ele muito lamentou —, visto que as suas qualidades o tornavam necessário em outro lugar.

6. Senti muito quando ele se foi — embora não tenha tentado retê-lo — devido à grande falta que ele me faria. Mas percebi que era para seu proveito porque, estando muito pesarosa com a sua ida, o Senhor me disse que me consolasse e não ficasse assim, pois ele seguia um bom caminho. Quando ele voltou, sua alma tinha aproveitado tanto e avançara a tal ponto no caminho do espírito que ele me disse que não gostaria de ter deixado de ir por nada deste mundo. O mesmo eu podia dizer; porque quem antes me tranqüilizava e consolava apenas com o saber intelectual também passou a fazê-lo com a experiência espiritual, pois tinha muita em coisas sobrenaturais, tendo Deus promovido o seu retorno bem no momento em que viu ser ele necessário para ajudar em Sua obra do mosteiro.

7. Estive, pois, em silêncio, sem tratar nem falar do empreendimento por cinco ou seis meses, e o Senhor nunca me ordenou que o fizesse. Eu não podia saber a causa, mas não perdia a esperança de que o projeto se realizaria. Passado esse tempo, tendo ido daqui o Reitor da Companhia de Jesus, Sua Majestade trouxe outro muito espiritual, com grande ânimo e compreensão e muito douto, e num momento em que eu tinha muita necessidade disso. Porque, como o padre que me confessava era subordinado a um superior e como os jesuítas têm em extremo a virtude de seguir a vontade do seu Maior, esse meu confessor não se atrevia a decidir em algumas circunstâncias, por várias razões, embora entendesse bem meu espírito e desejasse que eu avançasse muito mais. Na época, minha alma já tinha ímpetos tão grandes que muito sofria ao ver-se tão restrita, embora eu de modo algum deixasse de fazer o que ele me mandava.10

8. Estando um dia com uma forte tribulação, pensando que o confessor não acreditava em mim, disse-me o Senhor que eu não me afligisse, pois aquele padecer logo se acabaria. Fiquei muito contente, julgando que não de moraria muito a morrer, sentindo grande alegria quando me lembrava disso. Depois, vi com clareza tratar-se da vinda desse Reitor de que falei; porque o sofrimento acabou, já que ele nada impedia ao Padre que era meu confessor, dizendo-lhe que me consolasse sem nenhum receio e que não me levasse por um caminho tão árduo, deixando agir o espírito do Senhor. Com efeito, às vezes a minha alma ficava, por assim dizer, quase sem poder respirar de vido aos grandes ímpetos do espírito.

9. Esse Reitor foi me procurar, e o confessor me ordenou tratar com ele com toda a liberdade e clareza. Eu costumava me sentir muito inibida diante de contatos como esse. Contudo, ao entrar no confessionário, tive um sentimento interior desconhecido que não me lembro de ter sentido antes nem depois com ninguém; não sei descrevê-lo sequer com comparações. Porque foi um prazer espiritual, uma sensação de que aquela alma havia de entender a minha, de que havia entre elas uma afinidade, embora, repito, eu não saiba como.

Não causaria espanto essa alegria pela esperança de ser compreendida se eu já tivesse falado com ele ou recebido informações a seu respeito, mas isso nunca ocorrera. Vi depois que o meu espírito não se enganara; desse relacionamento adveio, sob todos os aspectos, um enorme proveito para os meus empreendimentos e a minha alma. Ele dirige muito bem as pessoas que o Senhor parece ter elevado bem alto, pois não as faz caminhar passo a passo, e sim correr, buscando desapegá-las de tudo e mortificá-las, pois também nisso, como em muitas outras coisas, o Senhor lhe deu um talento fora do comum.

10. Desde que passei a me relacionar com ele, entendi seu estilo e vi ser ele uma alma pura e santa, dotada pelo Senhor de um talento particular de dis cer nir espíritos, o que muito me consolou. Pouco depois desse contato, o Senhor voltou a me impelir a tratar da questão do mosteiro, mandando-me dizer ao meu confessor e a esse Reitor das muitas razões e motivos para que eles não se tor nassem empecilhos a isso. Algumas dessas razões causaram impressão, porque o Padre Reitor nunca duvidou, depois de estudar com muito cuidado e so licitude todos os efeitos que se manifestavam em mim, de que se tratava do es pírito de Deus. Enfim, por várias razões, eles não se atreveram a me estorvar.11

11. Meu confessor me permitiu outra vez dedicar-me por inteiro à obra. Eu percebia que problemas tinha pela frente, visto estar só e ter muito poucos recursos. Combinamos que tudo se faria em segredo e, assim, fiz que uma irmã minha12 que vivia fora daqui comprasse a casa, e lavrasse a escritura como se fosse para si mesma, com os recursos que o Senhor fez chegar a nós, por certos meios, em quantidade suficiente para a aquisição. Seria extenso narrar aqui como o Senhor foi fazendo isso.

Eu tinha o maior cuidado em nada fazer contra a obediência; mas sabia que, se o dissesse aos meus prelados, tudo se perderia como da vez passada ou até de modo pior. Para conseguir dinheiro, fazer as diligências necessárias, organizar planos e dirigir obras, tive momentos de enorme dificuldade, alguns bem sozinha (minha companheira fazia o que podia, mas podia pouco, e tão pouco que era quase nada, além de permitir que a obra fosse feita em seu nome e com o seu favor; todo o trabalho restante era meu), tendo sofrido de tantas maneiras que agora me espanto de tê-lo podido suportar.

Por vezes, desarvorada, eu dizia: “Senhor meu, como me ordenais coisas que parecem impossíveis? Se eu, mesmo sendo mulher, ao menos tivesse liberdade! Mas, impedida por todos os lados, sem recursos e sem ter aonde buscá-los, mesmo para as despesas do Breve, que posso fazer, Senhor?”

12. Numa ocasião, estando numa necessidade que não sabia resolver, nem tendo com que pagar aos operários, apareceu-me São José, meu verdadeiro pai e senhor, e deu-me a entender que recursos não me faltariam e que eu devia contratá-los. Eu o fiz, sem dispor de um centavo, e o Senhor, por caminhos que espantavam aos que o viam, me forneceu os recursos.13 Comecei a achar a casa muito pequena, e tanto que parecia impossível torná-la um mosteiro; por isso, quis comprar outra (não tinha com que, não havia maneira de fazer a aquisição, nem eu sabia como proceder), situada ao seu lado, também muito pequena para erigir a igreja.

Certo dia, quando eu acabava de comungar, disse-me o Senhor: Já te falei que comeces como puderes.E, exclamando: Ó cobiça do gênero humano, que até a terra pensas que te há de faltar! Quantas vezes dormi ao relento por não ter onde me abrigar! Fiquei pasma e vi que o Senhor tinha razão; fui à casa pequenina, elaborei meus planos e encontrei meios para torná-la um mosteiro regular, se bem que minúsculo. Desisti de comprar mais terras, mas fiz adaptações para que se pudesse viver na casa; tudo era tosco e grosseiro, tendo o suficiente para não prejudicar a saúde; e assim se deve fazer sempre.

13. No dia de Santa Clara, indo comungar, a Santa me apareceu, muito formosa.14 Disse-me que me esforçasse e desse continuidade ao que iniciara, pois teria a sua ajuda. Tomei por ela grande devoção e, em cumprimento de sua promessa, um mosteiro de monjas de sua Ordem15 situado perto deste ajuda a nos sustentar. Além disso, a bem-aventurada Santa elevou pouco a pouco os meus anseios a tamanha perfeição que a pobreza que ela instituiu em seus mos teiros também está presente neste, e vivemos de esmola. Não me tem custado pou cos esforços estabelecer com toda a firmeza e autoridade do Santo Padre que não se aja senão assim e que nunca se tenham rendimentos.16 E o Senhor faz mais ainda, talvez atendendo às súplicas dessa bendita Santa, pois, sem que peçamos, nos fornece o necessário com muita fartura. Bendito seja para sempre, amém.

14. Também por esses dias, eu estava na capela de um mosteiro da Ordem do glorioso São Domingos no dia de Nossa Senhora da Assunção17 considerando os inúmeros pecados que em tempos passados confessara naquela casa e outras coisas da minha vida ruim. De repente, veio-me um arroubo tão intenso que quase perdi os sentidos; sentei-me e creio que não vi a elevação nem ouvi a missa, ficando depois envergonhada disso. Enquanto me encontrava naquele estado, tive a impressão de que me cobriam com uma roupa de grande brancura e esplendor. No início, eu não via quem o fazia, tendo percebido depois Nossa Senhora do meu lado direito e meu pai São José do esquerdo adornando-me com aquelas vestes. Eles me deram a entender que eu estava purificada dos meus pecados.

Depois que acabaram de me vestir, estando eu com enorme deleite e glória, tive a impressão de que Nossa Senhora tomava-me as mãos, dizendo--me que lhe dava muito contentamento ver-me servir ao glorioso São José e que eu estivesse certa de que o mosteiro se faria de acordo com o meu desejo, sendo o Senhor e eles dois muito bem servidos ali. Eu não devia temer que nisso viesse a haver quebra, embora a obediência não fosse bem do meu gosto, porque eles nos guardariam, e o seu Filho já nos prometera andar ao nosso lado. Como sinal de verdade, ela me dava uma jóia.

Tive a impressão de que ela me punha no pescoço um colar de ouro muito formoso do qual pendia uma cruz de muito valor. O ouro e as pedras dessa jóia são tão diferentes dos de cá que não há comparação; porque a sua formosura muito difere do que podemos imaginar aqui, não podendo o intelecto compreender de que era a veste nem imaginar a alvura que o Senhor deseja nos apresentar, de tal modo que todas as coisas deste mundo parecem, por assim dizer, um esboço a carvão.

15. Era grandíssima a beleza que vi em Nossa Senhora, embora não tenha podido observar nenhum traço particular seu, mas o conjunto do rosto, estando ela vestida de branco, com enorme resplendor, não do tipo que deslumbra, mas algo suave. Não vi o glorioso São José tão claro, mas percebi a sua presença, como nas visões de que falei, em que não se vêem imagens.18 Nossa Senhora me pareceu muito jovem. Estiveram comigo mais um pouco, estando eu cheia de glória e de júbilo, numa intensidade que eu talvez jamais tenha sentido e que não quisera ver chegar ao fim.

Pareceu-me então vê-los subir ao céu com uma enorme corte angélica. Fiquei com muita saudade, mas tão consolada, enlevada, recolhida em oração e enternecida que por algum tempo permaneci quase fora de mim, sem poder mover-me nem falar. Veio-me um veemente ímpeto de me desfazer por Deus, ímpeto que teve tais efeitos em mim que nunca pude duvidar da verdade de que todo o ocorrido era coisa de Deus. Fiquei consoladíssima e com muita paz.

16. O que a Rainha dos Anjos dissera sobre a obediência19 referia-se ao fato de eu sentir muito não pôr o mosteiro sob a jurisdição da nossa Ordem, pois o Senhor me falara que não convinha fazê-lo. Indicou-me os motivos pelos quais isso de nenhum modo era conveniente, dizendo-me para recorrer a Roma, por certa via que também me indicou, prometendo que faria vir por esse meio as licenças. Isso de fato ocorreu — quando até então nunca chegávamos a uma solução —, e com pleno êxito, quando segui o caminho indicado pelo Senhor.

Considerando-se as coisas que mais tarde sucederam, foi muito conveniente ter-se prestado obediência ao Bispo. Mas, na época, eu não o conhecia, nem sabia que prelado seria; quis o Senhor que ele fosse muito bom e favorecesse bastante esta casa, o que era bem necessário diante da grande conflagração que a envolveu, como mais tarde vou contar,20 levando-a ao estado em que se encontra. Bendito seja Aquele que assim tudo fez, amém.

Capítulo 34

Trata de como foi conveniente ausentar-se nessa época de Ávila. Conta a causa e diz que o seu prelado a mandou consolar uma senhora nobre que se encontrava muito aflita. Começa a narrar o que lhe aconteceu ali e o grande favor que o Senhor lhe concedeu ao servir-se dela para despertar uma pessoa de posição elevada para dedicar-se verdadeiramente ao Senhor. Dessa pessoa lhe vieram, mais tarde, favor e amparo. Trata-se de capítulo digno de nota.

1. Mesmo me esforçando para que não se soubesse da obra, não era possível deixá-la num segredo tamanho que ninguém o percebesse. Algumas pessoas acreditavam e outras não. Eu temia muito que, vindo o Provincial, dissessem a ele algo sobre isso, e fosse proibida de me ocupar da obra, parando todo o trabalho. Mas o Senhor agiu da seguinte maneira: numa cidade grande, a mais de vinte léguas daqui, uma senhora estava muito aflita por causa da morte do marido; estava abalada a tal ponto que se temia pela sua saúde.1 Ela teve notícia desta pecadorazinha, pois o Senhor assim o dispôs; alguém falou bem de mim, o que produziu outros benefícios a partir disso.

Essa senhora conhecia muito o Provincial e, sendo pessoa importante e sabendo que eu estava num mosteiro sem clausura, teve, por inspiração do Senhor, um intenso desejo de me ver, pois lhe parecia poder se consolar comigo, já que sozinha não o podia. Ela logo procurou, por todos os meios, levar-me até lá, tendo enviado um mensageiro ao Provincial, que se en contrava bem longe. Ele me deu ordem, com preceito de obediência, para partir de imediato com uma companheira. Eu recebi a ordem na noite de Natal.2

2. Essa ordem me perturbou um pouco e me magoou muito quando percebi que a causa de quererem me levar era a crença de que havia em mim algum bem, o que eu, vendo-me tão ruim, não conseguia suportar. Encomendando-me muito a Deus, fiquei todo o tempo das Matinas, ou grande parte dele, tomada por um grande arroubo. O Senhor me disse que não deixasse de ir e não me incomodasse com objeções, porque poucos me aconselhariam sem temeridade. Disse ainda que, embora eu fosse sofrer, isso muito serviria a Deus e que, para os fins do mosteiro, convinha que eu me ausentasse até chegar o Breve.

Acrescentou que o demônio tinha feito uma grande trama para quando o Provincial voltasse; eu nada devia temer, porque Ele me ajudaria. Fiquei muito animada e consolada e disse tudo ao Reitor, que respondeu que eu de modo algum deixasse de ir. Outras pessoas, contudo, me diziam que isso não era admissível, que era invenção do demônio para que lá me atingisse algum mal e que eu devia me comunicar outra vez com o Provincial.

3. Obedeci ao Reitor e, com o que entendera na oração, parti sem medo, embora sentisse grande confusão por ver a que título me levavam e como se enganavam tanto a meu respeito. Isso me fazia importunar mais o Senhor para que não me deixasse só. Um grande consolo meu era o fato de haver uma casa da Companhia de Jesus no lugar para onde ia,3 o que me parecia dar muita segurança, pois estaria sujeita, lá como cá, às suas ordens.

Pela vontade do Senhor, aquela senhora se consolou tanto que passou a ter de imediato pronunciada melhora, consolando-se mais e mais a olhos vis tos. Isso causou grande impacto porque, como eu disse,4 a sua dor a dei xava em grande angústia; o Senhor deve ter feito isso pelas muitas orações que faziam por mim as boas pessoas que eu conhecia para que tudo corresse bem. Essa senhora era muito temente a Deus e tão piedosa que a sua grande religiosidade supriu o que me faltava. Ela tomou-se de grande afeição por mim, e eu também gostava muito dela por ver sua bondade.

Mas quase tudo se tornava cruz para mim; porque os regalos me davam um grande tormento, e o fato de me terem tanta consideração me deixava com um imenso temor. A minha alma andava tão encolhida que eu não me atrevia a descuidar dela, nem o Senhor o fazia; porque, enquanto eu estava ali, Ele me fez muitos favores, que me davam tanta liberdade e tanto me faziam menosprezar tudo o que via — e, mais valioso o objeto, maior o meu desprezo — que eu não deixava de tratar com aquelas damas, a quem servir era para mim grande honra, com a naturalidade de quem fosse igual a elas.

4. Obtive disso muito proveito, o que dizia à própria Dona Luisa. Vi que ela era mulher, e tão sujeita a paixões a fraquezas quanto eu, e compreendi como se devem estimar pouco as grandezas humanas e que, quanto maiores as posses, tanto maiores os cuidados e sofrimentos que se têm. Além disso, a preocupação de ter a compostura correspondente ao seu estado não deixa essas pessoas viverem; elas comem fora de hora e de qualquer jeito, porque tudo deve corresponder à dignidade, e não ao temperamento; degustam muitas vezes manjares mais adequados ao seu estado do que ao seu gosto.

