segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Capítulo 30




Retoma a narração de sua vida e diz como o Senhor remediou muitos dos seus sofrimentos por trazer ao lugar onde ela estava o santo Frei Pedro de Alcântara, da Ordem do glorioso São Francisco. Trata das grandes tentações e sofrimentos interiores que por vezes a acometiam.


1. Vendo o pouco ou nada que podia fazer para não ter esses ímpetos tão grandes, comecei a temê-los; porque não conseguia entender como podiam estar juntos a dor e o contentamento;1 sabia que era possível dor corporal e alegria espiritual, mas ficava perturbada com um sofrimento espiritual tão excessivo ao lado de um imenso prazer.

Eu não parava de tentar resistir, mas tinha tão pouca força que às vezes me cansava. Eu me amparava na cruz, procurando defender-me Daquele que com ela nos amparou a todos. Eu percebia que ninguém me entendia, o que era claro para mim, mas não ousava dizê-lo senão ao meu confessor, pois, do contrário, daria provas de não ter humildade.

2. Quis o Senhor remediar boa parte do meu sofrimento, e por algum tempo todo ele, ao trazer a este lugar o bendito Frei Pedro de Alcântara, a quem já mencionei e a cuja penitência me referi.2 Além disso, garantiram-me que ele portou durante vinte anos um cilício de folhas de lata. Ele é autor de uns libretos de oração escritos em castelhano, hoje muito divulgados; trata-se de livros muito proveitosos, escritos por alguém que muito a praticou para os que a têm.3 Ele guardou a primeira Regra do bem-aventurado São Francisco com todo o rigor, além de ter feito o que já foi dito.

3. A viúva serva de Deus de que já falei,4 amiga minha, soube que estava por aqui esse eminente homem. Ela conhecia a minha necessidade, pois teste munhava minhas aflições e muito me consolava, porque era tanta a sua fé que não podia deixar de crer ser espírito de Deus o que todos os outros diziam ser o demônio. Além disso, sendo pessoa de ótimo entendimento e muito dis creta, a quem o Senhor concedia muitas graças na oração, quis Sua Majes t a de esclarecê-la no que os doutos ignoravam. Meus confessores davam-me licença para que contasse a ela algumas coisas, por ser muito merecedora de con fiança. Às vezes, ela recebia parte das graças que o Senhor me concedia, com avisos muito proveitosos para a sua alma.

Sabendo da presença do Frei Pedro, ela obteve licença do meu Provincial, sem nada me dizer, para que eu passasse oito dias em sua casa, com maior facilidade de contato. Nesta e em algumas igrejas,5 falei com ele muitas vezes na sua primeira vinda a Ávila. Contei-lhe resumidamente a minha vida e meu modo de proceder na oração, com a maior clareza que pude (porque isso sempre consegui, tratando com toda a clareza e verdade com aqueles a quem conto as coisas da minha vida; até os primeiros movimentos eu gostaria de tornar públicos e, nas coisas mais duvidosas e suspeitosas, eu chegava a dar-lhes argumentos contra mim), abrindo-lhe minha alma sem duplicidade nem subterfúgios.

4. Quase desde o início eu vi que ele me entendia por experiência, o que era tudo de que eu precisava, porque, na época, não sabia me entender como agora nem como me exprimir — porque, mais tarde, Deus me permitiu entender e descrever as graças que Sua Majestade me concede —, e era necessário, para me entender por inteiro e dizer o que era, que a pessoa tivesse passado pela mesma coisa. Ele muito me iluminou porque, ao menos nas visões que não eram imaginárias, eu não podia entender o que acontecia e, no tocante às que eu via com os olhos da alma, também havia muito mistério. Porque, como eu disse,6 eu só julgava importantes as que se vêem com os olhos corporais, e estas eu não tinha.

