quarta-feira, 19 de maio de 2010

Capítulo 11



Diz por que não amamos a Deus com perfeição
desde o início. Mediante uma comparação, afirma a existência de quatro graus de oração. Tratará aqui do primeiro, que considera muito proveitoso para os principiantes e para os que não têm prazer na oração.
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1. Falando agora dos que começam a ser servos do amor (que não me parece outra coisa além de nos decidirmos a seguir por esse caminho de oração Aquele que tanto nos amou), considero uma dignidade tão grande que sinto enorme prazer só de pensar nela; porque o temor servil logo desaparece se passamos por esse primeiro estágio como devemos. Ó Senhor de minha alma e Bem meu! Por que não quisestes que, determinando-se a amar-Vos — fazendo tudo o que pode para deixar o mundo e se dedicar ao amor de Deus —, a alma não gozasse logo a elevação a esse amor perfeito? Não me exprimo bem: tinha de falar e me queixar do fato de nós não a querermos; a cul pa é toda nossa por não gozarmos logo de tamanha dignidade, pois, se che garmos a ter com perfeição esse verdadeiro amor de Deus, também obte remos todos os bens. Somos tão difíceis e demoramos tanto a nos entregar de todo a Deus que, como Sua Majestade não deseja que gozemos coisa tão preciosa sem pagar um grande preço, nunca acabamos de nos dispor.

2. Bem vejo que não há com que se possa comprar na terra tão grande bem; mas, se fizéssemos o que está em nossas mãos, desapegando-nos das coisas dela, dedicando-nos por inteiro ao céu, creio que sem dúvida teríamos esse bem muito depressa, se logo nos entregássemos de todo, como o fizeram alguns santos. Contudo, julgamos dar tudo quando oferecemos a Deus somente a renda e os produtos, ficando com a raiz e a propriedade. Determinamo--nos a ser pobres — o que é bastante nobre —, mas muitas vezes voltamos a preocupar-nos e a labutar para que não nos falte não apenas o necessário como o supérfluo, e para granjear amigos que no-los dêem, e temos maiores preocupações (expondo-nos, por vezes, a perigos) para que nada nos falte do que antes, quando éramos proprietários.

Parece também que abandonamos a honra quando nos fizemos religiosos ou quando começamos a ter vida espiritual e a procurar a perfeição; no en tanto, se um ponto de honra é atacado em nós, esquecemo-nos de que já consagramos a honra a Deus e buscamos recuperá-la e — por assim dizer — ar rancá-la das Suas mãos, depois de tê-Lo feito senhor dela por nossa própria vontade, ao menos aparentemente. Assim ocorre com todas as outras coisas.

3. Estranha maneira de buscar o amor de Deus! E logo o queremos em abundância, como se diz. Não fica bem manter nossas afeições (já que não procuramos realizar nossos desejos nem nos apartamos totalmente deles) ao lado das muitas consolações espirituais que recebemos, nem essas duas coisas me parecem compatíveis. Com isso, como não damos tudo de uma vez, também não recebemos de vez esse tesouro. Queira o Senhor que, gota a gota, Sua Majestade nos dê esse tesouro, mesmo que isso nos custe todos os sofrimentos do mundo.

4. Ele é rico em misericórdia para com aqueles a quem dá graça e ânimo para que se decidam a procurar esse bem com todas as forças; porque Deus não se nega a quem persevera, habilitando pouco a pouco o seu ânimo a alcançar a vitória. Digo ânimo porque são muitas as coisas que o demônio põe diante de quem começa, para impedi-lo de começar de fato esse caminho. Porque este último sabe do prejuízo que tem ao perder não somente essa alma, mas muitas. Se o iniciante se esforça, com o favor de Deus, para chegar ao auge da perfeição, creio que nunca vai sozinho ao céu, levando sempre muita gente consigo; como a bom capitão, dá-lhe Deus quem vá em sua companhia.

São tantos os perigos e as dificuldades que ele põe2 que não é pouco o ânimo necessário para não voltar atrás, além do constante favor de Deus.