Por isso, desprezei totalmente o desejo de ser senhora — Deus me livre, contudo, da má compostura! —, se bem que aquela, apesar de ser das mais importantes do reino, seja talvez insuperável em humildade e afabilidade. Eu tinha pena, e ainda tenho, de vê-la forçada muitas vezes a ir contra suas inclinações para atender às exigências da sua condição. É preciso confiar pouco nos criados, mesmo que, como os dela, sejam bons. Não se deve falar mais com um do que com outro, para que o favorecido não fique malquisto. Trata-se de uma sujeição que me faz afirmar que uma das mentiras do mundo é chamar de senhores pessoas como essas, que não me parecem senão escravas de mil coisas.

5. Quis o Senhor que, durante o tempo em que estive naquela casa, todas as pessoas se aperfeiçoassem no serviço a Sua Majestade, embora eu não estivesse livre de tribulações e invejas da parte de algumas pessoas, devido ao muito amor que a senhora tinha por mim; com certeza pensavam que me movia algum interesse. O Senhor devia permitir que eu tivesse alguns sofrimentos e coisas semelhantes, para que não me embebesse das facilidades que ali havia, e fez com que eu obtivesse de tudo melhoras para a minha alma.

6. Durante a minha estada, chegou um religioso, pessoa muito importante com a qual eu há muitos anos tivera contato.5 Estando assistindo à missa num mosteiro de sua Ordem próximo do lugar onde me encontrava, desejei saber as disposições daquela alma, pois queria que fosse um bom servo de Deus. Levantei-me para lhe falar; como já estava recolhida em oração, julguei que isso seria perder tempo e voltei a me sentar, perguntando a mim mesma o que tinha que ver com aquilo.

Creio que isso aconteceu por três vezes e, finalmente, o anjo bom venceu o mau, e eu fui até ele, que veio falar comigo num confessionário. No início, como há muitos anos não nos víamos, perguntamos sobre a vida um do outro. Eu lhe disse que a minha tinha sido marcada por muitos tormentos de alma. Ele insistiu muito em que eu lhe falasse desses tormentos. Eu lhe disse que não eram para ser sabidos, nem eu os devia contar. Ele respondeu que o padre dominicano de que falei6 — que era muito amigo seu — logo o poria a par de tudo e que por isso eu podia confiar nele também.

7. Na verdade, não estava em suas mãos deixar de me importunar, nem nas minhas, creio eu, deixar de contar-lhe; porque, sendo tanto o pesar e a vergonha que costumo ter quando falo dessas coisas, com ele e com o Reitor de que falei,7 não tive nenhuma dificuldade e até me consolei muito. Eu lhe contei tudo sob segredo de confissão. Ele me pareceu mais esclarecido do que nunca, embora eu sempre o considerasse pessoa de grande compreensão. Percebi os enormes talentos e capacidades que ele tinha para aproveitar muito, caso se entregasse por inteiro a Deus. Porque, de uns anos para cá, não posso ver pessoa que muito me agrade sem desejar vê-la totalmente dedicada a Deus, sentindo ânsias tais que por vezes não posso me conter. Embora deseje que todos sirvam ao Senhor, desejo com muito ímpeto que essas pessoas que me alegram o façam, razão por que muito suplico ao Senhor por elas. Com esse religioso, assim aconteceu.

8. Ele me rogou que o encomendasse muito a Deus, mas nem era preciso, pois eu já não podia fazer outra coisa. Fui para onde costumava ter oração sozinha e comecei a tratar com o Senhor, estando em profundo recolhimento, de uma maneira simples com que muitas vezes, sem saber o que digo, me relaciono com Ele; nesses momentos, é o amor que fala, e a alma fica tão fora de si que não vê a diferença que há entre ela e Deus. Porque o amor que ela sabe que Sua Majestade tem por ela a faz esquecer de si mesma e lhe dá a impressão de estar Nele, e, como se ela e Ele fossem uma coisa só, a faz dizer desatinos. Lembro-me de ter Lhe dito, depois de pedir com muitas lágrimas que pusesse aquela alma a Seu serviço de verdade — porque, embora fosse alma tão boa, eu não me contentava com isso, querendo que fosse muito santa: “Senhor, não me negueis este favor; vede quão boa é essa pessoa para ser nossa amiga”.

9. Ó bondade e grande humanidade de Deus, que não vê as palavras, mas os desejos e a vontade com que são ditas! Como suporta que uma pessoa como eu seja tão atrevida com Sua Majestade? Bendito seja para todo o sempre!

10. Lembro-me de que naquela noite, enquanto orava, tive uma grande aflição ao pensar que talvez me tivesse tornado inimiga de Deus; e, como não podia saber se estava ou não em Sua graça (não que eu desejasse saber, querendo antes morrer para não me ver em vida onde não tinha certeza de estar morta ou viva, porque não podia haver para mim morte pior do que pensar que tinha ofendido a Deus), sentia-me constrangida; eu Lhe suplicava que não permitisse isso, cheia de ternura e derretida em lágrimas.

Então percebi que podia me consolar e ter certeza de estar em graça;8 porque semelhante amor de Deus, as graças que Sua Majestade dava à minha alma e os sentimentos que me inspirava jamais teriam como alvo uma alma que estivesse em pecado mortal. Fiquei confiante de que o Senhor faria o que eu suplicava para essa pessoa. Ele me encarregou de lhe transmitir algumas palavras. Eu o senti muito, pois não sabia como fazê-lo, já que dar recado a uma pessoa é, como eu disse,9 o que mais me custa, em especial quando é preciso dá-lo a alguém que eu não sabia como o tomaria ou se zombaria de mim. Fiquei muito aflita. Depois, persuadi-me tanto que, pelo que me lembro, prometi a Deus que não deixaria de fazê-lo. Contudo, dada a grande vergonha que tinha, eu escrevi as palavras do Senhor e assim as transmiti ao religioso.

11. Foi perceptível, dado o efeito que as palavras produziam nele, tratar--se de coisa de Deus.10 Ele decidiu verdadeiramente dedicar-se à oração, se bem que não de imediato. Como o queria para Si, o Senhor lhe mandava dizer, por meu intermédio, algumas verdades que, sem que eu as entendesse, eram tão a propósito que o espantavam e o dispunham a crer que vinham de Sua Majestade. Eu, embora miserável, suplicava muito ao Senhor que o atraísse por inteiro a Si, e o fizesse desdenhar as alegrias e coisas da vida. E assim — louvado seja Ele para sempre! — o fez, e com tanta intensidade, que cada vez que esse religioso me fala, fico maravilhada; e, se eu não fosse testemunha, duvidaria que em tão breve tempo o Senhor lhe tivesse concedido tão grandes graças e o mantivesse tão ocupado em Deus, pois ele não parece viver para coisas da terra.

Que Sua Majestade o leve pela mão, pois, se for adiante — como espero em Deus que vá, visto conhecer a si próprio sólida e profundamente —, ele há de ser um dos Seus mais notáveis servos e um grande benefício para inúmeras almas. De fato, ele adquiriu em pouco tempo muita experiência em coisas do espírito, um dom que Deus dá quando quer e como quer, pouco importando a antiguidade ou os serviços prestados. Não que essas coisas não ajudem muito, mas é verdade que o Senhor muitas vezes não dá em vinte anos a um a contemplação que concede a outro num único ano. Sua Majestade é quem sabe por quê.

Iludimo-nos ao pensar que os anos nos levam a entender o que de nenhuma maneira se pode alcançar sem experiência; e assim muitos erram, como eu disse,11 querendo discernir espíritos sem ter a capacidade para tanto. Não afirmo que quem não a tiver não governe quem a tem, caso seja douto; isso é possível, desde que siga a via natural, mediante a ação do intelecto, tanto nas coisas exteriores como nas interiores, e que, no tocante às coisas sobrenaturais, siga a Sagrada Escritura. Quanto ao mais, que não se atormente, não pense compreender o que não entende nem afogue os espíritos,12 porque, nesse ponto, um Senhor maior o governa, não estando ele sem superior.

12. Tal pessoa não deve se espantar nem considerar nada impossível — tudo é possível ao Senhor —, procurando antes avivar a sua fé e humilhar--se com o fato de que o Senhor, nesta ciência, talvez torne uma velhinha mais sábia do que uma pessoa muito educada; com essa humildade, a pessoa beneficiará mais às almas e a si mesma do que se fizer as vezes de contemplativo não o sendo. Repito: quem não tem experiência e também não tiver muita humildade para se persuadir de que as coisas que não entende nem por isso são impossíveis pouco ganhará, e ganharão ainda menos as almas que dirige. Se for humilde, a pessoa não deve recear, pois o Senhor não lhe vai permitir que se engane a si nem aos outros.

13. Esse padre que eu disse ter recebido muitas graças do Senhor procurou estudar tudo o que é possível conhecer sobre essa matéria pelo estudo, pois é muito instruído. Ele pergunta a quem tem experiência aquilo que não entende por não tê-la; com isso, é ajudado pelo Senhor, que lhe dá muita fé. Assim sendo, muito tem beneficiado a si e a algumas almas, incluindo a minha.

Pois o Senhor, sabendo em quantos sofrimentos eu me veria, parece ter determinado que, já que havia de levar para Si alguns dos que me dirigiam,13 ficassem outros, que me têm ajudado nas minhas grandes dificuldades e me feito um grande bem. Esse padre foi transformado por inteiro por Sua Majestade, a tal ponto que quase não reconhece a si mesmo, por assim dizer. Deus lhe tem dado forças corporais para a penitência (que ele antes não tinha, vivendo enfermo) e ânimo para tudo o que é bom, o que parece ser um chamamento muito particular do Senhor. Bendito seja Ele para sempre.

14. Creio que todo o bem vem das graças que o Senhor lhe tem concedido na oração, que são bem reais; porque, em algumas coisas, o Senhor já quis que ele tivesse experiência, pois ele sai delas como quem já conhece a verdade do mérito que se acumula ao sofrer perseguições. Espero que, pela grandeza do Senhor, muitos benefícios advenham por meio dele a pessoas de sua Ordem e a ela mesma.

Isso já começa a se manifestar. Tive grandes visões, e o Senhor me disse algumas coisas dignas de admiração a seu respeito e a respeito do Reitor da Companhia de Jesus de quem falei,14 assim como de outros dois religiosos da Ordem de São Domingos, especialmente de um,15 de cujo avanço espiritual, manifesto em obras, o Senhor vem mostrando coisas de que antes me falara. Têm sido muitas, em especial, as revelações acerca do religioso de quem tenho falado.

15. Desejo narrar agora um fato. Eu estava certa vez com ele num lo cu tó rio, e era tanto o amor que a minha alma e o meu espírito percebiam arder nele que eu quase estava absorta; porque considerava o poder de Deus que, em tão pouco tempo, elevara uma alma a estado tão sublime. Eu ficava muito confusa ao vê-lo escutar com tanta humildade algumas coisas de oração de que eu falava e verificava quão pouca era a minha por tratar assim com uma pes soa como ele, mas o Senhor devia permiti-lo porque eu tinha grande de sejo de vê-lo adiantar-se muito. Era-me tão proveitoso estar com ele que eu tinha a impressão de que a minha alma recebia um novo ardor para desejar servir ao Senhor, como se eu estivesse começando de novo. Ó Jesus meu, quanto faz uma alma abrasada em Vosso amor! Quanto a deveríamos estimar e suplicar ao Senhor que a deixe nesta vida! Quem tem o mesmo amor de veria, se pudesse, andar em busca de almas assim.

16. É muito bom para um enfermo encontrar outro acometido pelo mesmo mal; muito consola ver que não se está só; os dois se ajudam mutuamente a pa decer e a merecer, formando um excelente par pessoas determinadas a ar riscar mil vidas por Deus e que desejam que lhes sejam oferecidas ocasiões nas quais perdê-las. São como soldados que, para ganhar os despojos e ficar ricos com eles, desejam que haja guerra, certos de que, de outro modo, nada conseguirão, pois esse é o seu ofício.

Oh! Que grande coisa acontece quando o Senhor nos ilumina para entender o quanto ganhamos em sofrer por Ele! E não entendemos isso bem até abandonarmos tudo, porque quem está preso a algo revela gostar desse algo e, se gosta, muito lhe há de pesar deixá-lo, o que torna tudo imperfeito e perdido. Vem a propósito o ditado de que perdido está quem anda atrás do perdido. E que maior perdição, maior cegueira, maior desventura que estimar muito o que nada é?

17. Voltando agora ao que dizia,16 eu estava em grande regozijo contemplando aquela alma, parecendo-me que o Senhor queria que eu visse com clareza os tesouros que tinha posto nela. Vendo a graça que Deus me fizera ao permitir que por meu intermédio — achando-me eu indigna disso — isso acontecesse, eu apreciava ainda mais os favores que o Senhor lhe concedera, muito mais do que se fossem feitos a mim, louvando muito a Deus ao ver que Ele realizava meus desejos e ouvia a minha oração, pois eu queria que o Senhor despertasse pessoas semelhantes.

Minha alma, com uma alegria incontida, saiu de si e se perdeu para mais ganhar. Deixou de lado as considerações e, ao ouvir a língua divina na qual o Espírito Santo parecia falar, levou-me a um grande arroubo que quase me fez perder os sentidos, embora tenha durado pouco. Vi Cristo com enorme majestade e glória, mostrando grande contentamento com o que ali se passava. E foi o que ele me disse, desejando que eu tivesse certeza de que Ele sempre estava presente em semelhantes práticas e visse o muito que Lhe agrada ver-nos regozijar ao falar Dele.

Em outra ocasião, estando ele longe deste lugar, eu o vi ser elevado com muita glória pelos anjos;17percebi, com essa visão, que a sua alma muito se adiantaria. E assim ocorreu, porque, quando levantaram um falso testemunho contra a sua honra, sendo autor uma pessoa a quem ele muito bem fizera e de quem cuidara em termos de honra e de alma, ele a tudo suportou com muito contentamento, tendo realizado outras obras no serviço de Deus e padecido outras perseguições.

18. Não me parece conveniente ir adiante com isso. Se vossa mercê18 mais tarde julgar oportuno que eu conte mais coisas, já que as conhece, eu o farei para a glória do Senhor. Todas as profecias que me têm sido reveladas sobre esta casa e sobre vários acontecimentos, alguns já referidos e outros de que virei a falar, se têm cumprido. Em alguns casos, três anos antes de se realizarem, elas me foram ditas pelo Senhor. Em outros casos, mais cedo e, em outros ainda, mais tarde. Eu sempre as contava ao meu confessor e à viúva amiga minha com quem tinha licença para falar, como eu disse;19 eu soube que ela o relatava a outras pessoas, e estas sabem que não minto. E que Deus não permita que em coisa alguma, ainda mais em assunto tão grave, eu falte à verdade.

19. Tendo falecido de repente um cunhado meu,20 e estando eu penalizada por ele não ter conseguido confessar-se, recebi na oração a mensagem de que a minha irmã também morreria assim e que eu fosse até lá e a procurasse dispor a estar sempre preparada. Eu o disse ao meu confessor, que não me deixou partir, só o fazendo depois de eu ter recebido o aviso outras vezes, quando me disse que fosse, pois nada se perderia com isso. Ela estava numa aldeia.21 Fui sem lhe dizer nada e, chegando, esclareci-a aos poucos sobre todas as coisas, persuadindo-a a se confessar com freqüência e a ter muito cuidado com a sua alma. Como era boa, ela assim o fez.

Ao fim de quatro ou cinco anos, mantendo sempre esse costume e tendo a consciência em muito boa conta, ela morreu sem que ninguém a visse e sem poder confessar-se. Ainda bem que, como estava acostumada, ela se confessara há pouco mais de oito dias. Quando recebi a notícia de sua morte, essa circunstância muito me alegrou. Ela esteve muito pouco tempo no purgatório. Menos de oito dias depois, ao que parece, quando eu acabava de comungar, o Senhor me apareceu e quis que eu visse como Ele a levava para a glória. Em todos esses anos entre a revelação e a sua morte, aquela nunca me saíra da cabeça nem da memória da minha amiga, que, ao saber do falecimento da minha irmã, veio me ver, muito espantada ao perceber que tudo se havia cumprido. Louvado seja Deus para sempre, que tanto cuida das almas para que não se percam.

