
quinta-feira, 21 de janeiro de 2010
segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
Capítulo 6


sábado, 16 de janeiro de 2010
capitulo 5

Capítulo 5
Continua a falar das grandes enfermidades que teve e da paciência que o Senhor lhe deu para suportá-las, e diz como Ele do mal extrai o bem, como se verá pelo que aconteceu a ela no lugar ao qual foi para curar-se.
1. Esqueci de dizer que, no ano de noviciado, tive grandes desassossegos com coisas que, em si, pouca importância tinham. Culpavam-me muitas vezes sem que eu tivesse culpa, e eu sofria com muitos desgostos e imperfeições, embora o meu grande contentamento com o fato de ser monja a tudo compen sasse. Como me viam buscar a solidão, bem como chorar algumas vezes por meus pecados, pensavam que eu estivesse descontente, e o diziam.
Eu gostava de todos os costumes religiosos, mas não tolerava sofrer o que me parecesse menosprezo. Apreciava que gostassem de mim, dedicava--me a tudo o que fazia. Tudo me parecia virtuoso, embora isso não me sirva de des culpa, porque eu sabia procurar o que me dava prazer, razão por que a ignorância não me tira a culpa. O fato de o mosteiro não estar fundado em muita perfeição pode relevar algumas faltas minhas; contudo, por minha ruin dade, eu acolhia o que era defeituoso e desprezava o que era bom.
2. Uma das religiosas sofria então, prostrada por grande e dolorosa enfer midade; devido a uma obstrução, fizeram-lhe abertura no ventre, por onde re gurgitava tudo o que comia. Em pouco tempo faleceu. Eu via todas temerem aquele mal, mas tinha grande inveja de sua paciência; pedia a Deus que, dando-me semelhante paciência, também me desse as enfermidades que dese jasse. Parece-me que eu não temia nenhuma, pois estava tão determinada a obter bens eternos que me dispunha a ganhá-los por qualquer meio. E espanto-me porque então ainda não tinha — a meu ver — amor a Deus, como acreditei que tivesse depois que comecei a fazer orações. Tratava-se apenas de uma luz que me levava a ver o pouco valor do perecível e o alto preço dos bens que com ele se podem ganhar, visto serem eternos.
Sua Majestade me ouviu tanto que, em menos de dois anos, a minha condição era tal que, embora diferente daquela, a minha enfermidade não foi menos dolorosa nem deu menos trabalho; durou três anos, como agora vou narrar.
3. Chegado o momento de ir me tratar, que eu aguardava com a minha irmã nesse lugar,1 esta, o meu pai e a monja amiga minha que viera comigo, e que muito gostava de mim, me levaram com extremo cuidado.
O demônio logo começou a inquietar minha alma, mas Deus retirou dis so grandes benefícios. No lugarejo onde fui me curar,2 morava um sacerdo te que, além de nobre e inteligente, tinha alguma instrução. Comecei a confessar --me com ele, porque sempre fui amiga das letras, apesar do grande dano que me tinham feito confessores mais ou menos letrados, a quem eu recorria por não encontrar algum mais instruído. Sei por experiência que é melhor que os re ligio sos, sendo virtuosos e de vida santa, sejam antes totalmente ignorantes do que doutos pela metade. Os ignorantes não confiam em si, consultando os mais sábios; os verdadeiramente cultos nunca se enganam, ao passo que os ou tros, embora não pretendam enganar, também não sabem mais do que ensinam. Eu achava que os confessores de pouca instrução fossem competentes, julgando que bastava apenas lhes dar crédito. Por outro la do, a doutrina que me transmi tiam era ampla e de maior liberdade. Se assim não fosse, sou tão ruim que por certo buscaria outros. O que era pecado ve nial, eles me diziam não ser pe cado; o que era pecado mortal gravíssimo, diziam que era venial. Isso me fez tanto mal que é preciso dizê-lo aqui, para alertar ou tras pessoas sobre os danos que isso traz. Bem sei que isso não é desculpa aos olhos de Deus; o simples fato de certas coisas não serem boas em si devia ser suficiente para que eu as evi tasse. Creio que, por causa dos meus pecados, Deus permitiu que esses con fessores se enganassem e me enganassem. E eu en ganei outras tantas pes soas por lhes transmitir o mesmo que eles me tinham dito.