5. Esse santo homem me deu muita luz e muito me explicou. Disse-me que não me angustiasse, mas louvasse a Deus e me convencesse de que era espírito de Deus e que, excetuando a fé, não podia haver coisa mais verdadeira nem mais digna de crédito. E ele se consolava muito comigo e muito me favorecia e agraciava, revelando desde então ter muita estima por mim, informando-me das suas coisas e negócios. Vendo-me com os desejos que ele já possuía em forma de obras — pois o Senhor me dava esses anseios muito intensos — e com tanto ânimo, alegrava-se em tratar comigo. Isso porque, para uma alma a quem Deus elevou a esse estado, não há prazer nem consolo que se igualem a encontrar quem parece ter recebido do Senhor o início disso. Na época, pelo que posso julgar, eu não devia ter muito mais do que isso, e queira o Senhor que eu o tenha agora.

6. Ele teve muita compaixão de mim. Disse-me que uma das maiores provações da terra era aquela que eu sofrera, que é a contradição dos bons, e que ainda me restava muito por sofrer, porque sempre tinha necessidade e não havia nesta cidade quem me entendesse. Ele falou que conversaria com o meu confessor e com uma das pessoas que mais me faziam sofrer, o fidalgo casado de que já falei. Este, por ser grande a sua amizade por mim, era quem mais me atacava; sendo alma temerosa e santa, e tendo visto que eu, até há pouco tempo, era tão ruim, não se tranqüilizava por inteiro. E assim o fez o santo varão, falando com os dois e dando-lhes explicações para que ficassem tranqüilos e não me inquietassem mais. O confessor não tinha necessidade disso, mas o fidalgo precisava tanto que ainda assim não sossegou inteiramente,7 mas a conversa serviu para que ele não me amedrontasse tanto.

7. Combinamos que eu lhe escreveria sobre o que me acontecesse dali por diante e de nos encomendarmos mutuamente a Deus. Era tanta a humildade de Frei Pedro que ele levava em conta as orações desta miserável, o que me causava grande confusão. Ele me deixou com um consolo e um contentamento imensos, ordenando-me que continuasse a orar com segurança sem duvidar da presença de Deus. Afirmou que, se tivesse alguma dúvida, eu deveria contar tudo ao confessor, a fim de viver tranqüila; para maior segurança, eu deveria contar tudo.

Mas eu também não podia ter essa segurança total, porque o Senhor me conduzia por um caminho de temor, o que me permitia voltar a crer que era ação do demônio quando alguém me dizia. Assim, ninguém conseguia me infundir temor nem segurança de uma maneira que me fizesse dar mais crédito ao que se dizia do que àquele que o Senhor infundia em minh’alma. Por isso, embora tendo ficado muito consolada e tranqüilizada por esse Santo, eu não acreditei nele a ponto de ficar livre do medo, em especial quando o Senhor me deixava nos sofrimentos de alma que vou relatar agora. Mesmo assim, fiquei muito consolada. Não me cansava de dar graças a Deus e a meu glorioso pai São José, que a meu ver fora quem enviara o Santo, que era Comissário Geral da Custódia de São José.8 Eu me encomendava muito a São José e a Nossa Senhora.

8. Acontecia-me algumas vezes — o que ainda acontece, embora com menor freqüência — sentir enormes sofrimentos interiores, ao lado de tormentos e dores corporais tão violentos que eu não tinha alívio.

Outras vezes, eram males corporais mais graves que, não sendo acompanhados pelos da alma, eram suportados por mim com alegria; mas, quando vinha tudo junto, a dor era tamanha que eu não sabia o que fazer. Eu me esquecia de todas as graças que o Senhor me dera, restando apenas uma vaga lembrança, semelhante a um sonho, para dar pena; porque, nessas circunstâncias, o intelecto fica entorpecido, trazendo mil dúvidas e suspeitas, dando a impressão de que eu não conseguira entender, de que talvez estivesse enganada. Eu pensava: não era suficiente que eu estivesse enganada, sem enganar os bons? Via-me tão ruim que julgava que todos os males e heresias surgidos eram causados pelos meus pecados.