Capítulo 35

Continua a falar da fundação do mosteiro do nosso glorioso Pai São José. Conta de que maneira o Senhor ordenou que se viesse a guardar nele a santa pobreza, bem como a razão por que deixou a companhia daquela senhora com quem estava. Fala de algumas outras coisas que aconteceram.1

1. Estando eu com essa senhora de quem falei, em cuja casa passei mais de meio ano, o Senhor ordenou que tivesse notícia de mim uma beata de nossa Ordem, que residia a mais de setenta léguas daqui e fez um grande rodeio para vir a mim.2 O Senhor a movera, no mesmo ano e mês que a mim, a fundar outro mosteiro da nossa Ordem; com esse desejo, ela vendera tudo o que tinha e fora a Roma, a pé e descalça, requerer o Breve para a fundação.

2. É mulher de muita penitência e oração, a quem o Senhor agraciava com muitos favores, tendo-lhe aparecido Nossa Senhora, que lhe mandou realizar essa obra. Diante de mim, ela progredia tanto em servir ao Senhor que eu tinha vergonha de estar em sua presença. Ela me mostrou os despachos que trazia de Roma e, nos quinze dias que passou comigo, estabelecemos como haveríamos de fazer esses mosteiros.

Até falar com ela, eu não sabia que a nossa Regra — antes de ser mitigada —3 determinava que nada possuíssemos. Eu nunca pensei em fundá--lo sem rendas, pois pretendia que não tivéssemos cuidado com aquilo de que precisávamos para viver, sem considerar as muitas preocupações envolvidas pelas posses. Essa bendita mulher, sendo ensinada pelo Senhor, tinha um bom entendimento, sem saber ler, do que eu, tendo lido tanto as Constituições, ignorava. O que ela me disse me pareceu bom, embora eu tivesse receio de que não o consentissem, mas que dissessem ser um desatino e que eu não devia fazer uma coisa que fizesse padecer outras pessoas por minha causa.

Se eu estivesse sozinha, nada me teria detido e, pelo contrário, teria grande contentamento com a perspectiva de guardar os conselhos de Cristo Nosso Senhor, porque Sua Majestade já me dera grandes desejos de pobreza. Por isso, eu não duvidava de que isso fosse o melhor para mim; porque havia dias em que desejava que o meu estado possibilitasse pedir esmolas por amor de Deus, e não ter casa nem qualquer outra coisa.

Mas eu temia que, se o Senhor não desse às outras esses desejos, elas vivessem descontentes e que resultasse daí alguma distração, porque eu via alguns mosteiros pobres e pouco recolhidos, sem compreender que eram pobres devido à falta de recolhimento e que a pobreza não era a causa da distração. Esta, pelo contrário, não faz ninguém mais rico, nem falta Deus jamais a quem O serve. Ou seja, a minha fé era fraca, o que não ocorria com essa serva de Deus.

3. Como costumava fazer, pedi a opinião de várias pessoas sobre isso, mas quase ninguém pensava assim, nem o confessor, nem os eruditos a quem me dirigi. Eles me apresentavam tantas razões que eu não sabia o que fazer, porque, como já sabia que a pobreza era um aspecto da nossa Regra, e considerando-a uma atitude mais perfeita, eu não podia me convencer a ter renda. Quando ocorria de eu me persuadir com os argumentos que ouvia, ao voltar à oração e olhar Cristo na cruz tão pobre e desnudo, não suportava a idéia da riqueza; eu Lhe suplicava com lágrimas que fizesse as coisas de maneira que eu me visse tão pobre quanto Ele.

4. Eu achava muitos inconvenientes em ter renda e via ser isso causa de tanta inquietação e distração que vivia a discutir com os eruditos. Escrevi sobre isso ao dominicano4 que nos ajudava; ele me respondeu por escrito, em duas folhas plenas de teologia e argumentos, opondo-se à idéia, dizendo-me que muito ponderara sobre o assunto. Eu lhe respondi que, para não seguir o meu chamamento, o voto de pobreza que tinha feito e os conselhos de Cristo com toda a perfeição, eu não queria me aproveitar da teologia, renunciando ao benefício dos seus conhecimentos.

Quando eu achava alguma pessoa que me ajudasse, muito me alegrava, contando para isso com o grande auxílio daquela senhora em cuja casa estava;5 algumas, desde o princípio, me diziam concordar com o meu intento, mas, depois de ponderarem mais, encontravam tantos inconvenientes que terminavam por se opor a isso outra vez. Eu lhes respondia que, já que mudavam de opinião com tanta rapidez, eu preferia seguir seu primeiro parecer.

5. Nessa época, quis o Senhor, atendendo aos meus apelos, que o santo Frei Pedro de Alcântara viesse à casa daquela senhora, que ainda não o conhecia. Como amava verdadeiramente a pobreza, que observava há tanto tempo, ele bem conhecia os tesouros que ela contém, razão por que muito me ajudou e me ordenou que de modo algum deixasse de levar adiante o que pretendia. Tendo obtido essa opinião e esse apoio, vindos de quem melhor os podia dar, visto ter um conhecimento fundado em larga experiência, decidi não consultar mais ninguém.6

6. Estando um dia encomendando muito o caso a Deus, disse-me o Senhor que de forma alguma deixasse de estabelecer o mosteiro na pobreza, por ser essa a vontade do Seu Pai e Sua, e que me ajudaria. Isso aconteceu num arroubo tão intenso e que teve efeitos tão fortes que não pude duvidar de que fosse obra de Deus.

Em outra ocasião, disse-me Ele que a confusão estava na renda, acrescentando muitas coisas em louvor da pobreza e me dando a garantia de que o necessário para viver não falta a quem O serve — falta que eu, como disse, nunca temi. Do mesmo modo, o Senhor mudou também o coração do padre Presentado,7 isto é, do religioso dominicano que me escrevera dizendo que não fizesse o mosteiro sem renda. Eu já estava muito contente por ter sabido disso e ter obtido tais opiniões; parecia-me possuir toda a riqueza do mundo a partir do momento em que me decidira a viver só por amor de Deus.

7. Nessa época, meu Provincial8 levantou o preceito de obediência que me impusera para estar com aquela senhora, deixando a meu critério partir ou permanecer algum tempo. Aproximavam-se as eleições em meu mosteiro, e me avisaram que muitas monjas desejavam me dar o cargo de prelada, algo que, só de pensar, me trazia tamanho tormento que eu antes me determinaria a sofrer por Deus qualquer martírio para não ter de aceitá-lo; nenhum artifício seria capaz de me persuadir do contrário. Isso porque, na minha opinião, deixando de lado o enorme trabalho, por serem muito numerosas9 as religiosas, eu nunca gostei de nenhum cargo nem de muitas outras coisas, sempre tendo recusado quando me ofereciam, visto achar que aí havia perigo para a consciência. Assim, entoei louvores a Deus por não me achar no mosteiro. Escrevi a minhas amigas para que não votassem em mim.

8. Eu estava muito contente por não me achar em meio àquele alvoroço quando o Senhor me disse que de forma alguma deixasse de ir, pois, se eu de sejava cruz, havia uma excelente à minha espera, que eu não deveria desprezar, devendo partir com ânimo, pois Ele me ajudaria, e sem demora. Sofri muito com isso e só chorava, pensando que a cruz seria ser prelada, algo que, como eu disse, não podia me convencer de nenhuma maneira que fosse bom para minha alma, nem considerava razoável tal coisa.

Contei-o ao meu confessor, que me mandou partir de imediato, pois claro estava ser uma oportunidade de maior perfeição, acrescentando que, como fazia grande calor e eu só precisava estar lá na hora das eleições, ficasse ainda uns dias para que a viagem não me fizesse mal; mas o Senhor, que tinha ordenado outra coisa, prevaleceu, pois era grande o desassossego que eu sentia, sofrendo ainda por não poder ter oração, além de sentir que faltava ao que o Senhor mandara, estando ali, ao bel-prazer e regalada, sem querer me oferecer para o trabalho. Eu julgava que por certo minhas promessas a Deus não passavam de palavras, que, podendo estar onde havia mais perfeição, não o fazia; que, se fosse preciso morrer, morresse! Além disso, a minha alma estava aflita, e o Senhor me tirava todo o prazer da oração.

Enfim, eu me encontrava em tal estado, e com um tormento tão grande, que supliquei à senhora que me fizesse a gentileza de deixar-me partir, visto que também o meu confessor, ao me ver assim, me dissera que eu devia ir, pois Deus o movia tal como a mim.

9. A senhora sentiu tanto a minha partida que me causou mais um sofrimento. Muito lhe custara obter licença do Provincial, depois de muito importuná--lo, para estar comigo. Considerei um enorme favor que ela me permitisse ir, levando-se em conta o que sentia. Ela, sendo muito temente a Deus e ouvindo de mim que podia prestar-Lhe um grande favor, fazendo por Ele muitas outras coisas, ao me deixar ir, além de ter recebido de mim a esperança de voltar a estar comigo outra vez, não criou empecilhos, embora muito sofresse.

10. Eu já não temia ir, porque entendia que era para maior perfeição e serviço de Deus. Com o contentamento que obtenho de contentá-Lo, venci o pesar de deixar aquela senhora, que eu via tão contristada, bem como outras pessoas a quem eu muito devia, especialmente meu confessor, que era da Companhia de Jesus,10 e com o qual eu me dava muito bem. Mas, quanto maiores as consolações que eu perdia pelo Senhor, tanto maior o prazer que tinha por perdê-las.

Eu não podia entender como era possível abrigar no peito sentimentos tão contrários: regozijar-me, consolar-me e alegrar-me com o que me deixava a alma pesarosa. É que, ali, eu estava consolada e em sossego, dispondo de tempo para muitas horas de oração, e via que me punha num fogo, já que o Senhor me dissera11 que uma grande cruz me esperava — se bem que nunca imaginei que ela fosse tão grande como mais tarde comprovei. E, no entanto, parti alegre, pronta para entrar logo na batalha, por ser essa a vontade do Senhor, que me dava a força, incutindo-a na minha fraqueza.

11. Eu não podia, repito, compreender o que ocorria comigo. Surgiu-me esta comparação: se possuo uma jóia ou coisa que me dá grande alegria e venho a saber que a deseja uma pessoa de quem gosto mais do que de mim e a quem quero contentar mais do que a mim mesma, dá-me grande prazer ficar sem o que tenho para satisfazer essa pessoa. E, como essa alegria de ver o seu prazer excede o meu próprio contentamento, desaparece o pesar que eu devia sentir com a falta da jóia ou coisa que amo e com a perda da satisfação que me dava. O mesmo ocorria naquela situação: embora desejasse sentir ao ver que deixava pessoas que muito sentiam afastar-se de mim, algo que, em outra situação, muito me afligiria, por eu ser naturalmente muito grata, agora, mesmo que quisesse ter pesar, eu não o podia.

12. Ter partido de imediato teve tal importância para o negócio desta bendita casa que não sei como ele teria sido concluído se eu me tivesse detido um único dia. Ó grandeza de Deus! Muitas vezes me espanto quando me lembro dessas coisas e vejo quão particularmente desejava Sua Majestade ajudar-me para que se estabelecesse este cantinho de Deus — pois assim o considero —, esta casa em que Sua Majestade se compraz, como certa vez me disse, quando eu estava em oração, ao falar que esta casa12 era para Ele um paraíso de delícias. Com efeito, Sua Majestade parece ter escolhido as almas que trouxe para cá, almas em cuja companhia vivo com uma confusão muito grande; porque eu não saberia desejá-las tão adequadas para vida de tamanha austeridade, pobreza e oração.

Essas religiosas suportam tudo com muita alegria e contentamento, achando-se cada uma indigna de merecer o lugar que ocupa. Isso ocorre especialmente com algumas que o Senhor tirou de muita vaidade e prazeres do mundo, onde poderiam estar felizes nos termos das leis da terra; Deus lhes deu contentamentos tão maiores aqui que se verifica com clareza que elas receberam cem por um daquilo que deixaram,13 e essas religiosas não se fartam de dar graças a Sua Majestade.

Outras foram transformadas pelo Senhor de bem para melhor. Às de pouca idade, Ele concede forças e conhecimento para que não possam desejar outra coisa e para que entendam que, mesmo estando ainda no mundo, vivem com muito maior descanso por estarem longe de todas as coisas da vida; às de mais idade, e com pouca saúde, Ele sempre concede vigor para que suportem as dificuldades e as penitências como todas as outras.

13. Ó Senhor meu, como mostrais que sois poderoso! Não é preciso buscar razões para o que quereis, porque, acima de toda razão natural, fazeis todas as coisas tão possíveis que levais a entender sem nenhuma dúvida que basta amar-Vos de verdade e abandonar com sinceridade tudo por Vós para que, Senhor meu, torneis tudo fácil. Cabe dizer neste ponto que fingis trabalho em Vossa lei; porque não vejo, Senhor, nem sei como é estreito o caminho que leva a Vós.14 Vejo que é caminho real, e não vereda; caminho pelo qual vai com segurança quem de verdade entra nele. Muito longe estão os recifes e despenhadeiros onde cair, porque as ocasiões também o estão. Senda, e senda ruim, e caminho difícil, considero ser o que de um lado tem um vale muito profundo onde cair e do outro um despenhadeiro. A um mero descuido, os que vão por aí caem e se despedaçam.

14. Quem Vos ama de verdade, Bem meu, vai seguro por um caminho amplo e real, longe do despenhadeiro, estrada na qual, ao primeiro tropeço, Vós, Senhor, dais a mão; não se perde, por uma queda e nem mesmo por muitas, quem tiver amor a Vós, e não às coisas do mundo. Quem assim é percorre o vale da humildade. Não posso entender o que temem as pessoas diante do caminho da perfeição. O Senhor, por quem é, nos mostra quão falsa é a segurança dos que seguem os costumes do mundo sem se darem conta dos manifestos perigos aí existentes, e que a verdadeira segurança está em fazer esforços para avançar no caminho de Deus. Ponhamos os olhos Nele e não tenhamos medo de que esse Sol de Justiça conheça ocaso, pois Ele não nos deixará andar nas trevas para a perdição se não O tivermos deixado antes.

15. Não se teme andar entre leões — parecendo que cada um quer levar um pouco —, leões que são as honras, deleites e contentamentos semelhantes do mundo, enquanto, no caminho da perfeição, o demônio infunde temor até de insetos. Mil vezes me espanto e dez mil vezes gostaria de chorar copiosamente e clamar a todos, tornando pública minha grande cegueira e maldade, para ajudar as pessoas de alguma maneira a abrirem os olhos. Que Aquele que pode, pela Sua bondade, abraça-lhes os olhos e não permita que os meus voltem a ficar cegos. Amém.

Capítulo 36

Prossegue no assunto comentado e conta como se concluiu e fundou o mosteiro do glorioso São José, narrando ainda as grandes contradições e perseguições que houve depois de as religiosas tomarem hábito, bem como os sofrimentos e tentações por que ela passou, revelando que de tudo o Senhor a fez sair vitoriosa para Sua glória e louvor.

1. Tendo partido daquela cidade,1 eu vinha muito contente pelo caminho, determinada a passar por tudo o que o Senhor quisesse com toda a vontade. Na mesma noite em que cheguei aqui, chegou o nosso despacho para o mosteiro com o Breve de Roma, o que espantou a mim e a todos os que sabiam que o Senhor tinha apressado a minha vinda, entendendo a grande necessidade disso e as circunstâncias em que Deus me trouxera, porque encontrei aqui o Bispo, o santo Frei Pedro de Alcântara e outro senhor, grande servo de Deus,2 em cuja casa esse santo homem se hospedava, por ser pessoa em que os servos de Deus achavam proteção e acolhimento.

2. Os dois conseguiram que o Bispo3 admitisse o mosteiro sob sua jurisdição, o que não foi pouco, porque o mosteiro era pobre, mas o Bispo era tão amigo de pessoas que via determinadas a servir ao Senhor que logo se afeiçoou à casa, favorecendo-a. A aprovação desse santo velho e o seu grande em­penho com uns e com outros para que nos ajudassem foram determinantes. Se eu não tivesse vindo naquele momento, como já disse, não sei como a casa teria sido fundada; porque esse santo homem esteve pouco tempo aqui, creio que por menos de oito dias, tendo-os passado muito enfermo. Há bem pouco tempo o Senhor o levou.4 Ao que parece, Sua Majestade o preservara até a conclusão desse negócio, pois há muito tempo — não sei bem, mas creio que há mais de dois anos — ele estava muito doente.