Fiquei com essa cegueira, creio eu, por mais de dezesseis anos, até que um padre dominicano,3 grande erudito, dissipou esses erros; os da Companhia de Jesus incutiram em mim um saudável temor, revelando-me a gravida de de princípios tão maus, como depois vou contar.
4. Assim, comecei a confessar-me com o sacerdote de que falei; ele se afei ço ou muito a mim, porque então eu tinha pouco o que confessar, em com paração com o que tive, depois de me tornar monja. Sua afeição não era má, mas, em seu excesso, deixou de ser boa. Ele passou a acreditar que eu jamais faria coisas graves contra Deus por nada deste mundo; ele também me assegurava isso, sendo muita a confiança recíproca. Fascinada por Deus, o que mais me agradava era falar somente Dele. E, sendo eu tão jovem, o sa cerdote ficou, diante disso, muito confuso. Por fim, dada a grande amizade que tinha por mim, começou a me confessar a perdição em que vivia. E não era pouca, porque há quase sete anos ele estava em situação muito perigosa, com amizade e relações com uma mulher do lugar, mas, ainda assim, dizia missa. Era uma coisa tão pública que ele perdera a honra e a fama, e ninguém ousava contestá-lo. Isso me entristeceu muito, pois era grande a minha amizade por ele. Eu tinha a grande leviandade e cegueira, que me parecia virtude, de ser grata e pagar na mesma moeda aos que me queriam bem. Maldito seja esse princípio, que chega a ponto de ser contra os de Deus! É um despropósito comum no mundo que me desatina: devemos todo o bem que nos fazem a Deus, mas temos como virtude, embora indo contra Ele, manter essa ami za de. Ó cegueira do mundo! Quem dera, Senhor, que eu tivesse sido in grata com todos, mas sem me opor em um único ponto a Vós! No entanto, devido aos meus pecados, ocorreu o contrário.
5. Procurando saber e me informar com as pessoas de sua casa, entendi melhor a sua perdição e percebi que o pobre não tinha tanta culpa; porque a desventurada mulher havia posto feitiços num idolozinho de cobre, que lhe rogara trouxesse ao pescoço por amor a ela. E ninguém tinha sido capaz de tirá-lo dele.
Decididamente não acredito em feitiços; mas digo o que vi, para avisar aos homens que se afastem de mulheres que recorrem a semelhantes ardis. Acre ditem que, sendo obrigadas, mais do que os homens, a ter honestidade, as mulheres, ao perderem a vergonha diante de Deus, em nada merecem con fiança, porque, para levar adiante a sua vontade e o desejo que o demônio lhes incute, são capazes de tudo. Embora tenha sido tão ruim, eu nunca caí em nada dessa espécie, e jamais pretendi fazer mal ou forçar alguém, mesmo que pudesse, a gostar de mim, porque o Senhor me protegeu disso; mas, se Ele me tivesse permitido, eu também teria feito mal em outros planos, pois em mim não há nada digno de confiança.
6. Assim, como soube disso, comecei a demonstrar-lhe mais afeição. A minha intenção era boa, mas a ação, má, pois não se deve, por maior que seja o bem que se deseje conseguir, fazer um pequeno mal. Eu falava muito de Deus. Isso devia lhe trazer proveito, mas creio que ele era movido, sobretudo, por me querer muito. Desejando agradar-me, terminou por me entregar o ido lozinho, que eu logo mandei jogar no rio. Assim que este desapareceu, ele começou, como quem desperta de um grande sono, a se dar conta de tudo o que fizera naqueles anos; e, espantado consigo mesmo, sofrendo pela sua per dição, começou a libertar-se dela. Nossa Senhora deve tê-lo ajudado muito, pois ele era muito devoto de sua Conceição, festejando-a, naquele dia, com muito fervor. Por fim, deixou de ver a mulher, e não se cansava de dar graças a Deus por havê-lo iluminado.
Exatamente um ano depois que o conheci, ele faleceu. Por todo esse tempo, perseverou no serviço de Deus. Nunca achei que a sua afeição por mim fosse má, embora pudesse ter sido mais pura; mas também houve ocasiões em que, não estivesse a lembrança de Deus bem presente, ele podia ter cometido ofensas mais graves. Como já disse,4 eu não seria capaz de cometer o que considerasse pecado mortal. Parece-me que essa minha disposição o aju dava a ter amizade por mim; pois creio que todos os homens devem ser mais amigos de mulheres inclinadas à virtude; por esse caminho, elas têm mais a ganhar, como depois direi. Tenho certeza de que aquele sacerdote está no caminho da salvação. Morreu muito bem, e bem afastado de suas antigas faltas. Parece que o Senhor desejou salvá-lo por esse meio.