9. Tratava-se de uma falsa humildade que o demônio inventava para me tirar a paz, tentando levar a alma ao desespero. Agora, já tenho tanta experiência com as coisas do demônio que ele, percebendo que o entendo, já não costuma me atormentar tantas vezes. Quando o demônio age, percebemo-lo com clareza na inquietação e no desassossego com que ele começa, na agitação que traz à alma enquanto dura a sua ação, e na obscuridade e na aflição que ele deixa, ao lado da aridez e da pouca disposição para a oração e para fazer algum bem. Ao que parece, ele afoga a alma e amarra o corpo para que de nada aproveite.

Porque a verdadeira humildade, mesmo que nos faça ver que a nossa alma é ruim e nos leve a sofrer ao ver o que somos, fazendo-nos lamentar com sinceridade a nossa maldade, gerando sofrimentos grandes como os de que já falei,9 e que são sentidos de verdade, não vem com alvoroço nem desassossega a alma, não a obscurece nem lhe traz secura. Em vez disso, a verdadeira humildade traz graças à alma, e tudo ocorre ao contrário da falsa: com quietude, com suavidade, com luz.

A alma, embora sofra, se conforta ao ver o grande favor que Deus lhe faz ao dar-lhe essa dor e o bom emprego desta. Ela fica condoída por ter ofendido a Deus, mas ao mesmo tempo se alegra com o pensamento de Sua misericórdia. Ela tem luz para confundir a si mesma e louva Sua Majestade por tê-la suportado tanto.

Na humildade vinda do demônio, não há luz para nenhum bem, parecendo que Deus leva tudo a ferro e fogo, considerando somente Sua justiça. A alma, embora acredite que há misericórdia, porque o demônio não há de ter tanta força a ponto de fazê-la se perder, não fica consolada; pelo contrário, quando vê tanta misericórdia, ela tem aumentado o seu padecimento, pois vê que está obrigada a maior gratidão.

10. Tudo isso é uma das mais penosas, sutis e dissimuladas invenções do demônio que conheço, razão por que quis avisar vossa mercê para que, diante da tentação, tenha vossa mercê alguma luz e o reconheça, caso ele deixe intacto o intelecto para que isso aconteça. Não pense vossa mercê que isso depende dos estudos e do saber, já que, embora eu não os tenha, depois de ter saído dessa situação, bem vejo que é desatino. O que entendi é que o Senhor quer, permite e dá licença ao demônio, como lha deu para tentar Jó,10 se bem que a mim, sendo pessoa ruim, ele não o faça com o mesmo rigor.

11. Aconteceu-me isso um dia antes da véspera de Corpus Christi, festa da qual sou devota, embora nem tanto quanto deveria. Dessa vez, só durou até o dia, enquanto outras ocorrências duraram oito ou quinze dias, e até três semanas — não sei se mais do que isso —, em especial durante as Semanas Santas, que costumavam me trazer muitas consolações na oração. De repente, o intelecto se compraz com coisas tão pueris que, em outras circunstâncias, seriam motivo de riso. Ele me faz vagar por onde quer, numa grande perturbação. A alma fica aprisionada, sem controle sobre si e sem condições de pensar em outra coisa além dos disparates que o demônio lhe traz. Trata-se de coisas sem importância, que não se definem nem desaparecem, servindo apenas para oprimir a alma a ponto de deixá-la fora de si.

Nesses casos, ocorre-me pensar que os demônios fazem de bola a alma, sem que ela consiga furtar-se ao seu poder. O que se sofre aqui é impossível de descrever. A alma procura socorro e Deus permite que ela não o encontre, deixando-lhe apenas a razão do livre-arbítrio, mas obscurecida. Creio que ela deve ter os olhos quase tapados, como alguém que passou muitas vezes por um caminho de dia e o percorre à noite, e que, pelo que viu antes, sabe onde pode tropeçar, porque passou por ali de dia e procura se precaver dos perigos. Assim ocorre com a alma que, para não ofender a Deus, parece guiar-se pelo costume. Deixemos de lado o apoio do Senhor, que é o mais importante.