3. Tudo foi feito sob grande segredo, pois só assim seria possível, tanta era a oposição ao projeto, como vimos depois. Quis o Senhor que um dos meus cunhados5 adoecesse enquanto sua esposa estava ausente daqui. Diante de tamanha necessidade, deram-me licença para cuidar dele; assim, nada trans­pareceu, embora algumas pessoas não deixassem de suspeitar, sem contu do acreditar de todo. Foi uma coisa admirável, pois a doença não durou mais do que o tempo necessário para o negócio. No momento em que ele precisava recuperar a saúde para que eu me desocupasse e a casa ficasse à disposição, o Senhor lha restituiu tão prontamente que o deixou assombrado.

4. Tive bastante trabalho para conseguir a aprovação de várias pessoas, com o enfermo e com os operários, para que a casa ficasse pronta logo e ti vesse forma de mosteiro, pois faltava muito. E a minha companheira6 não estava aqui, pois nos pareceu melhor que estivesse ausente para dissimular mais o que se passava. Eu, por muitos motivos, via que o sucesso dependia da rapidez. Um desses motivos era o meu temor de que me mandassem voltar ao meu mosteiro.7 Foram tantos os problemas que tive que fiquei a pensar se não seria essa a cruz,8 embora me parecesse que ainda era pouco para ser a grande cruz que, pelo que me dissera o Senhor, eu haveria de suportar.

5. Por fim, estando tudo pronto, foi o Senhor servido que, no dia de São Bartolomeu, algumas religiosas tomassem hábito.9 Pôs-se o Santíssimo Sacramento, e o novo mosteiro do glorioso pai nosso São José foi fundado, cumpridas todas as formalidades requeridas e obtidas as devidas autorizações, no ano de 1562. Eu estava presente à tomada de hábito ao lado de duas outras monjas do nosso convento, que por acaso estavam fora da clausura.10

Como a casa em que se faz o mosteiro era a residência do meu cunhado (que, como eu disse,11 a tinha comprado para melhor disfarçar o empreendimento), eu estava ali com licença, e não fazia nada sem seguir a opinião de pessoas doutas, para não faltar aos deveres da obediência; essas pessoas me diziam que continuasse a trabalhar em prol do mosteiro, embora de maneira secreta e cautelosa para que os meus prelados não soubessem. Se não fizesse assim, a mínima imperfeição que me dissessem haver me faria deixar mil mos teiros, e mais ainda um.

O certo é que, embora eu desejasse o mosteiro para afastar-me mais de tudo e cumprir a minha profissão e chamamento com maior perfeição e re colhimento, meus desejos eram acompanhados por um desprendimento que me faria desistir de tudo, como o fiz da outra vez,12 caso percebesse que assim serviria melhor ao Senhor, e tudo com muita tranqüilidade e paz.

6. Para mim, foi como que antegozar a glória ver instalado o Santíssimo Sa cramento e recebidas quatro órfãs pobres — porque não se exigia dote para aceitar candidatas13 —, todas elas grandes servas de Deus (pois desde o início era nossa intenção aceitar pessoas que, com o seu exemplo, servissem de estímu lo à concretização do nosso intento de termos vida de grande perfeição e oração). Vi então realizada, de acordo com os meus desejos, uma obra que eu sabia ser para o serviço do Senhor e para a honra do hábito de sua gloriosa Mãe.

Deu-me também grande consolo ter feito o que Deus tanto me recomendara e ter dado a esta localidade mais uma igreja — até então inexistente —, dedicada ao meu glorioso pai São José; não que eu julgasse ter feito alguma coisa para isso, o que nunca me parecia nem parece (sempre entendo que era o Senhor quem o fazia, e aquilo que eu fazia tinha tantas imperfeições que eu devia antes me culpar do que merecer agradecimentos). Mas me alegrava muito ver que Sua Majestade me tomara por instrumento — embora eu fosse tão ruim — para obra tão grande. Assim, estive com tanto contentamento que estava quase fora de mim, absorta na oração.

7. Cerca de três ou quatro horas depois de tudo estar acabado, o demônio me moveu uma guerra espiritual que agora relato. Ele me sugeriu que o que eu fizera podia estar errado e talvez eu tivesse ido contra a obediência ao tê--lo realizado sem que o Provincial me ordenasse. Eu de fato achava que ele ficaria descontente vendo o convento sob a jurisdição do Ordinário, sem que lhe tivesse sido dado aviso prévio. Se bem que, por outro lado, eu também pensava que ele talvez não se importasse, visto que não tinha querido admitir a fundação e considerando que eu continuava sujeita a ele.

Veio-me também a dúvida: estariam contentes as religiosas que viviam em tanta clausura? Faltar-lhes-ia o que comer? Teria tudo sido um disparate? Por que eu me envolvera nisso se já tinha o meu mosteiro? Tudo o que o Senhor me ordenara e as muitas opiniões e contínuas orações que eu fazia há quase dois anos tinham fugido da minha memória como se não tivessem existido. Eu só me lembrava da minha própria opinião, e a fé e outras virtudes estavam em mim, então, suspensas, sem que eu tivesse força para fazer uso delas ou me defender de tantos golpes.

8. O demônio também me sugeria outras coisas: como eu podia me fechar em casa tão pequena e com tantas enfermidades, para sofrer tanta penitência, deixando uma casa tão grande e deleitosa onde sempre vivera contente e tinha muitas amigas, talvez não tendo aqui amigas que me agradassem tanto quanto as de lá? Teria eu me obrigado a muito, estando talvez desesperada, tendo caído num ardil preparado pelo demônio para me tirar a paz e o sossego, impedindo--me de ter oração e levando à perda da minha alma?

Essas e outras coisas o inimigo me apresentava ao mesmo tempo, não estando em minhas mãos pensar em outra coisa; ao lado disso, vinham-me aflição, obscuridade e trevas na alma, de uma maneira que não sei descrever. Ao me ver assim, pus-me diante do Santíssimo Sacramento, embora num estado em que não podia encomendar-me a Ele. Tinha a impressão de ter uma angústia semelhante à de quem agoniza. Não me atrevia a tratar disso com ninguém, ainda mais que nem tinha confessor designado.14

9. Valha-me Deus, que vida tão miserável! Não há contentamento seguro nem coisa que não mude. Há muito pouco tempo, eu não trocaria, a meu ver, a minha alegria por nenhuma outra da terra, e agora a mesma coisa que a causara me atormentava a tal ponto que eu não sabia o que fazer de mim. Quem dera considerássemos com cuidado as coisas da nossa vida, para ver pela experiência quão pouco se devem valorizar os contentamentos e descontentamentos dela.

O certo é que considero esta uma das mais duras provas por que passei na vida. Meu espírito parecia adivinhar os muitos padecimentos que me esperavam, embora nenhum pudesse ser tão grande quanto este, caso tivesse durado. O Senhor, no entanto, não permitiu que Sua pobre serva sofresse muito tempo; assim como o Seu socorro nunca me faltou nas tribulações, também me acudiu dessa vez, dando-me um pouco de luz para que eu visse ser isso coisa do demônio e para que pudesse entender a verdade e perceber que em tudo agia o demônio, desejoso de me aterrorizar com suas inverdades.

Desse modo, fui relembrando minhas grandes determinações de servir ao Senhor e os meus anseios de padecer por Ele; pensei que, se os queria cumprir, não devia procurar descanso, e que, se surgissem sofrimentos, estes eram merecidos e, se descontentamentos, que eu os tomasse como serviço a Deus, pois me serviriam de purgatório. Eu nada tinha a temer porque, se desejava padecimentos, estes bem me serviam, pois na maior contradição estava o maior lucro; e por que15 me haveria de faltar ânimo para servir a Quem eu tanto devia?

Com essas e outras considerações, e esforçando-me por me dominar, prometi diante do Santíssimo Sacramento fazer tudo o que pudesse para obter licença de ficar nesta casa,16 e, podendo fazê-lo em boa consciência, prometer clausura.

10. Tão logo fiz isso, o demônio fugiu num instante, deixando-me sossegada e contente, como desde então tenho estado. Tudo o que se observa nesta casa em termos de clausura, de penitência e de outras coisas é para mim deveras leve e suave; é tão grande a alegria que por vezes penso que não há coisa mais saborosa que eu pudesse escolher na terra. Não sei se se deve em parte a isso o fato de eu ter mais saúde do que nunca, ou se é o Senhor que quer — percebendo ser necessário e justo que eu faça o mesmo que todas — dar-me este consolo para que eu possa a tudo observar, se bem que com certo custo. Mas essa minha força causa espanto em todos os que conhecem as minhas enfermidades. Bendito seja Aquele que tudo dá e por cujo poder tudo é possível!17

11. Fiquei muito fatigada com essa batalha, mas rindo-me do demônio, pois vi com clareza ter sido obra sua. Creio que o Senhor o permitira, porque eu nunca soube nem por um momento o que era o descontentamento de ser monja18 em mais de vinte e oito anos, o que me permitiu compreender a grande graça que Ele me fizera naquilo, assim como tormento de que me livrara. Com aquilo, Ele também quisera que, se eu visse que alguma religiosa estivesse sofrendo o que eu padecera, não me espantasse, mas me apiedasse dela e a soubesse consolar.

Passado isso, eu queria, depois da refeição, descansar um pouco, porque a noite inteira quase não descansara nem tinha deixado, em algumas outras noites, de ter sofrimentos e cuidados, tendo passado todos os dias cheia de fadiga. Contudo, quando souberam no meu mosteiro e na cidade de todo o ocorrido, surgiu um grande alvoroço pelas causas a que já me referi,19 que não deixavam de ter fundamento. A prelada20 logo me ordenou que voltasse imediatamente. Diante dessa ordem, deixei minhas monjas muito pesarosas e logo parti. Bem vi que me esperavam não poucos sofrimentos; mas, como o que estava feito feito estava, pouco me incomodei.

Rezei, suplicando ao Senhor que me favorecesse, e pedindo a meu pai São José que me trouxesse de novo à sua casa, oferecendo a Deus o que ia sofrer e, muito satisfeita por me terem apresentado ocasião de por Ele padecer e poder servi-Lo, fui com a certeza de que me lançariam no cárcere.21 Isso, pensava eu, me traria muito contentamento, pois não precisaria ter de falar com ninguém e descansaria um pouco em solidão, algo de que bem necessitava, pois estava fatigada de falar com tanta gente.

12. Chegando lá, dei minhas explicações à prelada, e esta se aplacou um pouco. Chamaram o Provincial para julgar o meu caso. Tendo ele chegado, fui inquirida, tendo tido grande alegria por padecer um pouquinho pelo Senhor.22 Eu achava que nesse caso em nada ofendera Sua Majestade nem a Ordem, tendo procurado engrandecê-los com todas as minhas forças, morrendo de bom grado por isso, pois todo o meu desejo era que se cumprisse a Regra com toda a perfeição.

Lembrei-me do julgamento de Cristo, vendo que o meu nada era. Confessei minha culpa23 com grande ênfase, pois culpada me considerava quem não soubesse todas as razões do meu procedimento. Depois de me ter feito uma grande repreensão — embora não com o rigor que o delito merecia nem de acordo com o que muitos diziam ao Provincial —, eu não me quis desculpar, pois ia determinada a isso, pedindo antes que ele me perdoasse, me castigasse e não ficasse descontente comigo.

13. Em algumas coisas eu tinha certeza de que me condenavam sem culpa de minha parte, porque me diziam que eu tinha feito aquilo para me exaltar, para ser louvada pelo povo e coisas semelhantes. Em outras, porém, sabia que diziam a verdade, pois alegavam que eu era pior que outras e que, não tendo seguido perfeitamente a observância do meu mosteiro, como podia pensar em guardá-la em outro com mais rigor? Isso escandalizava o povo e era a introdução de novidades. Nada disso me perturbava ou causava pesar, embora eu revelasse tê-los, para que não pensassem que pouco se me dava aquilo que me era dito. Por fim, recebi ordem de, diante das monjas, justificar a minha ação, o que fui obrigada a fazer.

14. Como tinha paz interior e contava com a ajuda do Senhor, expliquei--me de uma maneira que nem o Provincial nem as pessoas ali presentes en con traram motivo para me condenar. Quando fiquei só com ele, fui mais clara, e ele ficou muito satisfeito, prometendo-me que, se o negócio fosse adiante, tão logo se restabelecesse a paz na cidade, me concederia licença para voltar ao novo mosteiro. E o Provincial tinha razão, pois a balbúrdia que envolvia to da a cidade era, como agora direi, enorme.

15. Dois ou três dias depois, reuniram-se alguns regedores com o corregedor e alguns membros do Cabido, resolvendo por unanimidade que de nenhuma maneira se devia tolerar o mosteiro, pois daí adviriam claros danos ao bem público, devendo-se retirar o Santíssimo Sacramento. Disseram que absolutamente não permitiriam a fundação. Reuniram todas as Ordens para dar um parecer, vindo de cada uma dois eruditos; uns se calavam e outros condenavam. Concluíram por fim que se desfizesse imediatamente a casa.

Só um Presentado da Ordem de São Domingos,24 embora contrário — não ao mosteiro, mas à total pobreza —, disse não ser a casa algo que se desfizesse sem mais nem menos, que se ponderasse bem, pois havia tempo para tudo. Afirmou que o caso era da alçada do Bispo, e outras coisas desse gênero, que foram muito proveitosas, pois era tamanha a fúria que foi um milagre não porem logo mãos à obra. É que, na verdade, o convento havia de ser mantido; o Senhor desejava a sua fundação, e pouco podiam todos contra a Sua vontade. Os que se opunham a nós apresentavam as suas razões, movidos por bom zelo e, sem ofenderem a Deus, faziam-me padecer e infligiam sofrimen tos a todas as pessoas que nos favoreciam. Estas eram poucas, e sofreram muita perseguição.

16. O alvoroço do povo era tanto que não se falava em outra coisa; todos se dedicavam a me condenar, procurando ora o Provincial, ora o meu mosteiro. Eu em nada me afligia com o que diziam contra mim; era como se não o dissessem. O meu temor era que desfizessem a fundação. Isso me deixava com imenso pesar, o mesmo ocorrendo ao ver que as pessoas que me auxiliavam perdiam o crédito e passavam por muitas provações. Quanto ao que diziam contra mim, creio poder afirmar que até me alegrava com isso. E se eu tivesse tido fé bastante, nenhuma alteração teria sentido. Mas qualquer carência numa virtude é suficiente para que todas as outras fiquem entorpecidas.

Assim, fiquei muito magoada nos dois dias em que se reuniram na cidade as juntas de que falei. Estando bem angustiada, disse-me o Senhor: Não sabes que sou poderoso? Que temes? E me assegurou que o convento não se desfaria. Isso me deixou muito consolada. O povo da cidade enviou ao Conselho Real uma informação escrita, vindo deste a ordem de que fosse feito um relato de todo o ocorrido.

17. Começou aqui um grande pleito; porque os representantes da cidade foram à Corte, e fomos obrigados a enviar representantes do mosteiro, mas não havia dinheiro nem eu sabia como agir. Pela Providência do Senhor, meu Padre Provincial nunca me ordenara que se deixasse de tratar do negócio; sendo muito amigo de toda virtude, embora não ajudasse, não queria se opor. Mas não me permitiu, enquanto não tivesse uma idéia clara dos acontecimentos, vir para cá. As servas de Deus estavam sós e faziam mais com suas orações do que eu nas negociações, embora tivesse de empregar bastante diligência.

Às vezes, parecia que tudo falhava, especialmente um dia antes da chegada do Provincial, pois a Priora me mandou não me envolver em nada, o que significava abandonar tudo. Recorri a Deus, dizendo-Lhe: “Senhor, essa casa não é minha; foi feita por Vós. Agora que já não há quem trate dos negócios, fazei-o Vossa Majestade”. Eu estava tão sossegada e sem pesar que parecia ter o mundo inteiro negociando por mim, razão por que considerei o sucesso certo.