7. Penei naquele lugar durante três meses, porque o tratamento foi mais forte do que a minha compleição. Em dois meses, graças aos remédios, a mi nha vida quase chegou ao fim; as dores no coração, de que me fora curar, aumentaram tanto que eu às vezes sentia que ele era rasgado por dentes agudos, a ponto de temerem que eu tivesse contraído raiva. Fiquei muito fra ca (porque não podia comer nada, apenas bebendo um pouco, e com esfor ço), com febre contínua, e muito desgastada, devido a quase um mês de pur ga tivos diários. Estava tão ressequida que meus nervos começaram a doer de maneira insuportável, não me dando descanso nem de dia nem à noite. Sentia uma tristeza muito profunda.
8. Diante disso, meu pai voltou a me levar aos médicos; todos me desen ganaram, dizendo que, além de todos os males, eu estava tuberculosa. Isso não me incomodava muito; o que me fatigava eram as dores, porque eram contínuas, e dos pés à cabeça. Os próprios médicos diziam serem essas dores es pasmódicas intoleráveis. Eu sofria duros tormentos e, graças a Deus, não perdi, por minha culpa, tantos méritos.
Fiquei sofrendo assim por três meses; e parecia impossível que alguém pu desse suportar tantos males ao mesmo tempo. Hoje me espanto e considero gran de graça do Senhor a paciência que Ele me deu, pois era claro que vinha De le. Para tê-la, muito me serviu ter lido a história de Jó, nas Moralia5 de São Gre gório. Creio que o Senhor me preparou com isso, e com a oração, que eu co meçara a fazer, para eu poder suportar os meus males com tanta conformida de. Meu pensamento estava sempre no Senhor. Lembrava-me amiúde das pala vras de Jó, que costumava repetir: Se das mãos do Senhor recebemos os bens, por que não sofreremos também os males?6 Ao que parece, isso me dava forças.
9. Veio a festa de Nossa Senhora de Agosto. O tormento vinha desde abril, embora tivesse aumentado nos últimos três meses. Apressei-me a confessar-me, pois sempre gostei de fazê-lo freqüentemente. Pensaram que eu tinha medo de morrer e, para não me alarmar, meu pai não consentiu. Ó amor carnal demasiado, que mesmo vindo de um pai tão católico, e tão esclarecido, o que ele era em grande grau, não tendo agido por ignorância, tanto mal me poderia fazer! Naquela noite, tive um paroxismo tão forte que fiquei sem sentidos por quase quatro dias. Administraram-me o Sacramento da Unção dos Enfermos, pensando que eu poderia morrer a qualquer hora. Não paravam de repetir o Credo, como se eu entendesse alguma coisa. Tinham tanta certeza de que eu morreria que até cera achei depois nos olhos.7
10. Foi grande o pesar do meu pai de não me ter permitido confessar-me; muitos foram seus clamores e orações a Deus. Bendito seja Aquele que se dignou ouvi-lo; há um dia e meio a sepultura estava aberta no meu mosteiro à espera do corpo, e já tinham sido feitas as exéquias num convento de frades fora da cidade, quando o Senhor quis que eu recuperasse os sentidos. Desejei logo confessar-me. Comunguei com muitas lágrimas; para mim, contudo, não eram só de sentimento e de pena por ter ofendido a Deus — isso teria bastado para me salvar, não me desculpando o engano, em que alguns confessores me fizeram cair, ao dizerem que não eram pecado mortal certas coisas que sem dúvida o eram. Porque as dores com que fiquei eram insuportáveis, não me permitindo a plena recuperação dos sentidos, embora, a meu ver, a minha confissão tenha incluído todas as minhas faltas contra o Senhor. Entre outras, Sua Majestade me concedeu a graça de, depois que comecei a comungar, jamais deixar de confessar qualquer coisa que eu considerasse pecado, mesmo venial. Mas por certo acho muito duvidosa a minha salvação se eu tivesse morrido então; de um lado, por serem tão pouco instruídos os confessores e, de outro, por ser eu tão ruim — para não dar muitos outros motivos.