5. No princípio está a maior dificuldade dos que estão determinados a bus car esse bem e a realizar esse empreendimento (quanto ao que comecei a falar sobre a teologia mística — acho que é esse o seu nome —, retomarei adiante); porque, no início, são eles que trabalham, embora o Senhor lhes dê o capital. Nos outros graus de oração, só há prazer, embora no começo, no meio e no fim todos carreguem suas cruzes, ainda que diferentes; pelo mesmo caminho que Cristo percorreu devem passar os que O seguem, se não quiserem se perder. Benditos sofrimentos que, ainda nesta vida, são pagos tão excessivamente!

6. Terei de recorrer a alguma comparação, embora, por ser mulher, prefe ris se evitá-las e escrever simplesmente o que me mandam. Mas é tanta a di ficuldade da linguagem espiritual3 para os que, como eu, não têm instrução que terei de buscar algum meio, correndo o risco de nem sempre acertar nes sa comparação; divertirá vossa mercê4 ver tanta ignorância.

Parece-me que li ou ouvi esta comparação — como tenho memória ruim, não sei onde nem por quê; mas, para o meu objetivo aqui, basta-me citá-la.5 Quem principia deve ter especial cuidado, como quem fosse plantar um jardim, para deleite do Senhor, em terra muito improdutiva, com muitas ervas daninhas. Sua Majestade arranca as ervas daninhas e planta as boas. Façamos de conta que isso já aconteceu quando uma alma decide dedicar-se à oração e começa a se exercitar nela. Com a ajuda de Deus, temos de procurar, como bons jardineiros, que essas plantas cresçam, tendo o cuidado de regá-las para que não se percam e venham a dar flores, cujo perfume agradável delicie esse nosso Senhor, para que Ele venha a se deleitar muitas vezes em nosso jardim e a gozar entre essas virtudes.

7. Vejamos agora a maneira de regar, para sabermos o que fazer e o quanto isso nos há de custar; verificar se o lucro é maior do que o esforço e o tempo que o trabalho levará.

Parece-me que é possível regar de quatro maneiras:

— tirando a água de um poço, o que nos parece grande trabalho;

tirá-la com nora e alcatruzes movidos por um torno; assim o fiz algumas vezes:6 dá menos trabalho que a outra e produz mais água;

trazê-la de um rio ou arroio; rega-se muito melhor, a terra fica bem mo lhada, não é preciso regar com tanta freqüência e o jardineiro faz menos esforço;

contar com chuvas freqüentes; neste caso, o Senhor rega, sem nenhum trabalho nosso, sendo esta maneira incomparavelmente melhor do que as outras.

8. Agora, apliquemos à oração essas quatro maneiras de regar, com as quais haveremos de conservar o jardim, que, sem ser irrigado, perecerá. Com esta comparação acredito poder explicar algo dos quatro graus de oração em que o Senhor, pela sua bondade, pôs algumas vezes a minha alma. Queira a Sua bondade que eu o diga de um modo que traga proveito a uma das pessoas que me mandaram escrever,7 porque o Senhor, em quatro meses, a fez avançar mais do que eu consegui em dezessete anos. Essa pessoa se dispôs melhor do que eu e, assim, rega sem trabalho seu vergel com essas quatro águas, embora a última só lhe venha gota a gota; mas, a prosseguir assim, logo estará mergulhada nela, com a ajuda do Senhor, e gostarei que ria se lhe parecer disparatada a minha forma de dizer.

9. Pode-se dizer dos que começam a ter oração que apanham a água do poço, o que é muito trabalhoso, como eu disse,8 porque eles têm de cansar--se para recolher os sentidos, algo que, como não estão acostumados a concentrar-se, requer muito esforço. É preciso que eles vão se habituando a não se incomodar com o que vêem ou ouvem, fazendo-o efetivamente nas horas de oração, ficando em solidão e afastados para pensar em sua vida passada. Na verdade, todos devem fazer isso com freqüência, tanto iniciantes como os que estão avançados, pensando mais ou menos nisso, como depois direi.9 No princípio, os iniciantes ainda sofrem, por julgarem que não se arrependem dos pecados, embora o seu arrependimento seja sincero, pois estão de fato determinados a servir a Deus. Eles devem procurar pensar na vida de Cristo e, nisso, cansa-se a mente.