18. Um grande servo de Deus, um sacerdote25 que sempre me ajudara, amigo de toda perfeição, foi à Corte tratar do negócio, tendo feito muitos esforços ali. E o santo fidalgo, que já mencionei, também fazia muito, favorecendo-nos de todas as maneiras. Ele teve muitos sofrimentos e perseguições, e, em tudo, eu sempre o tinha e tenho como um pai.

O Senhor infundia tanto fervor nos que nos ajudavam que eles consideravam a nossa causa como se fosse um assunto que lhes interessasse de perto, algo de que dependessem a sua vida e a sua honra — e isso só por acharem que se tratava de servir ao Senhor. Pareceu-me claro que Sua Majestade ajudava o Mestre de que falei,26 que também nos defendeu muito, tendo obtido do Bispo a nomeação como seu representante numa grande junta realizada para tratar do assunto, na qual esteve só contra todos. No final, ele os aplacou sugerindo-lhes certos meios que foram suficientes para os entreter, embora nenhum bastasse para que eles não voltassem a dar a vida, por assim dizer, pela destruição do mosteiro.

O servo de Deus a que me referi foi quem deu os hábitos às noviças e instalou o Santíssimo Sacramento, sendo por isso alvo de grande perseguição. Essa tormenta durou quase meio ano, e seria tomar muito tempo relatar aqui com minúcias as grandes provações que passamos.

19. Admirava-me o fato de o demônio lutar com tanto furor contra umas mulherzinhas, sendo estranho que os nossos opositores considerassem capazes de causar muitos danos à cidade só doze mulheres e a priora, que não devem ser mais, e de vida tão austera; o prejuízo ou erro, se houvesse, atingiria a elas mesmas. Mas dizer que o mosteiro poderia prejudicar a cidade me parecia um absurdo, o que não os impedia de, com boa consciência, encontrar inconvenientes para lhe fazerem oposição.

Por fim, disseram que, se o convento tivesse renda, tolerariam a fundação e permitiriam a sua continuidade. Eu estava tão cansada de ver, mais que o meu, o sofrimento de todos os que me apoiavam, que não me pareceu ruim admitir que houvesse renda até que tudo sossegasse, para mais tarde renunciar a ela. Outras vezes, sendo ruim e imperfeita, eu chegava a imaginar que talvez fosse essa a vontade do Senhor, pois, sem aceitar essa proposta, não poderíamos ir adiante, inclinando-me a fazer o acordo.

20. Estando em oração, na noite anterior ao dia em que se trataria de tudo, e estando o acordo27 prestes a ser firmado, disse-me o Senhor que não o aceitas se, porque, se começássemos a ter renda, não nos permitiriam mais tarde deixar de tê-la, ao lado de outras coisas. Na mesma noite, apareceu-me o santo Frei Pedro de Alcântara, que já era falecido e que, antes de morrer, me escrevera28 — ao saber da grande contradição e perseguição movidas contra nós — dizendo que se alegrava por ver a fundação provocar tanta oposição; para ele, isso era sinal de que no mosteiro muito se serviria ao Senhor, já que o demônio se empenhava tanto em nos combater. Disse também que de modo algum eu concordasse em ter renda, renovando na carta, por duas ou três vezes, os mesmos argumentos, prometendo-me que, se eu assim fizesse, tudo se realizaria de acordo com a minha vontade.

Eu já o tinha visto duas outras vezes depois de sua morte, testemunhando sua grande glória; por isso, a visão não me causou temor, e sim muito contentamento. Porque ele sempre aparecia com o corpo glorificado, cheio de júbilo, alegrando-me muito vê-lo. Lembro-me de que ele me disse na primeira vez em que o vi, entre outras coisas, que muito se deleitava, que feliz penitência fora a que tinha feito, pois grande recompensa havia alcançado.

21. Como já falei, creio eu, a respeito disso,29 direi apenas que nesta última ele mostrou rigor, dizendo-me apenas que de modo algum eu aceitasse a renda, perguntando-me por que eu não queria seguir o seu conselho. Em seguida, desapareceu. Fiquei atônita e, no dia seguinte, contei o ocorrido ao fidalgo,30a quem eu para tudo recorria por ser ele tão dedicado. Disse-lhe que não aceitasse de maneira alguma ter renda, mas que deixasse ir adiante o pleito. Ele, que quanto a isso tinha muito mais firmeza do que eu, alegrou-se muito, dizendo--me mais tarde que com muita má vontade estivera tratando do acordo.

22. Depois, outra pessoa,31 grande serva de Deus, movida por bom zelo, propôs, quando o negócio ia bem encaminhado, que se entregasse a questão aos eruditos. Isso me deixou muito desassossegada, porque alguns dos que me ajudavam concordaram. De todas as ciladas do demônio, foi essa a mais indigesta. Mas em tudo contei com a ajuda do Senhor. Narrando assim de maneira sumária, não é possível explicar bem o que ocorreu nos dois anos que separaram o começo desta casa da sua conclusão. A primeira e a última parte do segundo ano foram as épocas mais penosas.

23. Estando a cidade um pouco mais calma, o padre dominicano Presentado, que nos auxiliava, foi muito astucioso em nosso favor. Embora estivesse fora, o Senhor o fez retornar a tempo de nos beneficiar muito, parecendo que Sua Majestade só o fez voltar com esse objetivo, pois ele me disse depois que não tivera motivos para vir, tendo sabido por acaso o que ocorria. Ele permaneceu aqui o tempo necessário. Quando se foi, conseguiu do nosso Provincial licença para que eu viesse a esta casa, ao lado de algumas religiosas — parecendo quase impossível ter sido conseguida tão depressa a permissão —, a fim de iniciar a reza do Ofício divino e ensinar às que lá estavam. O dia em que chegamos foi um enorme consolo para mim.

24. Quando fazia oração na igreja antes de entrar no mosteiro e estando quase em arroubo, vi Cristo que, com grande amor, me recebia e punha em mim uma coroa, agradecendo-me pelo que eu fizera pela Sua Mãe.

De outra vez, quando estavam todas no coro em oração depois das Completas, vi Nossa Senhora cercada de glória com um manto branco, debaixo do qual parecia amparar todas nós. Percebi o elevado grau de glória que o Senhor daria às religiosas desta casa.

25. Quando se começou a rezar o Ofício, o povo começou a ter grande devoção com esta casa. Recebemos mais noviças, e o Senhor começou a mover os que mais nos tinham perseguido para que muito nos favorecessem e dessem esmolas. Assim, foram aprovando o que tanto haviam reprovado e, aos poucos, desistiram do pleito, dizendo-se convencidos de ser a casa obra de Deus, já que, com tanta oposição, Sua Majestade desejara que fosse adiante.

No momento, ninguém julga que não foi acertado estabelecer o convento, estando todos muito solícitos em tudo nos fornecer, sem esmolar nem pedir a ninguém, pois o Senhor os desperta para que venham em nosso auxílio. Assim, vivemos sem que nos falte o necessário, e espero no Senhor que sempre possa ser dessa maneira. Como são poucas as religiosas, estou segura de que, se fizerem o que devem, como Sua Majestade hoje lhes dá a graça para fazer, Ele não lhes faltará, nem elas terão necessidade de se tornar um peso nem de importunar ninguém. Deus vai velar por elas como tem feito até agora.

26. É para mim um grande consolo estar aqui com almas tão desapegadas. Sua preocupação é encontrar meios de avançar no serviço de Deus. A solidão é o seu consolo, e elas não pensam em ver ninguém a não ser para mais se inflamarem no amor do seu Esposo; até o contato com os parentes lhes é penoso. Por isso, não vem a esta casa quem não está voltado para o serviço de Deus, pois nela não encontra consolo nem contenta as religiosas. As monjas só sabem falar de Deus, razão por que só as entende e é entendido quem fala a mesma linguagem. Guardamos a Regra de Nossa Senhora do Carmo, sem mitigação, tal como a redigiu Frei Hugo, Cardeal de Santa Sabina, em 1248, no quinto ano do Pontificado do Papa Inocêncio IV.32

27. Parece-me serão bem empregados todos os problemas que enfrentamos. Agora, ainda que haja algum rigor, porque nunca se come carne a não ser em caso de necessidade, praticando-se o jejum de oito meses e outras coisas pre sentes na Regra primitiva, as irmãs tudo acham pouco, dedicando--se a outras austeridades que julgamos necessárias para cumprir a Regra com mais per feição. E espero no Senhor que vá muito adiante o que começamos, como Sua Majestade me prometeu.

28. A outra casa que a beata de que falei procurava fundar33 também re cebeu o favor do Senhor, estando estabelecida em Alcalá. Também não lhe faltou muita oposição nem ela deixou de passar por grandes provações. Sei que se observa nela todo o rigor dessa primeira Regra nossa. Queira o Senhor que tudo seja para a Sua glória e louvor, e para a honra da gloriosa Virgem Maria, cujo hábito trazemos, amém.

29. Creio que vossa mercê34 ficará enfadado com o longo relato que fiz deste mosteiro. E olhe que ele é muito sucinto diante dos muitos padecimentos envolvidos em sua fundação e das muitas maravilhas que o Senhor tem operado, havendo de tudo isso muitas testemunhas que podem afirmá-lo sob juramento. Assim, rogo a vossa mercê, pelo amor de Deus, que, se re solver lançar fora o que está escrito agora, ao menos guarde a parte referente ao mosteiro e, depois da minha morte, entregue-a às irmãs que aqui es­tiverem, pois isso muito animará as monjas vindouras a servir a Deus e a pro curar que a perfeição incial não só não decaia como avance, ao verem o muito que Sua Majestade se empenhou em estabelecer a casa por meio de uma criatura tão ruim e baixa como eu.

E, como o Senhor quis favorecer tão particularmente esta fundação, creio que fará mal e será muito castigada por Deus aquela que começar a relaxar na perfeição por Ele estabelecida aqui desde o início, favorecendo-nos para que o façamos com tanta suavidade. Pois se vê muito bem que é tolerável e que é possível observar as práticas com tranqüilidade. A casa proporciona grande facilidade para que vivam em paz as que quiserem fruir a sós de Cristo, seu Esposo. E isso é o que elas sempre devem querer: viver a sós apenas com Ele. E que não sejam mais de treze. Pelas muitas opiniões que ouço, é isso que convém; sei por experiência que, para se viver com o espírito com que aqui se vive, só de esmolas e sem ter de pedir, não podem ser em maior número.

Nesse aspecto, creiam sempre mais em quem, com grandes sofrimentos e à custa da oração de muitas pessoas, procurou o que seria melhor. O grande contentamento e alegria e a pouca dificuldade que vemos terem todas — nestes anos e desde que estamos nesta casa —, e com muito mais saúde do que costumavam ter, mostram ser isso o mais conveniente. Quem considerar áspero o nosso modo de vida deve culpar a sua falta de espírito, e não o que se observa aqui (porque pessoas delicadas e não saudáveis, tendo o espírito, podem suportá-lo com muita suavidade), devendo ir para outro convento, onde se salvará de acordo com o espírito que o anima.

Capítulo 37

Trata dos efeitos que nela ficavam quando o Senhor lhe concedia alguma graça. Junta a isso uma boa doutrina. Diz que devemos estimar e lutar pela aquisição de mais algum grau de glória e que, pelos bens perpétuos, não nos detenhamos ante dificuldade alguma.

1. Custa-me ter de falar de outras graças que o Senhor me tem dado, além daquelas a que já me referi; e mesmo estas últimas são demasiadas para que se possa crer que Ele as concedeu a pessoa tão ruim. Mas, obedecendo ao Senhor que o ordenou e a vossas mercês,1 direi algumas coisas para a glória de Deus. Permita Sua Majestade que alguma alma se beneficie ao ver que, se a alguém tão miserável o Senhor quis favorecer dessa maneira, quanto mais Ele não fará a quem O servir de verdade, animando-se todos a contentar Sua Majestade, que já nesta vida dá tais provas de amor.

2. Em primeiro lugar, deve-se entender que, nesses favores que Deus faz à alma, há mais e menos glória; porque, em algumas visões, a glória, o prazer e a consolação excedem tanto os que o Senhor dá em outras que me espanto com tanta diferença entre deleites ainda nesta vida. Pois acontece de diferirem tanto os gostos e regalos que Deus dá numa visão ou num arroubo que parece não ser possível haver aqui na terra mais a desejar; assim, a alma não o deseja, nem pediria maior contentamento. É verdade que, depois que o Senhor me fez compreender quão grande é a diferença existente no céu entre o que gozam uns e o que gozam outros, bem vejo que também aqui Ele, quando quer, não põe limites nos seus dons.

Assim, eu não queria que houvesse limites no meu serviço a Sua Majestade, desejando empenhar nisso toda a minha vida, todas as minhas forças e a minha saúde, para não perder, por minha culpa, nem um pouco de maior felicidade. Dessa maneira, digo: se me perguntassem se quero ficar na terra até o fim do mundo com todos os sofrimentos nela existentes e depois me elevar um pouco mais na glória, ou se prefiro, sem nenhum padecimento, ir já gozar uma glória um pouco mais baixa, eu com boa vontade tudo padeceria para fruir um pouco mais de compreensão da grandeza de Deus, pois percebo que quem mais O entende mais O ama e mais O louva.

3. Não digo que não me satisfaria nem me consideraria venturosa por estar no céu, ainda que fosse no último lugar, porque, diante do que me fora pre parado no inferno, o Senhor já me faria nisso grande misericórdia, e queira Sua Majestade que eu vá para o Seu reino e que Ele esqueça meus grandes pecados! Digo sim que, embora muito me custasse, eu não queria, se pudesse e se o Senhor me desse o favor de muito trabalhar, perder nada por minha culpa. Pobre de mim que, com tantas culpas, tinha perdido tudo!

4. Deve-se observar também que, a cada graça que o Senhor me concedia, de visão ou revelação, a minha alma obtinha algum grande benefício que, em algumas visões, era imenso. Quando vi Cristo, imprimiu-se em mim Sua grandíssima formosura, que ainda hoje está presente; e, para isso, bastava uma única vez, quando são tantas as vezes em que o Senhor me concede esse favor! Muito lucrei com isso: eu tinha uma enorme falta que muitos danos me causou; quando começava a ver que uma pessoa gostava de mim e tinha afinidade com ela, eu passava a ter tanta afeição que ocupava grande parte do tempo pensando nela. Eu não fazia com a intenção de ofender a Deus, mas gostava de vê-la e de pensar nela, bem como nas suas boas qualidades. Isso era uma coisa tão prejudicial que a minha alma muito perdia com ela.

Depois de contemplar a grande beleza do Senhor, nunca mais vi alguém que, comparado a Ele, me parecesse formoso ou me ocupasse o espírito. Basta--me voltar um pouco os olhos para a imagem que guardo na alma para adquirir uma liberdade que, desde então, me faz ter asco de tudo o que vejo; porque nada faz par com as excelências e graças que vi no Senhor. Não há saber nem prazer que eu considere dignos de estima diante do ouvir uma única palavra dita por aqueles lábios divinos — e com que freqüência as tenho ouvido! Considero impossível — desde que o Senhor, pelos meus pecados, não permita que essa memória se apague — que alguém possa me ocupar o pensamento; basta-me lembrar um pouco deste Senhor para disso ficar livre.

5. Aconteceu-me demonstrar amizade por algum confessor; porque, como os considero verdadeiros representantes de Deus, eu me sentia segura. Além disso, creio que é a eles que mais dedico amizade, pois sempre estimo muito os que me dirigem a alma. Eles, sendo tementes a Deus e servos Seus, receavam que eu me apegasse em demasia a eles, embora santamente, e mostravam desagrado. Isso ocorreu depois de eu passar a estar sujeita a obedecer-lhes, porque antes não tinha tanto afeto por eles. Eu ria comigo mesma ao ver como eles se enganavam, se bem que nem sempre lhes dizia com clareza o ponto até o qual eu me sentia e estava desprendida de tudo. Mas os tranqüilizava, e eles, depois de um maior contato comigo, viam quantas graças eu devia ao Senhor, deixando de lado essas suspeitas, que aliás só se manifestavam no princípio.