11. Neste ponto da minha vida, vendo que, de certa maneira, o Senhor me ressuscitou, é tão grande o meu espanto que chego a tremer. Creio que foi para que visses, alma minha, de que perigo o Senhor te livrava; já que por amor não dei xavas de ofendê-lo, tu o fizeste, ao menos, por temer os castigos, porque Ele po deria matar-te outras mil vezes numa condição ainda mais pe rigosa. Acho que não exagero muito ao falar outras mil, mesmo que seja repreendida por quem me mandou ter moderação ao narrar os meus pecados. Por isso, formoseados vão.
Peço que, pelo amor de Deus, essa pessoa em nada diminua as minhas cul pas, para que brilhe mais a magnificência de Deus e se perceba o que sofre uma alma. Bendito seja Ele para sempre. Queira Sua Majestade que eu antes me consuma a deixar de lhe ter amor.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
LIVRO DA VIDA - Capítulo 4
Diz como o Senhor a ajudou a triunfar sobre si mesma
para tomar o hábito e das muitas doenças que Sua
Majestade começou a lhe dar.
1. Na época em que eu estava preocupada com essas decisões, convenci um dos meus irmãos a se tornar frade,1 persuadindo-o da vaidade do mundo; e resolvemos ir juntos um dia, bem de manhã, ao mosteiro onde estava aquela minha amiga — esse era o mosteiro que mais me agradava.2 Naquele momento, eu estava de tal modo decidida a ser monja que teria ido a qualquer mosteiro onde pudesse servir mais a Deus ou que agradasse ao meu pai. Eu estava voltada para curar a minha alma e dedicava o maior descaso à minha comodidade.
Lembro-me bem, e creio que com razão, que o meu sofrimento ao deixar a casa paterna não foi menor que a dor da morte.3 Eu tinha a impressão de que os meus ossos se afastavam de mim e que o amor de Deus não era maior do que o amor ao meu pai e à minha família, sendo necessário fazer tamanho esforço que, se o Senhor não me tivesse ajudado, as minhas considerações não teriam bastado para que eu prosseguisse. No momento certo, o Senhor me deu ânimo na luta contra mim mesma e, assim, levei adiante o meu propósito.
2. Quando tomei o hábito, o Senhor logo me fez compreender como favorece os que se esforçam por servi-Lo. Ninguém percebeu o meu esforço, mas só a minha imensa vontade. Ao fazê-lo, tive tal alegria de ter abraçado aquele estado que até hoje permaneço com ela; Deus transformou a aridez que tinha a minha alma em magnífica ternura. As observâncias da vida religiosa eram um deleite para mim; na verdade, nas vezes em que varria, em horários que antes dedicava a divertimentos e vaidades, me vinha uma estranha felicidade não sei de onde, diante da lembrança de estar livre de tudo aquilo.
Quando me lembro disso, não existe nada, por mais difícil e penoso, que eu deixe de realizar se puder. Na minha experiência de muitas ocasiões, se faço o esforço inicial, determinando-me a fazê-lo (sendo só por Deus, Ele quer — para o nosso maior merecimento — que a alma sinta aquele pavor até começar e, quanto maior ele for, maior a recompensa, e mais saborosa se torna depois), ainda nesta vida nos premia Sua Majestade por caminhos que só quem passa por isso o entende. Sei disso por experiência, como disse, em muitas coisas deveras graves; por isso, jamais aconselharia, se tivesse de fazê-lo, que, quando vier uma boa inspiração repetidas vezes, se deixe, por medo, de empreendê-la; porque, se o fizermos somente por Deus, não há por que temer o fracasso, pois poderoso é Ele em tudo. Bendito seja para sempre. Amém.
3. Bastariam, ó sumo Bem e descanso meu, as mercês que me tendes feito até aqui: trazendo-me, por tantos rodeios da Vossa piedade e grandeza, a uma condição tão segura e a uma casa com tantas servas Suas que me podem servir de exemplo para ir crescendo em Vosso serviço. Não sei como prosseguir ao me lembrar como cheguei à minha profissão,4 a grande determinação e contentamento com que o fiz, a aliança que fiz convosco. Não posso dizê-lo sem lágrimas; e estas teriam de ser de sangue, despedaçando-me o coração, e ainda assim não seria demasiado pelo tanto que depois Vos ofendi.