Até aqui podemos chegar sozinhos, claro que com o favor de Deus, pois, como se sabe, sem Ele, não podemos ter um único bom pensamento. Isso é começar a tirar água do poço, e queira Deus que este não esteja seco. Pelo menos fazemos a nossa parte, indo apanhar água e fazendo o que podemos para regar as flores. E é o bom Deus que, por motivos que Ele conhece — talvez para grande proveito nosso —, quer que o poço esteja seco, devendo nós fazer como o bom jardineiro, que, sem água, mantém as flores e faz crescer as virtudes. Chamo de “água” aqui as lágrimas e, à falta delas, a ternura e o sentimento interior de devoção.

10. E o que fará aqui quem vir que, em muitos dias, só há secura, des gosto, dissabor e tão má vontade para ir tirar a água? Se não se recordasse de que serve e agrada ao Senhor do jardim e se não receasse perder todo o serviço já feito, além do que espera ganhar com o grande trabalho que é lançar mui tas vezes o balde ao poço e tirá-lo sem água, abandonaria tudo? Muitas vezes, nem conseguirá levantar os braços, nem poderá ter um bom pensamento, porque esse trabalho com o intelecto, entenda-se, é tirar água do poço.

Como eu dizia, que fará aqui o jardineiro? Alegrar-se, consolar-se e considerar uma enorme graça trabalhar no jardim de tão grande Imperador. Sabendo que contenta ao Senhor com aquilo, e que a sua intenção não há de ser senão contentar a Ele, louve-O muito, pois o Senhor nele confia, por ver que, sem nada receber, a alma cuida muito do seu trabalho; que o jardineiro O ajude a carregar a cruz e pense que o Senhor nela viveu por toda a vida; que não procure seu reino aqui na terra e nunca abandone a oração. E se de termine, mesmo que essa secura dure a vida inteira, a não deixar que Cristo caia com a cruz, pois virá o momento em que toda a sua recompensa lhe será dada de uma vez. Não tenha medo de que o seu trabalho se perca, pois ele ser ve a bom patrão, que o está olhando. Não se incomode com os maus pen samentos; pense que o demônio também os representava a São Jerônimo no deserto.10

11. Esses trabalhos têm seu valor, eu o sei, pois os fiz durante muitos anos (quando eu tirava uma gota de água desse poço bendito, pensava que Deus me concedia uma graça), sendo necessário, para vencê-los, mais coragem do que para muitos outros trabalhos do mundo. Mas vi com clareza que Deus não deixa de dar grande recompensa, ainda nesta vida; pois é certo que, em uma hora na qual o Senhor me permite rejubilar-me nele, considero pagas todas as angústias por que, para perseverar na oração, passei.

Creio que o Senhor deseja dar, muitas vezes no princípio e outras no final, esses tormentos e muitas outras tentações que aparecem, para testar os que O amam e saber se poderão beber o cálice e ajudá-Lo a levar a cruz, antes de lhes oferecer grandes tesouros. E é para o nosso bem que Sua Ma jestade deseja levar-nos dessa maneira para que compreendamos quão pou co somos; porque as graças que depois vêm têm tamanha dignidade que Ele, antes de dá-las, deseja que, pela experiência, percebamos antes a nossa in significância, a fim de que não aconteça conosco o que sucedeu a Lúcifer.

12. Que fazeis Vós, Senhor meu, que não seja para maior bem da alma que já sabeis ser Vossa e que se põe em Vosso poder para seguir-Vos por on de fordes, até a morte na cruz, determinada a ajudar-Vos a carregá-la e a não Vos deixar sozinho com ela?

Quem vir em si essa determinação… de modo algum deve temer. Não tem razão para afligir-se quem se dedica às coisas do espírito. Estando já no nível tão alto que é o do desejo de ficar a sós com Deus e de renunciar aos pas­satempos do mundo, a alma fez a maior parte. Louvai por isso Sua Majes ta de e confiai em Sua bondade, pois Ele nunca faltou aos seus amigos. Fechai os olhos da mente para não pensardes: por que Ele dá devoção a alguém em pou cos dias e a nega a mim em tantos anos? Acreditemos que é tudo para o nos so bem maior. Guie Sua Majestade por onde quiser. Já não somos nossos, mas Seus. Ele já nos favorece bastante ao nos dar disposição para cavar no Seu jardim e estar aos pés do seu Senhor, que por certo está conosco. Se Ele deseja que essas plantas e flores cresçam, para uns jardineiros com a água que tiram do poço e, para outros, sem ela, que importância tem isso para mim? Fazei Vós, Senhor, o que quiserdes. Que eu não Vos ofenda e que não se percam as virtudes, se alguma já me destes só por Vossa bondade. Desejo padecer, Senhor, pois Vós padecestes. Faça-se em mim, de todas as maneiras, a Vossa vontade, e não permitais que uma coisa tão valiosa quanto o Vosso amor seja dada a quem só Vos serve em busca de consolações.