12. Nessas ocasiões, a fé está tão amortecida e adormecida quanto as outras virtudes, embora não perdida, pois a alma acredita no ensinamento da Igreja. Vocalmente, ela age, mas sente, por outro lado, que está sendo esmagada e entorpecida, pois tem a impressão de que conhece a Deus de maneira muito vaga. O amor que ela tem é tão pequeno que, quando ouve falar de Deus, escuta como se acreditasse ser Ele porque a Igreja o ensina, mas não se recorda do que experimentou Dele em si.

Ir rezar só causa mais aflição, ocorrendo o mesmo com buscar a solidão, pois o sofrimento que se sente, sem saber de onde vem, é insuportável. Tenho para mim que há nisso uma imagem fidedigna do inferno, que é de fato assim, pelo que o Senhor me deu a entender numa visão; porque a alma se queima por dentro, sem saber quem lhe pôs fogo nem por onde ele entrou, tampouco fugir dele nem como apagá-lo. Buscar remédio na leitura equivale ao es­forço de quem não sabe ler. Aconteceu-me certa feita de ir ler a vida de um santo para ver se me acalmava e me consolava com aquilo que ele padeceu. Li quatro ou cinco vezes várias linhas e, embora estivesse em castelhano, eu en tendia menos no fim do que no início, e por isso parei de ler. Isso se passou muitas vezes, mas me recordo particularmente dessa.

13. Do mesmo modo, conversar com alguém é pior; porque o demônio incu te um espírito de ira tão desagradável que deixa a impressão de que que remos matar todos, de maneira incontrolável. Já é grande esforço o au to con trole — ou talvez seja o Senhor quem controla quem está assim — para que não se diga nem se faça contra o próximo coisas que o prejudiquem e que ofendam a Deus.

Quanto a procurar o confessor, muitas vezes me acontecia o que direi; embora santos como o eram aqueles com quem tratei e trato, eu ouvia palavras e reprimen das tão ásperas que, mais tarde, quando lhes repetia suas pa­lavras, eles também ficavam espantados e diziam ter fugido do controle. De fato, embora prometessem não repeti-lo quando me vissem com tais sofrimentos de corpo e de alma, para não ficarem depois com compaixão e escrúpulo, determinando-se a consolar-me com piedade, eles não o podiam. Não diziam más palavras — isto é, coisas que ofendessem a Deus —, mas ainda assim proferiam as palavras mais ásperas que podiam vir da boca de um confessor. Eles deviam querer mortificar--me, e eu, embora outras vezes me alegrasse e tivesse paciência para suportá--lo, não o conseguia nessas ocasiões, porque, então, tudo era tormento para mim.

Vinha-me o temor de os estar enganando. Eu os procurava e os avisava com muita convicção que se precavessem de mim, pois era possível que eu os estivesse iludindo. Eu bem sabia que não o faria por querer, nem lhes mentiria, mas tinha medo de tudo. Disse-me um deles certa feita, entendendo a tentação, que não me afligisse, porque, ainda que eu o quisesse enganar, ele tinha capacidade suficiente para impedi-lo.11 Isso me deixou com muitas consolações.

14. Algumas vezes — quase sempre, ao menos era o mais comum —, depois de comungar, eu descansava. Não era raro que, aproximando-me do Sacramento, no mesmo instante12 ficasse tão boa, de alma e de corpo, que eu me espantava. Ao que parece, num átimo se desfaziam todas as trevas da alma e, raiando o sol, eu percebia as bobagens a que me havia entregado. Outras vezes, bastava uma palavra do Senhor — por exemplo: Não te aflijas; não tenhas medo, como eu já disse13 — para que eu ficasse curada de todo, como se não tivesse tido nada. O mesmo ocorria quando me vinha alguma visão. Eu me consolava com Deus; queixava-me a Ele por consentir que eu padecesse tantos tormentos. Mas era boa a recompensa, pois quase sempre vinha depois uma grande abundância de graças.

