quinta-feira, 12 de agosto de 2010

capitulo 25, 26

Capítulo 25

capitulo 25

Fala da maneira de entender as palavras que Deus dirige, sem ruído, à alma, e de alguns enganos que pode haver nisso. Explica os meios

de saber quando são palavras divinas. É muito proveitoso para quem estiver nesse grau de oração, porque é muito bem explicado e contém abundante doutrina.


1. Parece-me conveniente explicar esse modo de Deus dirigir-se à alma, e a maneira como esta se sente, para que vossa mercê o entenda; porque, desde que o Senhor me fez essa graça pela primeira vez,1 ela tem sido muito comum, como se verá adiante.

Trata-se de palavras bem formadas,2 mas inaudíveis aos ouvidos corporais. São, porém, entendidas mais claramente do que se fossem ouvidas. Por mais que se resista, é impossível deixar de compreendê-las. Aqui na terra, quando não se quer ouvir, podem-se tapar os ouvidos ou desviar a atenção, de modo que, ainda que se ouça, não se escute. Nesse estado em que Deus põe a alma, não há como fazer isso; mesmo que seja trabalhoso, somos obri­gados a escutar, e o intelecto fica tão apto a entender o que Deus quer que entenda que pouco importa querer ou não querer. Porque quem tudo pode exige que saibamos que havemos de fazer o que Ele quer, mostrando ser o nosso verdadeiro Senhor. É grande a minha experiência nisso, porque resisti du rante quase dois anos, dado o grande temor que sentia. Mesmo agora, ainda o tento algumas vezes, mas em vão.

2. Eu queria falar dos enganos que pode haver (embora, para quem tenha muita experiência, eles me pareçam poucos ou mesmo inexistentes — mas a experiência tem de ser muita) e da diferença existente entre a presença do bom espírito e a do mau, bem como das ocasiões em que tudo não passa de apreensão do próprio intelecto ou de comunicação do espírito consigo mesmo (não sei se isso pode acontecer, mas hoje mesmo tive a impressão de que sim). Quando essa comunicação vem de Deus, tenho tido muitas provas, em inúmeras coisas que me foram ditas dois ou três anos antes, de que se cumprem as palavras proferidas, sem exceção; acontecem também outras coisas em que se vê com clareza ser o espírito de Deus, como adiante direi.

3. Parece-me que uma pessoa, encomendando a Deus uma coisa com gran de afeto e preocupação, poderia imaginar que ouve dizer que a coisa se cum pri rá ou não. Isso é muito possível, mas quem entendeu desta outra maneira3 per­ce berá claramente do que se trata, porque é enorme a diferença. Se for uma coisa criada pelo intelecto, por mais sutil, cedo se perceberá ser ele que organiza e fala. O que distingue esses dois modos é a diferença entre ela borar um discurso e escutar o que outra pessoa diz; o intelecto percebe que não escuta, visto que age, pois as palavras que alinha são como um ruído sur do, sons fantásticos, sem ter a clareza das palavras do espírito. Quando o in­telecto age, podemos dis trair--nos e, se estivermos falando, calar-nos; quando Deus fala, isso não é possível.

O indício fundamental é que não produzem efeito,4 enquanto o que o Senhor diz são palavras e obras; mesmo que não sejam palavras de devoção, mas de repreensão, dispõem a alma à primeira, fortalecendo-a, enternecendo--a, iluminando-a e dando-lhe felicidade e quietude. Se a alma estava em aridez, agitada e desassossegada, nada disso permanece e, melhor ainda, o Senhor parece querer que se compreenda que Ele é poderoso e que as Suas palavras são obras.5

4. Creio que a diferença é igual à que há entre falar e ouvir, nem mais nem menos do que isso; o que falo, como eu disse,6 vou ordenando com o intelecto; se me falam, contudo, limito-me a ouvir, sem nenhum esforço. No primeiro caso, não podemos determinar bem o que significa, como se estivéssemos meio adormecidos; no segundo, a voz é tão clara que não perdemos uma sílaba. Por outro lado, às vezes o entendimento e a alma se encontram tão alvoroçados e distraídos que não conseguiríamos formular uma frase razoável, e mesmo assim encontramos prontas frases elaboradíssimas que a alma, mesmo estando muito recolhida, não poderia formular; à primeira palavra, como eu disse, a alma se transforma por inteiro. Especialmente quando está em arroubo, com as faculdades suspensas, como poderia a alma entender coisas que antes nunca lhe ocorreram? Como surgem elas, então, já que a alma quase não age e já que a imaginação está como abobada?