13. Deve-se acentuar — e o digo por experiência — que a alma que, nessa trilha da oração mental, começa a caminhar com determinação e con segue de si mesma não fazer muito caso, nem consolar-se ou desconsolar-se muito por faltarem ou não esses gostos e essa ternura, ou por lhos dar o Senhor, já venceu boa parte do caminho; e que não tenha medo de recuar, por mais que tropece, já que começou o edi fício com firmes alicerces. Sim, pois o amor de Deus não está em ter lá grimas nem em ter esses gostos e essa ternura, que em geral desejamos e com os quais nos consolamos, mas em servir com justiça, força de ânimo e hu mildade. Isso me parece mais receber do que dar alguma coisa.

14. Para mulherzinhas como eu, fracas e pouco constantes, creio que con vém, como Deus agora o faz comigo: conduzir-me com regalos, para que eu possa so frer algumas dificuldades que Sua Majestade desejou que eu tivesse. Mas, para servos de Deus, homens de valor, instruídos, inteligentes, desgosta--me ou vi-los se queixarem tanto de que Deus não lhes dá devoção; não digo que não a aceitem, se Deus a der, tendo-a em alta conta, porque, nesse caso, Sua Majestade sabe que isso lhes convém, mas que, quando não a tiverem, que não se aflijam, entendendo que ela não lhes é necessária, já que Sua Majestade não a dá, e sigam seu caminho. Acreditem que é uma imperfeição. Eu o vi e experimentei. Acreditem que é imperfeição e falta de liberdade de espírito; é mostrar fraqueza para qualquer empreendimento.

15. Não falo isso tanto para os que começam (embora eu o acentue tanto porque é muito importante para eles começar com essa liberdade e determinação), mas para outros, pois haverá muitos, e há realmente, que começaram e nunca acabam de acabar; e creio que isso se deve em grande parte ao fato de eles não abraçarem a cruz desde o início, razão por que ficam aflitos, julgando que nada fazem. Não conseguem suportar que o intelecto deixe de atuar, não percebendo que, então, a vontade aumenta e se fortalece.

Temos de pensar que o Senhor não olha coisas que, embora nos pareçam faltas, não o são. Sua Majestade já conhece a nossa miséria e baixeza natural melhor do que nós mesmos, sabendo que essas almas desejam sempre pensar nele e amá-Lo; o que Ele quer é essa determinação, não servindo essa outra aflição senão para inquietar a alma. Quem está incapacitado de obter frutos durante uma hora assim o estará por quatro. Porque muitíssimas vezes (tenho enorme experiência nisso, e sei que é verdade, porque o examinei com cuidado e disso tratei com pessoas espirituais) tudo vem da indisposição corporal; somos tão miseráveis que essa pobre alma está aprisionada aos males do corpo; e as mudanças do tempo e variações dos humores muitas vezes fazem com que, sem culpa, ela não possa fazer o que quer, padecendo de todas as maneiras. Nesses momentos, quanto mais a quisermos forçar, tanto pior e mais duro será o mal; nesse caso, é preciso ter discrição para ver quando se deve fazer o quê, para não atormentar a pobre. Que elas percebam que estão doentes e mudem a hora da oração, o que amiúde durará alguns dias. Suportem como puderem esse desterro, pois é grande a desventura da alma amante de Deus ao ver que passa por essa desolação, sem poder fazer o que quer, por ter um hóspede tão ruim quanto o corpo.

16. Eu disse “ter discrição” porque às vezes o demônio age. Assim, é bom que não se deixe sempre a oração quando se está muito distraído e perturbado no intelecto, nem se atormente sempre a alma, obrigando-a a fazer o que não pode.

Há outras ocupações além de obras de caridade e de leitura, mesmo que por vezes nem isso seja possível. Sirva-se então ao corpo por amor a Deus, para que ele, em muitas outras ocasiões, sirva à alma; dedique-se o tempo a conversas virtuosas ou a passeios pelo campo, segundo o conselho do confessor. Em tudo, vale muito a experiência, que nos dá a entender o que nos convém e nos faz ver que em tudo servimos a Deus. Suave é o seu jugo, e muito vale a pena não arrastar a alma, como se diz, mas levá-la com suavidade11 para seu maior aproveitamento.