Vendo o Senhor e falando com Ele com tanta freqüência, vi brotar em mim um amor muito maior por Ele e uma enorme confiança. Eu percebia que, embora fosse Deus, era Homem, alguém que não se espanta com as fraquezas dos homens, que compreende a nossa vil natureza, sujeita a tantas quedas por causa do primeiro pecado, que Ele viera reparar. Mesmo sendo Ele Senhor, posso tratá-Lo como um amigo, pois Ele não é como os que temos na terra por senhores, que põem todo o seu poderio em manifestações exteriores: marcam horas para que as pessoas lhes falem e determinam quem lhes pode falar. Se quem tem com eles algum negócio é um pobrezinho, mais rodeios, favores e sofrimentos são necessários para que deles se aproximem.

E se se quiser falar com o Rei? Nesse caso, é proibida a entrada de quem é pobre e sem brasões, não havendo alternativa, senão recorrer aos mais íntimos, que por certo não são pessoas que estão acima deste mundo, pois estas falam verdades, não devem nem temem, não são feitas para o palácio. Neste, isso não tem uso, devendo-se calar o que parecer mau, e ninguém sequer se atreve a pensar que algo é mau para não ser desfavorecido.

6. Ó Rei da glória e Senhor de todos os reis, Vosso reino não é uma ar mação de pauzinhos, pois não tem fim! Não se precisa de terceiros para chegar a Vós! Basta perceber Vossa pessoa para logo saber que sois o único a merecer ser chama do de Senhor, pela majestade que mostrais. Não são precisos acompanhantes nem guardas para que se saiba que sois Rei. Aqui na terra, estando só, um rei não é reconhecido como tal, necessitando de todo um aparato exterior para que isso aconteça, pois do contrário ninguém o teria por nada. Isso acontece porque não vem dele a aparência de poderoso, pois a sua autoridade vem de outros.

Ó Senhor meu! Ó Rei meu! Quem poderia descrever agora Vossa Majestade! Não se pode deixar de ver que sois Imperador, por serdes Vós quem sois. Ver Vossa majestade causa assombro; e mais assombra, Senhor meu, ver ao lado dela Vossa humildade e o amor que demonstrais por alguém como eu. Tão logo perdemos o primeiro espanto e temor de ver a Vossa Majestade, de tudo podemos falar Convosco como quisermos, embora nos fique um temor ainda maior de não mais Vos ofender. Isso, porém, não vem do medo do castigo, Senhor meu, pois este nada importa diante do mal que é Vos perder!

7. Esses são os benefícios dessa visão, sem falar de outros grandes efeitos que ela deixa na alma. Quando esta está iluminada, logo sabe se recebe uma graça de Deus pelos benefícios que dela advêm; porque, como eu já disse,2 às vezes o Senhor quer que fiquemos em trevas, sem ver a luz, não sendo pois de admirar que quem, como eu, se vê tão sem virtudes revele temor. Há pouco tempo, aconteceu-me passar oito dias com a impressão de não haver em mim, nem poder haver, conhecimento da minha dívida para com Deus nem recordação das Suas graças.

Fiquei com a alma tão insensível e absorta não sei em quê, nem como — não com maus pensamentos, mas incapaz de voltar-se para os bons —, que ria de mim mesma e me alegrava ao ver a baixeza de uma alma quando Deus não age continuamente nela. A alma, é verdade, percebe que não está sem Ele, pois o que passa não equivale aos grandes sofrimentos que tenho algumas vezes, como já falei.3 Mas, embora lance lenha e faça o pouco que pode, ela não consegue atear o fogo do amor de Deus. Pela grande misericórdia divina, ainda há alguma fumaça para que a alma entenda não estar a chama de todo apagada. Contudo, só o Senhor pode voltar a acendê-la.

Nesse caso, ainda que a alma se mate de soprar e de arrumar a lenha, parece que tudo abafa o fogo ainda mais. Acredito que o melhor é conformar--se de vez com o fato de nada poder por si só e dedicar-se a outras coisas meritórias, como já aconselhei.4 Talvez o Senhor lhe esteja tirando a oração para que ela se ocupe dessas coisas e venha a saber, por experiência, quão pouco é capaz de fazer.

8. O certo é que hoje me consolei com o Senhor, tendo tido o atrevimento de me queixar de Sua Majestade, dizendo-Lhe: “Como, Deus meu, não é suficiente que me mantenhais nesta vida miserável e que eu, por amor a Vós, passe por isso e deseje viver onde tudo são empecilhos para fruir de Vós, tendo de comer, dormir, tratar de negócios e falar com as pessoas? Bem sabeis, Senhor meu, que isso me causa imenso tormento, que padeço por Vos amar; e, no entanto, nos poucos momentos que me restam para me regozijar Convosco, Vós vos escondeis de mim. Como conciliar isso com a Vossa misericórdia? Como pode suportá-lo o amor que me tendes? Creio, Senhor, que se eu pudesse esconder-me de Vós como Vos escondeis de mim, não o consentiríeis, dado o amor que eu penso e creio que tendes por mim. Vós, porém, estais comigo e sempre me vedes… Isso não pode, pois, ser assim, Senhor meu! Eu Vos suplico que reconheçais ser isto magoar aquela que tanto Vos ama.”

9. Aconteceu-me dizer essas e outras coisas, sempre me recordando quão suave era o lugar que estava preparado para mim no inferno diante do que mereço. Mas, por vezes, o amor tanto me desatina que nem sei quem sou e, em sã consciência, faço essas queixas — e o Senhor tudo suporta. Louvado seja tão bom Rei! Que seria de nós se dirigíssemos aos reis da terra semelhantes atrevimentos? Quanto ao rei, não me espanta que não ousemos falar-lhe, pois lhe devemos reverência, bem como aos senhores principescos. Mas o mundo está de tal maneira que não basta uma vida para aprender as etiquetas, novidades e modos de polidez, se é que se quer usar uma parte dela para servir a Deus.

Diante do que se passa, eu me benzo de admiração. Para falar a verdade, quando me encerrei aqui, eu já não sabia lidar bem com o mundo. Leva-se a mal o mínimo descuido em não se tratar as pessoas de maneira muito superior ao que merecem. Tem-se isso por afronta tão grave que é necessário dar satisfações e justificar a intenção quando se age inadvertidamente. E ainda é preciso pedir a Deus que as pessoas as aceitem!

10. Repito que eu por certo não sabia viver, chegando a minha pobre alma a se cansar. De um lado, ela vê que lhe ordenam ter sempre o pensamento ocupado em Deus, devendo mantê-lo Nele para se livrar de muitos perigos. Por outro lado, percebe que não pode se descuidar das coisas do mundo, para não correr o risco de ofender os que têm sua honra posta em melindres. Isso me deixava com muita fadiga, e eu nunca acabava de dar satisfações, já que não podia, por mais que o tentasse, deixar de cometer muitas faltas nessas coisas que, no mundo, são consideradas muito importantes.

E nas Religiões — onde seria justo sermos desculpadas nesses casos —, será verdade que há dispensa quanto a isso? Não, pois dizem que os conventos devem ser lugar de boa educação, e inclusive do seu ensino. O certo é que não posso entender isso. Fico a imaginar se algum santo que disse que os mosteiros deviam ser escola dos que quisessem ser cortesãos do céu não teve as suas palavras deturpadas. Pois não sei como alguém que, por justiça, deve se ocupar continuamente em contentar a Deus e desdenhar o mundo possa se dedicar tanto a agradar aos que nele vivem em coisas tão sujeitas a mudança. Se ao menos fosse possível aprender de uma vez, muito bem; mas, até para o cabeçalho das cartas, já é preciso que haja, por assim dizer, cátedra onde se ensine o que se deve fazer. Porque, quanto a isso, ora se deixa papel de um lado, ora do outro, e, a quem se devia chamar magnífico, deve-se tratar agora por excelência.5

11. Não sei onde isso vai parar, porque ainda não tenho cinqüenta anos6 e, nos que vivi, presenciei tantas mudanças que já não sei viver. O que haverão, pois, de fazer os que nascem agora e viverem muito? Por certo me dão pena as pessoas espirituais que, por algum santo motivo, são obrigadas a viver no mundo, por ser isso uma terrível cruz. Se todas elas pudessem combinar fingir-se de ignorantes e fazer com que os outros as considerassem assim nessas ciências, de muito sofrimento se livrariam.

12. Vejo agora em que tolices me envolvi! Para discorrer sobre as grandezas de Deus, desandei a falar das baixezas do mundo. Pois, se o Senhor me fez o favor de me afastar dele, quero deixá-lo inteiramente; que lidem com ele aqueles que tanto se esforçam para sustentar essas ninharias. Queira Deus que na outra vida, que é imutável, não tenhamos de pagar por elas um alto preço. Amém!

Capítulo 38

Trata de alguns favores que o Senhor lhe fez ao revelar-lhe alguns segredos do céu. Narra outras grandes visões e revelações que Sua Majestade lhe concedeu. Relaciona os efeitos que isso produzia nela e o grande proveito daí resultante para sua alma.

1. Estando uma noite tão doente que queria ser dispensada da oração, peguei um rosário para me ocupar vocalmente, procurando não recolher o intelecto, embora estivesse retirada num oratório. Mas, quando o Senhor quer, pouco valem esses esforços. Mantive-me assim por algum tempo, vindo-me um arroubo de espírito de tamanho ímpeto que não tive como resistir--lhe. Tive a impressão de estar no céu, tendo visto ali, em primeiro lugar, meu pai e minha mãe. E vi coisas tão sublimes — num espaço de tempo breve como o de rezar uma Ave-Maria — que fiquei bem fora de mim, considerando aquilo uma graça grande demais para mim.

Não posso garantir que o tempo tenha sido tão breve; talvez fosse maior, mas a minha impressão era de ser muito pouco. Embora achasse que não, receei que fosse alguma ilusão. Não sabia o que fazer, pois tinha vergonha de levar isso ao meu confessor. Ao que parece, não por humildade, mas por julgar que ele zombaria de mim, dizendo: temos então um São Paulo ou São Jerônimo1 para ver coisas do céu! Justamente por terem esses gloriosos santos passado por coisas assim, era maior ainda o meu temor, e eu só fazia chorar muito, pois achava ser tudo um disparate. Por fim, se bem que muito o sentisse, procurei o confessor, pois jamais ousei omitir alguma coisa, por mais que sofresse em dizê-la, devido ao grande medo de ser enganada. Ele, vendo-me tão aflita, muito me consolou, dizendo-me boas palavras que me tiraram toda a angústia.

2. Com o passar do tempo, o Senhor foi me mostrando mais segredos, o que ainda faz algumas vezes. A alma não pode de maneira alguma ver mais do que lhe é representado, e eu só via, de cada vez, o que Deus queria me mostrar. Porém, via tanto que a menor parcela seria suficiente para deslumbrar e beneficiar muito a alma, levando-a a pouco estimar e considerar as coisas da vida. Eu gostaria de poder explicar um pouquinho do que percebia nessas revelações, mas, ao imaginar como fazê-lo, admito ser impossível.

Só a diferença entre a luz que vemos e a que nos é apresentada nas visões, sendo tudo luz, impede a comparação, pois mesmo o clarão do sol parece apa gado diante do fulgor que há ali. Em outras palavras, a imaginação, por mais sutil que seja, não consegue pintar nem esboçar aquela luz, nem coisa alguma das que o Senhor me apresentava, causando-me uma felicidade cujo caráter su blime está além da descrição. Nesses momentos, todos os sentidos se regozijam em grau tão alto e com tamanha suavidade que as minhas palavras jamais poderiam fazer-lhes jus, razão por que prefiro me calar.

3. Certa feita, fiquei nesse estado por mais de uma hora, tendo o Senhor me mostrado coisas admiráveis, dando-me a impressão de não Se afastar de mim. Ele me disse: Vê, filha, o que perdem os que são contra Mim; não dei xes de lhes dizer isto. Ó Senhor meu, quão pouco aproveitam minhas palavras aqueles que estão cegos diante das Vossas obras se Vossa Majestade não lhes dá luz! Algumas pessoas que a receberam de Vós muito se beneficiam por conhecer Vossas grandezas; mas, como as vêem, Senhor meu, manifestas em pessoa tão ruim e miserável, é um prodígio enorme que alguém tenha acreditado em mim.

Bendito seja o Vosso nome e bendita a Vossa misericórdia, pois ao menos eu constato em minha alma notória melhora. Ela deseja ficar sempre ali e não voltar a viver, visto ser grande o desprezo por tudo o que há na terra infundido em mim. Tudo me parecia lixo, e vi a que baixeza nos submetemos cuidando de coisas passageiras.

4. Quando fazia companhia àquela senhora de quem já falei,2 veio-me certa feita uma crise no coração (porque, como já disse, muito sofri dele, embora já não sofra). Ela, muito caridosa, mostrou-me jóias de ouro e pedras preciosas, pois as tinha de grande valor, especialmente uma de diamantes muito valiosa. Ela pensava que com isso me alegraria; quanto a mim, ria por dentro e tinha compaixão ao ver as coisas que os homens estimam e ao pensar no que o Senhor tem guardado para nós.

Pensei como me seria impossível, mesmo que eu quisesse me convencer, valorizar aquelas coisas, a menos que o Senhor me privasse da lembrança de outras. Para a alma, isso significa um poder tão grande que só quem o possui pode entendê-lo: trata-se do desapego verdadeiro e natural, que vem sem esforço nosso, pois é dado por Deus. Sua Majestade mostra as verdades eternas de tal maneira que a impressão que deixam em nós nos permite ver com clareza que por nós mesmos não poderíamos obter isso, do modo como o adquirimos, em tempo tão curto.

5. Também passei a ter pouco medo da morte, a qual sempre temi antes disso. Hoje, ela me parece coisa facílima para quem serve a Deus, porque, com ela, a alma se vê, num instante, livre deste cárcere e posta em descanso. Esses arroubos de espírito e a revelação de coisas tão sublimes, feitos por Deus, se assemelham, a meu ver, à saída da alma do corpo — ela se vê, num átimo, de posse de todo esse bem. Deixemos as dores do desenlace, pois pouca relevância devemos atribuir-lhes. Os que amarem a Deus de verdade e tiverem desprezado de fato as coisas desta vida devem morrer mais suavemente.

6. Creio que isso também me serviu muito para conhecer a nossa verdadeira pátria e perceber que aqui na terra estamos de passagem; é grande coisa ver o que há por lá e saber onde vamos viver. Porque, para quem vai viver numa terra, é de grande ajuda, para suportar as agruras do caminho, já saber ser ela um lugar onde se vai viver com sossego. Isso também torna fácil considerar as coisas celestiais e fazer que sejam elas o objeto das nossas conversas. Isso é muito valioso. O simples voltar os olhos para o céu põe a alma em recolhimento, porque, como o Senhor quis mostrar-lhe algo do que há ali, ela pensa naquilo que viu. Com muita freqüência, acompanham-me e me consolam os que sei que lá vivem; são esses que verdadeiramente me parecem vivos, pois os daqui levam a vida tão mortos que o mundo inteiro, por assim dizer, não me faz companhia, em especial quando me vêm aqueles ímpetos.

7. Tudo o que vejo com os olhos do corpo me parece sonho e farsa. O que já vi com os da alma é aquilo que ela deseja; e, como se vê longe dali, considera esta vida a morte. Enfim, é enorme a graça que o Senhor dá a quem permite tais visões; estas trazem um enorme proveito, ajudando muito a alma a carregar sua pesada cruz, já que aqui nada a satisfaz e tudo a aborrece. Se o Senhor não permitisse que nos esquecêssemos das coisas sublimes, embora voltemos a nos lembrar delas, não sei como seria possível viver.

Bendito e louvado seja Deus para sempre! Queira Sua Majestade, pelo sangue que o Seu Filho derramou por mim, já que desejou que eu visse alguma coisa de bens tão grandes e começasse a fruir deles de algum modo, que não me aconteça o mesmo que a Lúcifer, o qual, por sua própria culpa, tudo perdeu. Que Ele, por quem é, não o permita! Não é pouco o temor que tenho algumas vezes, embora seja muito comum que a misericórdia de Deus me dê a segurança de que, tendo Ele me tirado de tantos pecados, não vai querer negar-me a Sua mão para que eu me perca. Suplico a vossa mercê que sempre Lhe peça isso.

8. Mas as graças de que falei não são, a meu ver, tão grandes quanto a que vou relatar agora; digo-o por causa dos grandes efeitos benéficos que ela me causou, destacando-se a grande força que infundiu na alma. Na verdade, considerada por si mesma, cada uma das graças tem tal valor que não é possível compará-las entre si.