5. Deve-se entender que, quando tem visões ou ouve essas palavras, a alma nunca está unida a Deus no arroubo; porque, neste último caso — como eu já declarei, creio que na segunda água —,7 as faculdades se perdem de todo e, pelo que sei, não é possível ver, nem entender, nem ouvir: a alma está entregue por inteiro a outro poder e, nesse tempo, que é muito curto, não creio que o Senhor lhe dê alguma liberdade. Depois que isso passa, encontrando-se a alma ainda no arroubo, ocorre isso de que falo;8 porque as faculdades ficam de tal maneira que, embora não estejam perdidas, quase nada fazem. Estão como absortas, sem capacidade de raciocinar. Há tantos indícios que permitem compreender a diferença que, embora possamos nos enganar, isso não vai ocorrer muitas vezes.

6. Afirmo que, se a pessoa for experiente e estiver prevenida, vai percebê--lo com clareza. Descartando outros elementos que o comprovam, como já falei,9 basta ver que as palavras, quando são falsas, não causam efeito. A alma não as admite (ao passo que aceita, mesmo sem querer, as palavras místicas)10 nem lhes dá crédito, percebendo tratar-se de um devaneio do intelecto, da mesma maneira como não levaria a sério uma pessoa que delirasse.

No caso das palavras místicas, é como se ouvíssemos uma pessoa muito santa ou instruída, e de grande autoridade, que sabemos não há de mentir para nós. E essa comparação ainda fica a dever, porque essas palavras trazem consigo, por vezes, uma majestade que, sem que saibamos quem as profere, nos faz tremer, se são de repreensão, e nos desmanchar de amor, se são amorosas. Trata-se, como eu disse,11 de coisas que estavam bem longe da memória, sendo ditas num átimo frases muito grandes que, para serem organizadas, requereriam muito tempo — por isso, não me parece que haja maneira de ignorar que não são coisas feitas por nós. Por conseguinte, não preciso me deter aqui, porque creio ser impossível que uma pessoa experiente venha a se enganar se conscientemente não o quiser.

7. Muitas vezes, quando tenho dúvidas, acontece-me de não acreditar no que me dizem, pensando que eu mesmo o criei (depois que ocorre, porque, enquanto está acontecendo, é impossível), e ver as palavras realizadas muito tempo depois. O Senhor as faz permanecer na memória, não permitindo que as esqueçamos, enquanto o que vem do intelecto é como um fraco movimento do pensamento, que passa e é esquecido. No caso das palavras de Deus, embora se esqueça um pouco com o passar do tempo, nunca se perde por inteiro a memória do que foi dito, exceto se foi há muito tempo ou se são palavras de favor ou de doutrinação. As palavras de profecia, no entanto, não são esquecidas, a meu ver, pelo menos por mim, mesmo com tão pouca memória.

8. Repito que, a meu ver, a alma, a menos que seja tão perversa que deseje fingir — o que traria grandes males —, dizendo que ouve quando na verdade não o faz, não pode deixar de ver com clareza quando é ela quem ordena as palavras e fala, se alguma vez tiver ouvido o espírito de Deus; porque, se jamais o percebeu, poderá passar a vida inteira nessa ilusão e ter a impressão de que ouve palavras divinas, embora eu não saiba como isso pode acontecer.

Para mim, a alma quer ou não quer entender: se se desfaz com o que ouve e de forma alguma gostaria de ouvir alguma coisa — por causa de mil temores e tantas outras coisas que a possam levar a querer estar quieta em sua oração sem essas coisas —, por que dá tanta liberdade para que o intelecto componha argumentos? É preciso muito tempo para fazê-lo. Aqui,12 sem perder nenhum tempo, a alma fica instruída e compreende coisas que levariam um mês para imaginar; e o próprio entendimento e a própria alma ficam espantados com algumas coisas que escutam.