Tenho a impressão de que a alma sai do cadinho como o ouro, mais re finada e límpida para ver em si o Senhor. Assim, esses sofrimentos, que antes pareciam insuportáveis, tornavam-se pequenos; se forem para a maior glória do Senhor, a alma deseja tornar a passar por eles. Por mais dolorosos que sejam as tribulações e perseguições, se as passarmos sem ofender ao Senhor e alegrando-nos por sofrê-las por Ele, tudo será para o nosso maior proveito, embora eu não as suporte como deveria, mas muito imperfeitamente.

15. Também me vinham, e vêm, sofrimentos de outro tipo, parecendo ser tirada a possibilidade de pensar em coisas boas ou de desejar fazê-las. O corpo e a alma me parecem inúteis e pesados, mas não há outras tentações e desassossegos, mas sim um desgosto, que não se sabe de onde vem, e nada contenta a alma. Eu procurava fazer boas obras exteriores para me ocupar meio à força, e sei bem o pouco valor que tem uma alma quando a graça se oculta. Isso não me causava muito sofrimento, porque ver a minha baixeza me trazia alguma satisfação.

16. Há ocasiões em que me vejo incapaz de concentrar o pensamento em Deus ou em alguma coisa boa; não consigo ter oração, mesmo estando em solidão, mas sinto que conheço a Deus. Vejo que o intelecto e a imaginação são o que me prejudica aqui, pois tenho a impressão de que a vontade está boa e pronta para todo bem; mas o intelecto14 está tão perdido que se assemelha a um louco furioso que ninguém pode controlar. Só consigo acalmá--lo pela duração de um Credo. Algumas vezes, rio e percebo a minha miséria; fico a contemplar o intelecto para ver até onde vai e, glória a Deus, nunca, nem por exceção, ele procura coisas ruins, mas sim assuntos que pouco importam, como o que há a fazer aqui, ali ou em outro lugar.

Nesses momentos, conheço mais a enorme graça que o Senhor me concede quando mantém esse louco controlado em perfeita contemplação. Imagino o que ocorreria se me vissem nesse desvario as pessoas que me consideram boa. Lamento ver a alma em companhia tão ruim; fico desejando vê-la livre e, assim, digo ao Senhor: quando, Deus meu, verei a minha alma unida e entregue a Vosso louvor de maneira que todas as suas faculdades se regozijem? Não permitais, Senhor, que ela seja ainda mais despedaçada, pois me parece que vejo seus pedaços espalhados por todos os lados!

Passo por isso com muita freqüência; algumas vezes, bem compreendo que isso se deve em grande parte à pouca saúde corporal. Lembro-me muito do prejuízo que o primeiro pecado nos causou e penso que veio daí o sermos incapazes de gozar de tanto bem em um ser. Em mim pelo menos assim é, porque, se não tivesse tido tantos pecados, eu seria mais constante no bem.

17. Passei também por outro grande sofrimento: como todos os livros que tratam de oração que eu lia me pareciam compreensíveis, pensei que o Senhor já me tinha dado o entendimento e que eu não precisava deles; assim, eu não os lia mais, preferindo vidas de santos, já que ver-me tão longe do modo como eles serviam a Deus me beneficiava e animava, embora eu julgasse ser pouca humildade pensar que já tinha chegado a ter aquela oração. Não podendo deixar de pensar dessa maneira, eu ficava muito aflita, até que homens de saber e o bendito Frei Pedro de Alcântara me disseram para desdenhar esses pensamentos.

Tenho certeza de que nem comecei no serviço de Deus, mas nas graças recebidas de Sua Majestade estou próxima de muitas pessoas boas; sou a própria imperfeição, exceto nos desejos e no amor, pois nestes últimos tenho certeza de que o Senhor me favoreceu para que eu O pudesse servir em algo. Tenho plena convicção de que O amo, mas me desconsolo diante das minhas obras e das inúmeras imperfeições que vejo em mim.