9. Certo dia, na véspera do Espírito Santo,3 fui depois da missa a um lugar bem afastado, onde rezava muitas vezes, e comecei a ler num Cartusiano4 sobre essa festa. Quando cheguei aos sinais que devem ter os principiantes, os experientes e os que alcançaram a perfeição para compreenderem se o Espírito Santo está com eles, e tendo lido sobre esses três estados, tive a impressão de que, pelo que podia perceber, Deus, pela Sua bondade, sempre estava comigo.

Comecei a louvá-Lo, lembrando-me de que, da outra vez em que tinha lido o referido trecho, eu estava bem destituída de tudo aquilo — pois isso eu via muito bem —, ao passo que agora sucedia o contrário. Reconheci ser muito grande o favor que o Senhor me fizera. Assim, passei a considerar o lugar que, pelos meus pecados, tinha merecido no inferno; e entoei muitos louvores a Deus, pois me parecia que a minha alma, de tão mudada, mal podia ser reconhecida.

Quando eu fazia essas considerações, veio-me um ímpeto imenso cuja causa não percebi; parecia que a alma queria sair do corpo, não cabendo mais em si nem se achando capaz de esperar tanto bem. Era um ímpeto tão excessivo que eu não o podia controlar, sendo, pois, distinto dos outros. Eu não entendia o que se passava na alma nem o que ela desejava para estar tão alterada. Reclinei-me, pois nem sentada conseguia ficar, já que me faltava toda a força natural.

10. Estando nisso, vejo sobre a minha cabeça uma pomba, bem diferente das de cá, porque não tinha penas e exibia asas de umas conchinhas que lançavam para todos os lados um grande resplendor. Ela era maior do que as pombas comuns, e pareceu-me ouvir o ruído que fazia com as asas. Isso durou talvez o espaço de uma Ave-Maria. A alma já estava de tal maneira que, perdendo-se de si,5 não mais viu a pomba. Na presença de tão bom Hóspede, o espírito se acalmou. A meu ver, a graça tinha sido tão maravilhosa que o desassossegara e abismara. Mas, assim que começou a fruí-la, ele perdeu o medo e, com a felicidade, aquietou-se, ficando em êxtase.

11. Foi grandíssima a glória desse arroubo. Passei o resto da Páscoa tão abobada e estonteada que não sabia o que fazer, nem como cabia em mim tão grande favor e graça. Com o grande gozo interior, eu, por assim dizer, não ouvia nem via. A partir daquele dia, percebi ter tido um grande aproveitamento, tendo aumentado muito o amor de Deus e ficado muito mais fortalecidas as virtudes. Bendito e louvado seja Ele para sempre. Amém.

12. Em outra ocasião, via a mesma pomba acima da cabeça de um padre da Ordem de São Domingos.6Desta feita, tive a impressão de que os raios e resplendores das asas se estendiam muito mais. Tive a revelação de que ele atrairia muitas almas para Deus.

13. De outra vez, vi Nossa Senhora pondo um manto muito branco sobre o Presentado dessa mesma Ordem,7 de quem tenho falado algumas vezes. Disse-me Ela que, pelo serviço que ele Lhe tinha prestado ao ajudar a fundar esta casa, lhe dava aquele manto como sinal de que doravante manteria a sua alma limpa e não a deixaria cair em pecado mortal. Tenho para mim que isso de fato ocorreu; porque poucos anos depois ele morreu, e a vida que viveu teve tanta penitência e a morte, tanta santidade que, pelo que se pode saber, não há por que duvidar.

Um frade que tinha assistido à sua morte me contou que, antes de expirar, ele disse que tinha Santo Tomás a seu lado. Ele faleceu com grande gozo e vontade de sair deste desterro.8 Ele me tem aparecido algumas vezes, coberto de glória, e dito algumas coisas. Era tão dedicado à oração, quando de sua morte, que, embora tivesse desejado não fazê-la, devido à grande fraqueza em que estava, não o podia, pois tinha muitos arroubos. Pouco antes do evento, enviou-me uma carta perguntando que meios haveria de empregar, porque, assim que acabava de dizer missa, ficava muito tempo em êxtase sem poder evitá-lo. No fim, o Senhor lhe deu a recompensa pelo muito que O tinha servido por toda a vida.

14. Do reitor9 da Companhia de Jesus, a quem mencionei algumas vezes, tenho visto algumas coisas das grandes graças que o Senhor lhe dava, que não narro aqui para não me estender. Certa feita, ele passou por extrema tribulação, sendo muito perseguido e vendo-se deveras aflito. Um dia, quando eu ouvia missa, vi Cristo na cruz no momento da elevação da hóstia. Cristo me disse algumas palavras destinadas a ele, para consolá-lo e preveni--lo do que estava por vir, lembrando-lhe o que Ele tinha padecido em seu favor e advertindo-o de que se preparasse para sofrer. Isso muito o consolou e animou, tendo tudo ocorrido tal como o Senhor me disse.

15. Também tenho visto grandes coisas dos membros da Ordem desse padre, a Companhia de Jesus, e de toda a Ordem junta. Algumas vezes, eu os vi no céu, com bandeiras brancas nas mãos, tendo visto também outras coisas deles que causam muita admiração. Por isso, tenho enorme veneração por essa Ordem, tanto porque me relaciono muito com eles como por ver que a sua vida corresponde ao que o Senhor me tem falado sobre eles.

16. Uma noite, estando eu em oração, o Senhor começou a me dizer algumas palavras, fazendo-me recordar de quão má tinha sido a minha vida, o que me infundiu grande confusão e pesar. Porque essas palavras, embora não sejam ditas com rigor, provocam mágoa e pena a ponto de me desfazerem. Uma única palavra dessas nos permite conhecer a nós mesmos de maneira muito melhor do que o conseguiríamos em muitos dias de consideração da nossa miséria, pois cada um contém em si um cunho de verdade que não se pode contestar.

Ele me representou as afeições que eu tivera outrora com tanta vaidade, dizendo-me que eu deveria ter por grande graça a que me concedia ao querer e admitir que Lhe fosse dedicada uma amizade como a minha, antes tão mal empregada. Em outras ocasiões, fez-me recordar a época em que eu parecia ter por honra contrariar a Sua. Em outras, ainda, instou-me a me lembrar do que eu Lhe devia, porque, quando me concedia graças, maior era o golpe que Ele recebia. Quando cometo alguma falta, o que não é incomum, Sua Majestade me infunde tal luz para que eu a perceba que me deixa, por assim dizer, desfeita. Quando me acontecia ser repreendida pelo confessor e procurar me consolar na oração, nela encontrava a verdadeira repreensão.

17. Voltando ao que dizia:10 o Senhor começou a me trazer à lembrança minha vida ruim, e pensei, debulhada em lágrimas, que Ele, já que, na minha opinião, eu nada tinha feito, estava querendo me fazer algum favor. É que, com muita freqüência, recebo uma graça particular do Senhor depois de me aniquilar interiormente. Creio que o Senhor faz assim para que eu veja bem que estou muito longe de merecê-la.

Pouco depois, o meu espírito foi tomado por tal arrebatamento que senti estar ele quase todo fora do corpo, ou, ao menos, eu não percebia que ele estivesse unido ao corpo. Vi a Humanidade Sacratíssima com uma glória excessiva que eu jamais experimentara. Ele se manifestou, de modo admirável e claro, repousando no seio do Pai. Não sei dizer como foi, porque, sem ver, senti-me na presença daquela divindade. Foi tão forte o abalo que passei muitos dias, pelo que me lembro, sem poder voltar a mim, sempre com a impressão de trazer presente aquela majestade do Filho de Deus, mas de uma maneira diferente da primeira. Essa presença, por mais breve que tenha sido, fica tão impressa na imaginação que não se apaga por algum tempo, resultando daí um grande consolo e muito proveito.

18. Voltei a ter essa visão outras três vezes. Trata-se, a meu ver, da mais sublime visão que o Senhor me permite ter, trazendo consigo enormes benefícios. Ela parece purificar por inteiro a alma, afastando-nos dos nossos sentidos. É uma grande chama que parece abrasar e destruir todos os desejos da vida. Eu, graças a Deus, já não punha desejos em coisas vãs; nessas ocasiões, contudo, ficou ainda mais claro que tudo é vaidade e que de nada valem as grandezas da terra. É um grande ensinamento que leva os nossos desejos à verdade pura; deixa impressa uma reverência que não sei elucidar, mas que muito difere de tudo quanto se pode alcançar aqui. A alma fica muito abismada ao ver como se atreveu, e como outros podem se atrever, a ofender uma Majestade tão sublime.

19. Já falei dos efeitos das visões e de outras coisas, tendo afirmado também11 que há maior ou menor aproveitamento. O desta última visão é enorme. Depois disso, ao me aproximar para comungar, eu me lembrava da imensa Majestade que vira e me dava conta de que era Ele que estava no Santíssimo Sacramento, o que fazia os meus cabelos se arrepiarem e me dava a impressão de estar toda desfeita. Ainda mais que em muitas ocasiões o Senhor ainda permite que eu O veja na hóstia.

Ó Senhor meu! Se não encobrísseis Vossa grandeza, quem se atreveria a unir tantas vezes com uma tão grande Majestade uma coisa tão suja e miserável? Bendito sejais, Senhor! Louvem-Vos os anjos e todas as criaturas, pois assim arranjais as coisas de acordo com a nossa fraqueza, para que, fruindo de graças tão soberanas, não fiquemos espantados diante de Vosso grande poder a ponto de não nos atrevermos sequer a nos regozijar com elas, como pessoas fracas e miseráveis.

20. Poderia acontecer conosco o que se passou com um lavrador — e tenho certeza de ser isso verdade. Ele encontrou um tesouro, vendo-se, de repente, possuidor de riquezas que em muito superavam a sua avareza. Não sabendo como aproveitá-las, ficou com tamanha aflição e preocupação que aos poucos definhou e terminou por morrer. Se tivesse achado o tesouro não todo junto, mas em parcelas, ele teria ficado mais contente do que quando era pobre e não teria perdido a vida.

21. Ó riquezas dos pobres! Como sabeis admiravelmente sustentar as almas! E, sem que elas vejam tão grandes riquezas, pouco a pouco as ides mostrando! Assim, quando vejo, desde aquela visão, uma tão grande Majestade oculta em coisa tão pequena como uma hóstia, não posso deixar de me admirar com tão grande sabedoria. Nem imagino como ousaria me aproximar do Senhor se Ele, que me deu e ainda me dá muitas graças, não me infundisse força e coragem.

Sem Ele, eu também não poderia disfarçar a minha admiração nem me impedir de dizer em altos brados tão grandes prodígios. Pois que sente uma miserável como eu, cheia de abominações e que com tão pouco temor de Deus tem desperdiçado sua vida, ao ver aproximar-se de si este Senhor de tão imensa majestade quando Ele quer que minha alma O veja? Como pode tocar aquele corpo gloriosíssimo, cheio de pureza e carregado de piedade uma boca que tantas palavras proferiu contra Ele? O amor que aquele rosto tão formoso revela com tamanha ternura e afabilidade traz à alma muito mais mágoas e aflições por não tê-Lo servido do que temor da Majestade que nele vê. Mas que poderia eu ter sentido nas duas vezes em que vi o que vou contar?12

22. É certo, Senhor meu e glória minha, que tenho dito que, de alguma maneira, nessas grandes aflições que a minha alma sente tenho feito algo para Vos servir. Ai de mim, que já não sei o que digo, pois quase já não sou eu quem escreve isto! Estou muito perturbada e quase fora de mim, por ter trazido de volta à memória essas coisas. Caso esse sentimento viesse de mim, eu bem poderia, Senhor meu, afirmar ter feito algo por Vós. Como nada fiz, visto que nem um único bom pensamento pode existir se não o dais, eu sou a devedora, Senhor, e Vós, o ofendido.

23. Indo comungar, vi com os olhos da alma,13 com maior clareza do que com os do corpo, dois demônios deveras abomináveis. Tive a impressão de que, com os seus chifres, mantinham presa a garganta do pobre sacerdote. E, na hóstia que ia receber, vi meu Senhor, com a majestade que descrevi, posto naquelas mãos, que percebi com clareza serem transgressoras, compreendendo que aquela alma estava em pecado mortal. Que seria, Senhor meu, ver Vos sa formosura entre figuras tão abomináveis? Elas estavam como que ame drontadas e espantadas diante de Vós, e creio que de boa vontade teriam fugido se Vós lhes tivésseis permitido.

Isso me provocou tamanha perturbação que não sei como pude comungar, e fui tomada de grande temor, pensando que, se fosse visão de Deus, Este não me permitiria ver o mal que se instalara naquela alma. O Senhor me disse que rogasse por ele e que permitira semelhante coisa para que eu enten desse que força tinham as palavras da consagração e visse que, por pior que seja o sacerdote que as pronuncia, Deus está sempre ali; disse também que o fizera para que eu conhecesse Sua grande bondade, que se põe nas mãos do inimigo só para o meu bem e o de todos.

Vi com nitidez que os sacerdotes estão mais obrigados a ser bons do que os outros e que é uma coisa terrível receber o Santíssimo Sacramento indignamente. Dei-me conta também de que o demônio é senhor da alma que está em pecado mortal. Essa visão me trouxe inúmeros benefícios e fez-me perceber com profundidade o quanto eu devia a Deus. Bendito seja Ele para sempre!

24. Em outra ocasião, ocorreu um fato semelhante que me deixou com imenso terror. Eu estava num certo lugar onde morrera certa pessoa que vivera muito mal por muitos anos, segundo me disseram. Antes de morrer, contudo, passara dois anos enfermo e, ao que parece, se corrigira em algumas coisas. Morreu sem confissão, mas, mesmo assim, não me pareceu que fosse ser condenado. Enquanto o seu corpo era amortalhado, vi muitos demônios o agarrarem, parecendo divertir-se com ele, além de torturá-lo. Isso me encheu de grande pavor, pois eles o passavam uns aos outros com grandes garfos. Quando vi que ele seria enterrado com as mesmas honras e cerimônias concedidas a todos, fiquei pensando na bondade de Deus, que não quisera que aquela alma fosse difamada, deixando encoberto o fato de ela ser Sua inimiga.

25. Fiquei meio atordoada com isso. Durante o Ofício, não vi nenhum demônio; mais tarde, quando o corpo foi sepultado, era tão numerosa a legião demoníaca que o cercava que quase perdi os sentidos, sendo preciso muita determinação para tudo dissimular. Considerei o que fariam com aquela alma se assim dominavam o triste corpo. Quem dera o Senhor permitisse que todos os que estão em mau estado vissem, como eu, aquela coisa horripilante, pois creio que isso seria um grande estímulo para que vivessem bem. Tudo isso me faz ver ainda mais o que devo a Deus e aquilo de que Ele me livrou. Até falar disso com o meu confessor, fiquei muito receosa, pensando se não seria ilusão do demônio para difamar uma alma considerada tão cristã. Na verdade, embora não tenha sido ilusão, sempre tenho temor quando me recordo.

26. Já que comecei a falar de visões de pessoas mortas, quero contar algumas coisas que o Senhor me mostrou de algumas almas. Limitarei os exemplos para não me alongar e porque não vejo muito proveito em fazê-lo.

Disseram-me que morrera um ex-Provincial nosso, na época em outra Província, com quem eu tinha tido relações e a quem devia alguns favores.14 Era pessoa muito virtuosa. Ao saber de sua morte, fiquei muito perturbada, pois temi pela sua salvação, já que ele tinha sido prelado durante vinte anos, o que sempre me inspira temor, pois me parece muito perigoso o encargo de zelar por almas. Com extrema aflição, fui a um oratório. Ofereci em seu be nefício todo o bem que eu fizera em minha vida, que não era muito, di­zendo ao Senhor que suprisse com os seus méritos o que aquela alma precisava para sair do purgatório.

27. Quando eu estava pedindo isso ao Senhor da melhor maneira que podia, pareceu-me ver o prelado sair da terra, do meu lado direito, e subir ao céu com enorme alegria. Embora fosse bem velho, vi-o com uns trinta anos ou menos, tendo grande resplendor no rosto. Essa visão foi muito breve, mas me trouxe consolação tão extrema que nunca mais sofri pela sua morte, mesmo diante da aflição de muitas pessoas por ele, que era muito querido.