Tenho agora a impressão de que estava certa em recusar tão grande dignidade, pois a haveria de usar muito mal. Mas Vós, Senhor meu, quisestes ser — nos quase vinte anos em que tenho empregado mal essa mercê — o ofendido, para que eu fosse melhorada. Até parece, Deus meu, que prometi não cumprir nada do que Vos havia prometido, embora na época esse não fosse o meu propósito; mas, depois, prossegui de tal maneira que já não sei o que pretendia. Isso manifesta ainda mais quem sois Vós, Esposo meu, e quem sou eu. Pois é verdade que muitas vezes o sentimento de minhas grandes culpas é temperado pelo contentamento que me dá a compreensão da multiplicidade das Vossas misericórdias.5
4. Em quem, Senhor, poderiam essas misericórdias brilhar senão em mim, que tanto obscureci com minhas obras más os grandes favores que começastes a me conceder? Ai de mim, Criador meu, que não posso me desculpar por nenhuma desculpa ter, só podendo culpar a mim mesma! Para retribuir um pouco do amor que começastes a me mostrar, só em Vós eu poderia empregar o meu amor, o que teria remediado todo o mal. Como não o mereci, nem tive tanta ventura, valha-me agora, Senhor, a Vossa misericórdia.
5. Mudar de vida e de alimentação causou-me danos à saúde. Embora fosse grande a alegria, não o suportei. Os desmaios aumentaram, com uma dor no coração de tamanha intensidade que todos os que me viam se espantavam, ao lado de tantos outros males. O primeiro ano, eu o fui passando com a saúde bem abalada, embora não me pareça ter ofendido muito a Deus. Era tão grave a doença que eu ficava quase sempre privada de sentidos, chegando às vezes a perdê-los de fato. Meu pai se empenhava em encontrar algum remédio. Como os médicos daqui não resolveram, ele decidiu me levar a um lugar muito famoso na cura de outras enfermidades, onde, pelo que lhe disseram, eu também me livraria do meu mal.6 Acompanhou-me a amiga que, como eu disse, era antiga na casa,7 porque em nosso convento não se fazia voto de clausura.
6. Fiquei quase um ano naquele lugar. Por três meses, padeci tanto, devido ao rigoroso regime a que fui submetida, que não sei como suportei o tormento. Por fim, embora eu tenha resistido, minha compleição delicada se abalou, como direi.8 O tratamento iria começar no princípio do verão, mas fui para lá no início do inverno. Passei todo esse tempo na casa de minha irmã,9 que vivia numa aldeia pouco distante, para esperar o mês de abril, e para evitar idas e vindas.
7. Quando eu ia, aquele tio que morava, como eu disse, no caminho, me deu um livro; chamava-se Terceiro Abecedário e ensinava a oração de recolhimento.10 Nesse primeiro ano, eu havia lido bons livros (pois não quis mais usar outros, visto que já entendia o mal que me tinham causado), mas não sabia como agir na oração nem no recolhimento, e por isso aquele livro me deu grande alegria. Decidi seguir aquele caminho com todas as minhas forças.11 Naquela época, o Senhor já me tinha dado o dom das lágrimas, e, como eu gostava de ler, comecei a ter momentos de solidão, a confessar-me com freqüência e a seguir aquele caminho, tendo o referido livro por mestre. Outro mestre, isto é, algum confessor que me entendesse, busquei durante vinte anos, mas não o encontrei, o que me prejudicou e me fez retroceder muitas vezes, podendo ter me levado à ruína total. Se tivesse tido um confessor, eu teria sido ajudada em evitar as ocasiões de ofender a Deus.
Sua Majestade começou a me dar tantas graças desde o início que, ao fim do tempo que ali passei (aproximadamente nove meses de solidão; não vivia tão livre de ofender a Deus como o livro recomendava, mas passava por cima disso; parecia-me quase impossível evitar tudo; tinha cuidado para não cometer pecados mortais, e quisera Deus que sempre o tivesse tido; dos veniais, eu fazia pouco caso, e foi isso o que me destruiu)…12 me concedia tanta força para seguir esse caminho que me agraciava com a oração de quietude e até de união. Eu ainda não compreendia nenhuma dessas coisas, nem quanto mereciam ser prezadas; teria sido um grande bem compreendê-lo. É verdade que a oração de união durava muito pouco, talvez menos do que uma ave-maria. Causava, no entanto, efeitos tão grandes que eu, com menos de vinte anos de idade,13 tinha a impressão de estar pairando acima do mundo. Lembro que lastimava quem seguia as coisas do mundo, embora lícitas.