18. Outras vezes me acomete uma estupidez da alma — eu digo que é — que me dá a impressão de que não faço bem nem mal, mas ando por ver andar os outros, como se diz: sem pesar e sem glória, nem viva nem morta, sem prazer nem sofrer. Parece que não se sente nada. Eu penso que a alma anda como um jumentinho que pasta e que se sustenta porque lhe dão de comer, comendo quase sem sentir. Porque a alma nesse estado não deve estar sem comer algumas grandes graças de Deus, já que, tendo vida tão miserável, não é para ela um peso viver, e o seu ânimo não arrefece; no entanto, não se sentem movimentos nem efeitos para que a alma o entenda.

19. Isso me parece agora navegar com ares muito serenos, andando muito sem saber como. Porque nas outras maneiras de que falei são tão grandes os efeitos que a alma quase alcança de imediato sua melhoria, já que os desejos logo fervem, e ela nunca acaba de se satisfazer. Isso acontece com os grandes ímpetos de amor de que falei,15 que atuam nas pessoas a quem Deus os dá. É semelhante a umas fontezinhas que tenho visto brotar: nunca cessa de haver movimento na areia, empurrada por elas para cima. Este exemplo ou comparação me parece compatível com o estado das almas que aqui chegam: o amor sempre está borbulhando e pensando no que fará. Ele não cabe em si, assim como na terra aquela água parece não caber, borbulhando sempre.

A alma fica assim com freqüência, sem sossego nem controle com o amor que tem, com o qual já está embebida; quisera que os outros bebessem, pois a ela a água não faz falta, para que a ajudassem a louvar a Deus. Quantas vezes me recordo da água viva de que o Senhor falou à samaritana. Por isso, tenho muita afeição por aquele Evangelho; e sempre a tive, sem entender como entendo agora este bem, desde muito pequena, tendo suplicado muitas vezes ao Senhor que me desse daquela água. Eu tinha a cena no meu quarto, registrando o momento em que o Senhor chegou ao poço, com este letreiro: Domine, da mihi aquam.16

20. Isso parece também um fogo grande que, para não se apagar, precisa ser sempre alimentado. Assim são as almas a que me refiro: mesmo que lhes custasse muito, gostariam de trazer lenha para que a chama não se apagasse. É tal a minha miséria que até me contentaria se lhe pudesse lançar algumas palhas, o que me acontece muitas vezes; de umas rio, em outras muito me canso. O movimento interior me incita a servir adornando as imagens com raminhos e flores, varrendo, arrumando um oratório e fazendo outras coisas insignificantes — pois para mim não sirvo — que me deixam confusa.

Quando fazia alguma penitência, eu fazia tão pouco e de tal maneira que, se o Senhor não levasse em conta a boa vontade, eu mesma considerava insignificante, chegando a rir de mim. Pois não têm pouco trabalho as almas a quem Deus dá, pela Sua bondade, este fogo do Seu amor em abundância quando lhes faltam forças corporais para fazer algo por Ele; é um imenso sofrimento porque, como lhes faltam meios para lançar alguma lenha nesse fogo, sendo elas capazes de morrer para que ele não se apague, elas vão se consumindo interiormente e se tornando cinzas. Desfazem-se em lágrimas e se abrasam, padecendo muito tormento, se bem que saboroso.

21. Louve muito o Senhor a alma que, tendo chegado aqui, receba dele forças corporais para fazer penitência ou conhecimento, talentos e liberdade para pregar, confessar e levar almas a Deus. Uma alma assim não sabe nem compreende o bem de que dispõe se não tiver aprendido por experiência o que é nada poder fazer no serviço do Senhor e receber sempre muito. Bendito seja Ele por tudo e rendam-Lhe glória os anjos, amém.