Era tamanho o consolo que invadia minha alma que eu em nenhum momento duvidei de ser boa a visão, isto é, eu tinha certeza de não se tratar de ilusão. (Quando isso aconteceu, não se tinham passado quinze dias de sua morte.) Fiz que o encomendassem a Deus, e também me dediquei a isso, mas não com o fervor com que o teria feito se não tivesse tido aquela visão; porque, se o Senhor me mostra alguma alma assim e depois desejo encomendá--la a Ele, tenho a impressão de dar esmola a um rico. Depois, porque ele morreu bem longe daqui, eu soube da morte que Deus lhe deu; foi de tamanha edificação que todos ficaram admirados com a sabedoria, as lágrimas e a humildade com que ele terminou seus dias.

28. Morrera na casa uma monja, grande serva de Deus,15 há mais ou menos um dia e meio. Durante o Ofício de Defuntos, rezando em sua intenção no coro, eu estava de pé para dizer um versículo com outra monja. Estando no meio, tive a impressão de ver a alma sair das profundezas da terra, no mesmo lugar da visão anterior, e ir para o céu. Essa visão não foi imaginária, como a do Provincial, mas das que não têm imagem, de que já falei,16 que deixam tão pouca dúvida quanto as imaginárias.

29. Morreu também no mesmo convento outra monja. Ela vivera enferma por dezoito ou vinte anos; era muito serva de Deus, jamais faltava ao coro e tinha muitas virtudes. Eu tinha certeza de que lhe sobrariam méritos e de que, tendo passado por tantas enfermidades, não entraria no purgatório. Quando rezava as horas canônicas, antes do seu enterro, passadas pouco mais de quatro horas da morte, percebi que também ela ia para o céu.

30. Estando num colégio da Companhia de Jesus, às voltas com as grandes dores da alma e do corpo que por vezes tenho, eu estava num estado que, segundo me parece, me impedia de ter um único bom pensamento.17 Tinha morrido naquela noite um irmão da casa.18 Quando o encomendava a Deus, como podia, e ouvindo missa em sua intenção rezada por um padre da Companhia, caí em profundo recolhimento e o vi subir ao céu, com muita glória, acompanhado do Senhor. Vi ser aquilo uma graça particular de Sua Majestade.

31. Um frade da nossa Ordem,19 muito bom religioso, estava com grave enfermidade. Durante a missa, entrei em recolhimento e vi que ele morrera e subia ao céu sem passar pelo purgatório. Mais tarde, eu soube que ele falecera na hora em que o vi. Eu me espantei por ele não ter passado pelo purgatório; percebi que, como tinha sido frade e correspondido à sua profissão, aproveitara as Bulas da Ordem para evitar o lugar de expiação.20 Não sei por que entendi assim; creio que foi porque o fato de ser religioso não se traduz por envergar o hábito, isto é, não basta usá-lo para usufruir do estado de maior perfeição que é ser frade.

32. Não vou mais falar dessas coisas, porque, como eu disse,21 não há razão para tal, muito embora sejam muitas as vezes que o Senhor me concede vê-las. Mas, em todas que vi, nenhuma alma deixou de entrar no purgatório, pelo que entendi, exceto a desse padre, a do santo Frei Pedro de Alcântara e a do padre dominicano de que falei.22 De algumas almas, o Senhor quis me mostrar os graus de glória que têm, revelando-me os lugares em que estão. É grande a diferença que há entre umas e outras.23

9 comentários:

  1. Capítulo 33.

    Para o Provincial a fundação seria impraticável. Com isso, o confessor de Teresa, Padre Baltazar, a ordenou não mais se envolver nela. Teresa muito sofreu com a revolta das monjas da Encarnação e de pessoas que passaram a julgar sua idéia uma maluquice. Portanto, deixou a obra de lado com muita facilidade, porque confiava na proteção do Senhor, acreditando sempre que a obra seria realizada. Padre Baltazar julgava que a nova casa não passava de um sonho e, numa carta, ordenava que Teresa desistisse do assunto. Por sentir-se culpada por tudo o que se passava, Teresa escolhe a pedagogia do silêncio: por cinco a seis meses, deixa de falar na fundação.
    Por tudo o que passou, Santa Teresa nos faz entender que sofrimentos, angústias, medos ou perseguições não nos devem deixar apavorados ou sem esperança, uma vez que estas provações só servem para aumentar em nós o amor a Deus.
    Teresa contava com um poderoso aliado: o dominicano, Frei Pedro Ibáñez., que tinha certeza que o Carmelo seria fundado e muito ajudou, junto com Da. Guiomar, nas negociações com Roma. E o novo confessor, Padre Gaspar de Salazar, mal falou com Teresa, se afeiçoou a ela e deixou-se conquistar por seus planos, autorizando-a a realizá-los, porém, em restrito silêncio.
    Muito envolvente, para nós, o exemplo de Teresa, que fazia os planos, dava ordens aos operários, resolvia todos os problemas...Mas tudo seria muito rústico e pobre, porém muito limpo! Apesar das dificuldades, Teresa não desanimava, pois estava determinada a chegar até ao fim. Entre um pólo e outro, o eixo foi a contínua presença de Deus. E Santa Teresa contava com a proteção de São José e Nossa Senhora, sempre presentes em sua vida. Também recebeu incentivos de Santa Clara. Tudo fazia para a maior glória de Sua Majestade, e com isto concluímos que nada nem ninguém pode barrar o que Deus quer de nós.

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  2. Capítulo 34.

    Teresa temia que ao saber da obra, o Provincial a proibisse de se ocupar dela, mas tem confiança porque sabe que tudo o que acontece é para a glória de Deus.
    Da. Luisa de la Cerda havia ficado viúva. Aconteceu que o Provincial, grande amigo de Da. Luisa viu com bons olhos que Teresa se afastasse de Ávila, pois isso talvez a fizesse esquecer a idéia de reformar o Carmelo. “Vai, - diz-lhe o Senhor-. No interesse do Mosteiro convêm que te ausentes até que chegue o Breve. Não temas nada. Eu te ajudarei lá”. Santa Teresa partiu para Toledo e, com sua habilidade, conquistou a confiança de D. Luisa.
    Ali, Teresa viu e sentiu como as pessoas são escravas de tantas coisas! – quanto maiores as posses, maiores os cuidados-. Suplicava sempre ao Senhor atraísse todas as pessoas para Si, porque é muito gratificante encontrar pessoas que muito amam a Deus e se dedicam inteiramente à oração. Cita como exemplo o Frei Padre Garcia de Toledo, por quem rogava ao Senhor que atraísse com intensidade para o Seu serviço.
    Santa Teresa, por mais vezes, nos esclarece sobre a necessidade da humildade e do desapego: tudo é possível graças ao Senhor. Ela mesma confessa: “durante todo o tempo em que estive naquela casa, foi o Senhor servido de que todos progredissem no serviço de Sua Majestade”.
    Cristo lhe apareceu em sua glória mostrando grande contentamento com o que ali se passava.

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  3. Capítulo 35

    Neste seu “drama teresiano” narra, inicialmente, uma passagem de destaque: seu encontro com a Irmã Maria de Jesus, de quem elogia a força e a coragem; e o empenho com que, durante quinze dias, examinaram o que subsistia das tradições, vestuário, modo de vida e textos das Constituições. Maria de Jesus, embora analfabeta, sabia a Regra de cor e Teresa a reconstituiu. Foi nesta ocasião que Teresa tomou conhecimento de que a Regra do Carmelo, antes de Mitigada, determinava clausura absoluta, rigor e penitência, devendo pautar-se na extrema pobreza. Também aprendeu com Maria de Jesus “as sutilezas da política e burocracia do Vaticano”. Vimos que quando se separaram, estavam convencidas de que nos mosteiros reformados as freiras deveriam viver do seu trabalho e de esmolas e não ter rendas.
    Outro foto importante: Teresa estava certa de que aqueles que a apoiavam considerariam uma loucura o abandono total nas mãos da Providência, do que resultaram “grandes discussões com teólogos”.
    Para alívio de Teresa, chegou a Toledo o árbitro para a questão: Frei Pedro de Alcântara que, sendo amante da pobreza, estabeleceu com Teresa as bases da Regra Reformada da Ordem do Carmelo e Teresa decidiu não consultar mais ninguém. O Senhor agiu também sobre o coração de Padre Ibáñez, que passou a dar-lhe apoio, no sentido de viver somente para o amor de Deus.
    Quanto às eleições no Mosteiro da Encarnação, Teresa delas se afastou e escreveu para suas amigas não votarem nela. Todavia, se sentiu obrigada a regressar porque “o descanso não fora feito para ela e o ‘Mestre-de-obras’ ordenou-lhe que partisse: -Já que desejas a cruz, preparam-te uma excelente-”. Despediu-se de Da. Luisa, que sentiu muito a sua partida. Chegou a Ávila e lá estabeleceu “o cantinho de Deus”.
    As almas que ali residiam foram e serão sempre o exemplo de vida para nós que buscamos amar e servir o Senhor na pobreza, no desapego, na austeridade e na oração e acreditamos que o Senhor concede forças e conhecimento aos jovens para se desapegarem das coisas do mundo e aos de mais idade, vigor para suportarem as adversidades, para amar a Deus de verdade. Toda vida se torna mais fácil porque sempre nos apoiaremos na mão do Senhor.
    Atentemos para a comparação que faz das honras, deleites e contentamentos com leões, que não nos podem atacar uma vez que já nos desprendemos destes fetiches mundanos: o lucro, a produção, o consumismo, o dinheiro, que são fontes de servidão e de injustiças.

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  4. Capítulo 36
    Vemos que Santa Teresa chegou a Ávila no momento mais oportuno para a Casa de São José: o Breve que autorizava a Fundação de um convento do Carmelo reformado, sob a jurisdição do bispo de Ávila, chegou no mesmo dia. Todavia faltava a autorização para se fundar o Carmelo sem renda alguma: o Prelado D. Álvaro Mendonça achava esse aspecto de vida evangélica “muito fora de moda”.
    Frei Pedro Alcântara veio assistir Teresa e como ficou doente, suplicou por carta ao Prelado “para fazer neste lugar um Mosteiro religiosíssimo e de inteira perfeição, de freiras da Primeira Regra e Ordem de Nossa Senhora do Carmelo” e também escrevia que o Espírito do Senhor habitava na Fundadora. E o Prelado, após conversar com a Reformadora, saiu dali convencido a favorecer no que pudesse o novo mosteiro, apesar de haver tido más informações dela – caluniosas, é claro-.Teresa o convenceu e cativou.
    A fundação foi preparada em grande segredo, mas tudo corria bem. Por fim, tudo pronto, foi entronizado o Santíssimo Sacramento e novo Mosteiro de São José foi fundado no dia de São Bartolomeu, 24 de agosto de 1562. Ali se enclausuraram as primeiras Descalças, que eram a fina flor de Castela. O Mestre Gaspar Daza celebra a Santa Missa sobre um altar limpíssimo: - essa é a sua única riqueza - e a assistem muitos/as amigos/as, que sempre apoiaram Teresa. .
    Santa Teresa lutou contra preocupações com suas filhas, temendo que viessem a passar necessidades e, envolvida numa batalha espiritual, sentiu medo. As freiras da Encarnação queriam-na de volta e a ameaçavam com a prisão, onde passaria a pão e água... Jesus, porém, inclinou-se para ela e chamou-a à razão, como se faz com uma criança; inundou-a de luz e a consolou. “Fiquei bem cansada de tal contenda, mas rindo-me do demônio, porque vi claramente que era ele”, dizia Teresa.
    Obedecendo à prelada da Encarnação, Da. Maria Cimbrón, Teresa retornou ao mosteiro. O Senhor, porém, queria a Fundação e ninguém teria poderes contra a Sua vontade: “Entreguei a causa nas mãos do Senhor. E Ele a ganhou por mim”. Não bastaram os argumentos da Corte, do Provincial, da Prelada, das autoridades e do povo nem as ameaças de arrombamento das portas do novo Convento. Aconteceram muitas reuniões e debates, onde o Padre Domingos Báñez, da Ordem de São Domingos, defendeu Teresa. Enquanto se debatia o caso e o tempo ia passando, o povo foi se acalmando e por fim, esqueceu. Santa Teresa voltou para o seu Mosteiro de São José e antes de entrar no mosteiro viu Cristo, que lhe agradecia pelo que fizera por Sua Mãe e também, depois no coro, sentia que Nossa Senhora cobria a todas com seu manto branco.
    Santa Teresa deixa-nos, neste capítulo, exemplos de amor e confiança ilimitados em Deus, de coragem e perseverança nas lutas, de humildade e amor à pobreza e do desapego de todas as coisas materiais: “SÓ DEUS BASTA”...

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  5. Capítulo 33:-
    Neste capítulo, sobressai a virtude da obediência em Santa Teresa. Ocupada com a fundação do Mosteiro de São José, ela submete todos os acontecimentos a Deus e aos seus dirigentes. Diante de uma postura negativa por parte do Padre Provincial, quanto à questão do Mosteiro ter ou não renda, ela sujeita-se à obediência e permanece tranquila.

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  6. Capítulo 34:-
    Chamam-me a atenção, neste capítulo, os parágrafos 8 e 11.
    No nº 8, a Santa Madre narra, uma vez mais, o seu "método de oração": "Fui para onde costumava ter oração sozinha e comecei a tratar com o Senhor, estando em profundo recolhimento, de uma maneira simples com que muitas vezes, sem saber o que digo, me relaciono com Ele; nesses momentos, é o amor que fala, e a alma fica tão fora de si que não vê a diferença que há entre ela e Deus". Teresa nos ensina como podemos nos relacionar com Deus, "estando", "ficando" com o Senhor. A oração, quanto maior o recolhimento, é mais simples, um simples "permanecer" com o Senhor.
    No nº 11, pela intercessão da Santa Madre, o Pe. Frei Garcia de Toledo "decidiu verdadeiramente dedicar-se à oração". Teresa o conquistou para o caminho da oração. E ela conta que "ele adquiriu em pouco tempo muita experiência em coisas do espírito, um dom que Deus dá quando quer e como quer, pouco importando a antiguidade ou os serviços prestados". Há aqui, a meu ver, dois ensinamentos importantes: primeiro, a preciosidade que é intercedermos uns pelos outros, e o segundo é que o agir de Deus é imprevisível, como consta na parábola dos trabalhadores da última hora.

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  7. Capítulo 35:-
    Diante das dificuldades quanto à fundação do Mosteiro de São José, Teresa mantém-se tranquila, consultando muitas pessoas sobre como agir. Ela confia em Deus e espera que Ele a conduza.
    Ao término do Capítulo, Teresa faz verdadeira declaração de amor e confiança no Senhor: "Quem Vos ama de verdade, Bem meu, vai seguro por um caminho amplo e real, longe do despenhadeiro, estrada na qual, ao primeiro tropeço, Vós, Senhor, dais a mão". Tudo ela submete ao Senhor.

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  8. Capítulo 36:-
    Finalmente, o Mosteiro de São José foi fundado. Teresa sente imensa alegria, a qual depois transformou-se em combate espiritual, dada a intervenção do demônio, que a levou a muitos questionamentos. Mas Teresa sai vitoriosa deste combate, encomendando-se ao Santíssimo Sacramento.
    Mas, a luta não parou por aí. Houve muitas perseguições e desentendimentos, até que o Mosteiro fosse aceito, sob a condição de não ter renda. Esta oposição, no entanto, foi quebrada, sendo que aqueles que antes eram contrários à fundação do Mosteiro, acabaram por aceitá-lo como sendo obra de Deus. E Teresa não disfarça sua alegria em ver as monjas do Mosteiro de São José dedicadas ao Senhor, observando a Regra e sem renda.

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  9. Capítulo 37:-
    "Vendo o Senhor e falando com Ele com tanta frequência, vi brotar em mim um amor muito maior por Ele e uma enorme confiança. Eu percebia que, embora fosse Deus, era Homem, alguém que não se espanta com as fraquezas do homem, que compreende nossa vil natureza, sujeita a tantas quedas por causa do primeiro pecado, que Ele viera reparar".
    Penso que a vida de oração de Santa Teresa, conquanto tenha ela sido beneficiada com graças extraordinárias, fez com que ela conhecesse muito intimamente ao Senhor. Realmente, é isto que buscamos a vida toda. A experiência de Teresa é preciosíssima, pois ela nos faz conhecer, pela fé e pela oração, que Deus é Alguém muito acessível, realmente um Amigo.

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