17. Assim, repito — e mesmo que não pare de fazê-lo, ainda não o terei enfatizado o bastante — que importa muito que não nos atormentemos nem nos aflijamos com essas securas, com a inquietude e com a distração nos pensamentos. Quem quiser obter liberdade de espírito e não ficar sempre atribulado deve começar por não se espantar com a cruz; se o fizer, verá que o Senhor também ajuda a levá-la, e viverá contente e tirando proveito de tudo. É natural, pois se o poço está seco, nós não podemos enchê-lo de água; é verdade que não podemos nos descuidar, para que, quando houver água, a tiremos — porque, nesse caso, Deus deseja por meio dela multiplicar as virtudes.

5 comentários:

  1. Os capítulos 11 ao 22 do Livro da Vida são um pequeno tratado de oração. Neles, a oração é comparada a um jardim, onde Deus passeia e onde há flores e perfumes e também ervas daninhas. Este jardim precisa ser cuidado e regado. Parece que aqui Santa Teresa se apropria do estilo de parábolas, que Jesus utiliza no Evangelho. O jardim é nossa alma; a água é a oração; o jardineiro é a pessoa que deve regar este lugar, onde Deus quer deleitar-se.
    Teresa explica, à sua maneira, os graus da oração e nos conduz a quatro graus, que ela representa em seu jardim. Apresenta quatro maneiras de regar as flores. Estas flores são as virtudes e, com seu perfume e beleza, o Senhor quer deliciar-se. O Senhor passeia pelo jardim e também o rega com suas graças, que possibilitam o crescimento de todo o bem na alma. Porém, a comunicação com Deus, pela oração, necessita de nosso esforço.
    No capítulo 11, Santa Teresa repete por mais de dez vezes a palavra “determinar-se”. Não cansa de afirmar a importância de nossa colaboração e sabe, por experiência, que as coisas de Deus não funcionam se nelas não colocarmos “uma determinada determinação” (cf. CV 21,2; CE 35,2). O caminho da oração, - “Ser servos do amor, que não me parece outra coisa senão determinarmo-nos a seguir por este caminho de oração Aquele que tanto nos ama” (cf. V 11,1), - não será possível sem a clara decisão de entregarmo-nos à comunhão com Deus, presente no mundo, desapegando-nos das coisas terrenas e dedicando-nos inteiramente às do céu.
    Aqueles que se determinam “morrer por Cristo, e não alegrar-se por Cristo” (cf. CE 15,3; CV 10,5), encontrarão o caminho da oração, porque sabem que o mesmo caminho trilhado por Cristo deverá ser trilhado pelos que O seguem. Não é verdadeira amizade quando se busca o Amigo para a própria satisfação ou consolo. Na oração, nossa amizade com Deus deve ser robustecida pelos sofrimentos e pelas dificuldades, como quem busca água no poço para irrigar o jardim e muitas vezes o encontra seco.
    Para o caminho da oração “a alma não deve ser arrastada bruscamente, mas levada com suavidade, para seu maior aproveitamento”, esclarece Santa Teresa. Importa ter “discrição”, no trato com a alma, não a obrigando fazer o que não pode. Distrações virtuosas podem nos fazer entender que em tudo servimos ao Senhor. Atender também ao corpo, com amor, pode nos ajudar a “ir ao poço quando ele está seco, sabendo que não poderemos enchê-lo de água”. Não nos afligir com essas securas, com as distrações e com a inquietude nos dá liberdade de espírito para não nos espantarmos com a Cruz, pois o Senhor nos ajuda a levá-la e também nos faz correr ao poço, quando houver água, para irrigarmos e multiplicarmos nossas virtudes.