22. Não sei se ajo bem ao apresentar tantos detalhes. Como vossa mercê man dou me dizer outra vez que eu não receasse me estender e que nada omitisse, vou tratando com clareza e sinceridade de tudo aquilo que me vem à lembrança. E ainda assim deixo muita coisa de lado, para não ocupar um tempo ainda maior — e tenho tão pouco tempo, como eu disse,17 talvez sem obter nenhum proveito.

2 comentários:

  1. Comentário do capítulo 30:-
    Penso que neste capítulo, rico em detalhes quanto à distinção entre a falsa e a verdadeira humildade, a mensagem principal concentra-se neste trecho: "Algumas vezes - quase sempre, ao menos era o mais comum -, depois de comungar, eu descansava. Não era raro que, aproximando-me do Sacramento, no mesmo instante ficasse tão boa, de alma e de corpo que eu me espantava. Ao que parece, num átimo se desfaziam todas as trevas da alma e, raiando o sol, eu percebia as bobagens a que me havia entregado."
    É na Eucaristia que encontramos forças para suportar as provações da vida e as tentações do inimigo. Sabemos que ele existe e é seu interesse nos afastar do caminho da oração. Este é um alerta constante nas recomendações da Santa Madre.
    Por outro lado, sabemos que a oração exige de nós uma certa disciplina, pois o nosso pensamento voa e se dispersa muito facilmente. Mas Teresa nos conforta, ao afirmar o consolo e o descanso que se encontra na Eucaristia.
    Quanto à humildade, particularmente, vejo aqui um grande desafio. Ser "manso e humilde de coração" é o que Jesus nos pede. Não é impossível, mas, para mim, é um desafio.

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  2. CAPÍTULO 30

    Neste capítulo, Santa Teresa retorna à sua autobiografia e nos situa novamente diante de sua vivência de amizades. Foi nesta ocasião que chegou a Toledo Frei Pedro de Alcântara. Dona Luisa de la Cerda, que se apaixonara pela idéia de reunir “treze mulheres decididas a viver em absoluta pobreza por amor ao Senhor”, convidou o santo homem a visitá-la. E foi em sua casa que Santa Teresa e Frei Pedro estabeleceram as bases da Regra de absoluta pobreza dos Mosteiros reformados da Ordem do Carmelo. Este capítulo coincide com a fundação do Mosteiro de São José. Foi este santo homem que a iluminou, explicando-lhe que esta fundação seria a coisa mais verdadeira e digna de crédito.
    Embora tranqüilizada e consolada por Frei Pedro, Teresa não sentia segurança total, sentindo-se, muitas vezes, acometida por temores e grandes sofrimentos interiores, que lhe traziam dores corporais, quase sem alívio. Sentia que se tratava do demônio, que trazia à sua alma aridez e pouca disposição para a oração, fazendo-a sentir-se tão ruim. Mas logo descobriu que se tratava da “falsa humildade”, que não traz luz à alma. A “verdadeira humildade” é luz para a alma que, apesar do sofrimento, se sente confortada com as grandes graças de Deus e passa louvá-LO com grande intensidade e gratidão. Não basta conversar com alguém ou procurar o confessor para dele ouvir reprimendas. Muitas vezes, basta uma palavra do Senhor: “Não te aflijas; não tenhas medo”. Com isto, os sofrimentos e angústias se tornam pequenos. Importa, porém, trabalhar nosso intelecto para que não procure por coisas ruins ou assuntos que pouco importam, ensina Teresa.
    Muito enternecida fiquei ao vê-la comparar o amor àquelas fontezinhas que brotam da terra: realmente, é uma doçura sem par contemplá-las, sentindo a água límpida a borbulhar: é semelhante a uma sinfonia celeste e nos sentimos mais perto de Deus.
    Santa Teresa recomenda às suas primeiras filhas carmelitas tomar o lugar dos que não amam ou amam pouco, dos que não rezam ou rezam mal. Entre as virtudes que devem ser cultivadas, destaca três: o amor de umas pelas outras, o desapego pelas coisas criadas e a verdadeira humildade, que é a principal e abrange todas. Sem tais virtudes é impossível serem contemplativas.

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