Eu buscava com todas as forças manter dentro de mim Jesus Cristo, nosso bem e Senhor, sendo esse o meu modo de oração. Se me ocorria algum passo da Paixão, eu o representava no meu íntimo; mas a maior parte do tempo eu dedicava a ler bons livros, sendo essa toda a minha recreação. Não recebi de Deus o dom de orar discursivamente nem de aproveitar a imaginação — é tão fraca a minha que, mesmo para pensar e representar para mim, como tentava fazer, a humanidade do Senhor, nunca consegui. É verdade que, não podendo usar o intelecto, quem persevera chega mais depressa à contemplação, mas com muitos sofrimentos e aflições. Se não há o emprego da vontade, nem o amor tem com que se ocupar, a alma fica sem apoio e sem exercício; a solidão que sobrevém, acompanhada de aridez, é causa de grande sofrimento e instala um enorme combate aos pensamentos.
8. Quem não consegue agir com o intelecto precisa de mais pureza de consciência do que quem o faz. De fato, quem medita sobre o que é o mundo, sobre o quanto deve a Deus, os muitos sofrimentos de Cristo, o pouco que realiza a seu serviço e o que o Senhor concede a quem o ama tem como defender-se dos pensamentos, das ocasiões e dos perigos. Porém, quem não pode tirar proveito disso se expõe a maior risco e precisa se ocupar muito da leitura, pois por si mesmo não consegue fazer boas reflexões; esse modo de proceder na oração causa muito sofrimento a essas pessoas. Por mais curta que seja, a leitura tem utilidade para elas e é até necessária para que se recolham; ela supre a oração mental que elas não conseguem fazer. Se o mestre que ensina insistir que a oração seja sem leitura (sendo a leitura uma grande ajuda para que essas pessoas se recolham), pessoas assim não conseguem perseverar muito tempo na oração. E, se lutarem, elas sentirão um enfraquecimento, porque o combate é muito penoso.
9. Agora acho que a Providência Divina quis que eu não encontrasse quem me ensinasse. Eu não teria conseguido perseverar na oração nos dezoito anos em que me acometeram tamanhos sofrimentos e aridez, visto não poder fazer oração discursiva, sem as leituras. Por todo esse tempo, eu não me atrevia a começar a orar sem livro, exceto quando acabava de comungar; minha alma temia tanto orar sem livro que era como se tivesse de enfrentar um exército. Com esse recurso, que era uma companhia ou escudo que amortecia os golpes dos muitos pensamentos, eu obtinha consolo. Porque a aridez não costumava vir quando eu tinha um livro; os pensamentos se recolhiam carinhosamente, e o espírito se concentrava. Muitas vezes, o simples fato de ter o livro à mão bastava. Em algumas ocasiões, eu lia pouco e, em outras, muito, a depender da graça que o Senhor me dava.
Eu tinha a impressão, nesses primeiros anos de que falo, de que, com livros e solidão não corria o risco de perder tanto bem; e creio, com o favor de Deus, que o teria perdido se tivesse tido mestre ou alguma pessoa que desde o início me ensinasse a fugir dos perigos ou a evitá-los tão logo me visse enredada neles. E, se o demônio me atacasse abertamente na época, penso que de nenhuma maneira me levaria a cometer um pecado grave. Mas ele foi tão sutil, e eu, tão imperfeita, que pouco aproveitei de todas as minhas determinações, embora aqueles dias em que servi a Deus, sofrendo as terríveis doenças que tive, com toda a grande paciência que Sua Majestade me deu, muito me tenham servido.
10. Muitas vezes pensei, espantada, na grande bondade de Deus, ficando minha alma maravilhada ao ver sua grande magnificência e misericórdia. Bendito seja Ele por tudo, pois sempre vi com grande clareza que, mesmo nesta vida, Ele não deixa de recompensar nenhum bom desejo. Por piores e mais imperfeitas que fossem as minhas obras, o Senhor as melhorava, aperfeiçoava e tornava meritórias, apressando-se a esconder minhas faltas e pecados. E, mais do que isso, Sua Majestade cegava e tirava a memória dos que tinham visto essas minhas faltas e pecados. O Senhor doura as culpas, faz com que resplandeça uma virtude que Ele mesmo põe em mim, quase me maltratando para que eu a tenha.
11. Quero voltar à ordem que me deram e dizer que, se fosse contar com detalhes o modo como o Senhor se relacionava comigo nesses princípios, seria necessário um talento maior que o meu para mostrar o valor do que lhe devo, e para revelar minha grande ingratidão e maldade, pois esqueci tudo isso. Que Ele seja para sempre bendito, pelo tanto que me tem suportado. Amém.