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  2. "Que fazeis Vós, Senhor meu, que não seja para maior bem da alma que já sabeis ser Vossa e que se põe em Vosso poder para seguir-Vos por onde fordes, até a morte na cruz, determinada a ajudar-Vos a carregá-la e a não Vos deixar sozinho com ela? Quem vir em si essa determinação... de modo algum deve temer. Não tem razão para afligir-se quem se dedica às coisas do espírito. Estando já no nível tão alto que é o do desejo de ficar a sós com Deus e de renunciar aos passatempos do mundo, a alma fez a maior parte. Louvai por isso Sua Majestade e confiai em Sua bondade, pois Ele nunca faltou aos seus amigos."
    Penso estar aqui a grande mensagem deste Capítulo. Uma vez iniciado o caminho da oração, deve a alma entregar-se ao Senhor, permitindo que Ele a conduza. Penso ser este o significado da "determinação" que a Santa Madre nos indica - permitir que o Senhor nos conduza.
    A determinação é fruto de nossa conversão, rompendo com as seduções do mundo. A determinaçao está em ser perseverante no caminho de oração, como diálogo com Deus, adorando-O, bendizendo-O, louvando-O. A determinação está também em crer que tudo é conduzido pelo Senhor, pois não cai uma folha da árvore sem que Ele assim o permita. A determinação também expressa nossa adesão à vontade do Senhor, entregando-Lhe todo o nosso ser e nossos cuidados. Por fim, a determinação encerra em si a confiança em Deus e o abandono aos desígnios do Pai: "Fazei Vós, Senhor, o que quiserdes. (...) Faça-se em mim, de todas as maneiras, a Vossa vontade, e não permitais que uma coisa tão valiosa quanto o Vosso amor seja dada a quem só Vos serve em busca de consolações". A determinação está em seguir ao Senhor no Tabor e no Calvário, como uma resposta ao Seu imenso amor por cada um de nós, e não para buscar na oração gostos, consolos. Não podemos nos servir da oração para alcançarmos satisfações humanas - isto seria servir-se de Deus e não servir a Deus.
    Uma vez tendo a alma esta determinação, não há o que temer, mesmo diante da aridez e da secura, quando não se consegue tirar a água do poço. Pois mesmo a secura é permitida por Deus por um desígnio maior que nosso entendimento humano.
    Finalmente, fica para nós o grande conselho da Santa Madre: "(...) importa muito que não nos atormentemos nem nos aflijamos com essas securas, com a inquietude e com a distração nos pensamentos. Quem quiser obter liberdade de espírito e não ficar sempre atribulado deverá começar por não se espantar com a cruz; se o fizer, verá que o Senhor também ajuda a levá-la, e viverá contente e tirando proveito de tudo." Portanto, que nada nos perturbe, nada nos amedronte, pois o que o Senhor quer de nós é nossa determinaçao em segui-Lo e servi-Lo.

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  3. Para mim este capítulo é maravilhoso porque nele Santa Teresa relata seu primeiro ensinamento, ou seja, explica por meio de símbolos a sua experiência em oração. Introduz a oração teresiana.
    Não consigo lê-lo de outra forma a não ser meditando e sentindo o sabor de ser eu as vezes poço, fonte,flor e jardineiro e as vezes é Deus o poço, a fonte e o jardineiro, mas a água é sempre a Sua graça. Tudo isso me leva a esta experiência:
    Ora, tenho balde
    e não acho o poço.
    Ora, encontro o poço
    vazio.
    Ora, oro somente
    e cai chuva torrente.

    E quando reflito as flores deste jardim chego a conclusão que:
    As flores mais lindas
    são regadas com
    suor e lágrimas
    e ofertadas à Deus
    com alegria.
    Rosas perfumadas
    são regadas
    com água do poço
    e serve aos irmãos
    com alegria.
    Jardim florido
    é regado por Deus
    e alegra a terra
    que sou eu.

    O grande mistério disso tudo é encontrarmos conosco mesmo através deste caminho que Santa Teresa nos propoe e nos instrui tão bem a partir deste capítulo. Basta determinarmos em estar sempre a caminho rumo a fonte.
    “A viagem mais longa
    É a viagem para o interior
    Daquele que escolheu seu destino,
    Que iniciou a busca
    Da fonte do seu ser.
    Existe uma fonte?
    Está sempre contigo
    A sós, no mais profundo. “ (Dag Hammarskjöld, Markings)

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  4. NOTAS

    1. O vocabulário das experiências místicas. - Embora, segundo a autora, os diferentes termos técnicos recordados ao iniciar o capítulo sejam sinônimos (“tudo é o mesmo”, “estes diferentes nomes indicam uma única realidade”), anos mais tarde indicará suas nuanças características: “arroubo e suspensão - dirá - a meu ver são idênticos” (Rel 5,7). Há pequenas diferenças entre arroubo e arrebatamento (ib. 9). Também os vôos de espírito (ib. 11) e os ímpetos (ib. 13) apresentam matizes diferentes. No trecho paralelo das Moradas, repetirá novamente “ que tudo é o mesmo a seu ver” (6M 4 título)
    2. Cronologia do texto. - No relato autobiográfico de Vida, este capítulo refere as experiências finais na série das vividas pela santa até esse momento (fim de 1565). Faz pouco que cessaram os arroubos ostentosos (n. 5). Continua vivendo intensamente o sofrimento de ausência (n. 9). Padece a miragem de uma possível morte iminente (n. 13). Todavia em data tardia, ao reler o próprio texto, acrescenta-lhe uma nota marginal (fólio 55r do autógrafo), em que insiste: “digo que estes ímpetos acontecem depois das graças que aqui narro e que o Senhor me concedeu” (fim do n. 15). - Contudo, mesmo que os capítulos seguintes (por exemplo 32-36) referem acontecimentos cronologicamente anteriores, vai escrevê-los todos aqui e agora, no estado de tensão referido no presente capítulo.
    3. Referências bíblicas no capítulo. - São mais de meia dúzia os trechos bíblicos evocados no presente capítulo. Todos eles referidos expressamente à experiência da Santa. Prevalecem os textos dos salmos: quatro ao todo. A própria Santa adverte ao citá-los: “devo observar que eu não sabia bem o significado desses versos em romance e, quando pude entendê-los, consolei-me por ver que o Senhor os tinha trazido à minha mente sem que eu o procurasse” (n. 11).
    de Thomaz alvarez

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  5. Reflexão sobre os Cap. 10 a 22 - Teologia Mística.
    Penso que a síntese deste tratado de oração de Teresa é: a Santa Madre nos pega pela mão e nos conduz por um caminho seguro, onde nos encontraremos com o Senhor.
    Com sua pedagogia peculiar, Teresa nos ensina como devemos proceder, qual há de ser a nossa parte para que o diálogo com Deus se realize. Assim, ela nos ensina que o recolhimento dos sentidos, ou silenciar-se, ou, ainda, o esvaziar-se interiormente de toda preocupação, atividade, tentação, é tarefa da alma. E, de fato, sabemos, não é pouco trabalho... Com efeito, evidencia-se aqui a "determinada determinação", ou o desejo íntimo e profundo de estar com o Senhor, de encontrar-se com Ele na oração. Isto é tarefa da alma.
    A oração de quietude é uma resposta do Senhor, que já começa a elevar a alma a graças sobrenaturais. O silenciar-se é tarefa da alma, o elevar-se é graça de Deus.
    E assim continua Deus a agir na alma no terceiro e quarto graus de oração, onde a alma fica praticamente passiva, unindo-se ao Senhor.
    Como não ficarmos extasiados diante dos efeitos produzidos pela oração na alma? "A alma fica suspensa, a vontade ama, a memória parece quase estar perdida, o intelecto não discorre, mas também não se perde, entretanto também não age". "A alma não sabe o que fazer: se fala, se fica em silêncio, se ri ou se chora. É um glorioso desatino, uma loucura celestial". Diz, ainda, a Santa Madre: "Os prazeres obtidos na oração devem ser os dos que estão no céu".
    Teresa, ao narrar suas experiências de oração, convence-nos de que é possível a nós trilharmos este caminho, desde que o busquemos de todo o coração, pois o Senhor não nos deixa sem resposta. Assim nos assegura o Eclesiástico: "Considerai, meus filhos, as gerações humanas: sabei que nenhum daqueles que confiavam no Senhor foi confundido. Pois quem foi abandonado após ter perseverado em seus mandamentos? Quem é aquele cuja oração foi desprezada?"
    Penso que os ensinamentos da Santa Madre são para nós um grande incentivo. Sabemos das exigências da oração, mas também sabemos que esforçar-nos por permanecermos na amizade com o Senhor é fonte de alegria e paz interior perenes. Sigamos, pois, em frente, pois Teresa estende para nós a sua mão de mãe para nos conduzir rumo às alturas da experiência de intimidade com o Senhor. Amém.

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