9. Assim é, e quem tiver experiência verá que tudo o que eu digo é tal como digo. Louvo a Deus por tê-lo conseguido dizer. Para terminar, afirmo que, quando isso vem do intelecto, poderíamos entendê-lo quando desejássemos e, cada vez que temos oração, poderíamos imaginar ouvi-lo. Mas, quando vem de Deus, não é assim; fico muitos dias querendo entender algo, sem o poder, e, como eu disse,13 tenho de entendê-lo quando não o quero. Quem deseja enganar os outros falando que ouviu de Deus o que vem de si não terá maior dificuldade para afirmar que o ouviu com os ouvidos corporais. Na verdade, nunca pensei que houvesse outro modo de ouvir ou de entender até conhecê-lo por mim mesma, o que, como afirmei,14 me custou um enorme sofrimento.

10. Quando provêm do demônio,15 as palavras, além de não deixarem bons efeitos, deixam maus. Isso me aconteceu não mais de duas ou três vezes, e logo fui avisada pelo Senhor de que vinham do demônio. Além da grande aridez que permanece, a alma fica com uma inquietação semelhante à de muitas outras ve zes em que o Senhor permitiu que a minha alma tivesse grandes tentações e sofrimentos de diversas espécies; e, embora me atormente muitas vezes, como direi,16 trata--se de uma inquietação que não se consegue saber de onde vem; ao que parece, a alma resiste, se perturba e fica aflita sem saber a razão, porque não ouve coisas ruins, e sim boas. Penso que um espírito sente o outro. O prazer e o deleite que daí advêm são, a meu ver, bastante distintos. O demônio poderia enganar com eles aquele que não tiver ou não tiver tido prazeres vindos de Deus.

11. Falo dos prazeres verdadeiros, que trazem uma consolação suave, forte, profunda, deleitosa, calma. Porque não considero devoções umas devoçõezinhas da alma, lágrimas e outros sentimentos pequeninos que ao primeiro sopro da perseguição desaparecem, embora sejam bons princípios e santos sentimentos, porque não são capazes de determinar se esses efeitos vêm do bom ou do mau espírito. Assim, é bom andar sempre advertido porque, se tivessem visões ou revelações, pessoas que não estão adiantadas na oração além desse ponto poderiam ser enganadas. Eu nunca experimentei essas coisas, até que Deus me concedeu, apenas pela Sua bondade, a oração de união, excetuando a primeira vez de que falei,17 ocorrida há muitos anos, quando vi Cristo. Se Sua Majestade me tivesse permitido entender tratar-se de uma visão verdadeira, como mais tarde entendi, grande benefício teria daí advindo. As palavras do demônio não deixam nenhuma suavidade na alma, mas um pavor e um grande tédio.

12. Considero muito certo que o demônio não enganará — nem Deus lhe permitirá fazê-lo — a alma que em nada confia em si e está fortalecida na fé, uma alma que entenda que é capaz de morrer mil vezes por uma verdade. Com esse amor à fé, que Deus logo infunde, gerando uma fé viva e forte, a alma deve procurar sempre seguir o que ensina a Igreja, perguntando a uns e outros, como quem já tem pés fincados com vigor nessas verdades, não podendo nenhuma revelação imaginável — mesmo que o céu se abrisse — demovê-la em um único ponto do que a Igreja ensina.

Mesmo que alguma vez se veja vacilar em pensamento contra isso ou parar para dizer: “Se Deus me diz isso, também pode ser verdade, como o que dizia aos santos”, não digo que a alma chegue a acreditar no demônio, mas que ele começa a fazer os primeiros movimentos para tentá-la. Então, o simples deter--se aí seria muito danoso. Mas creio que, nesse caso, nem mesmo os primeiros movimentos vão ocorrer se a alma estiver nisso tão forte quanto o Senhor torna aqueles a quem concede essas coisas, capaz de desafiar os demônios diante de qualquer dúvida sobre alguma verdade da Igreja, por menor que seja.

13. Afirmo que, se a alma não vir em si essa grande força e se a devoção ou a visão não a ajudarem, não se considere segura. Porque, embora não sinta de imediato o prejuízo, este poderia fazer-se, pouco a pouco, muito grande. Pelo que vejo, e sei por experiência, só há certeza de que essas coisas procedem de Deus se elas respeitarem as Sagradas Escrituras, já que a mais di minuta distorção me faria ter muito mais firmeza em acreditar que vêm do de mônio do que a que tenho agora de que vêm de Deus, por maior que seja esta certeza. Quando as palavras vêm de Deus, não é preciso procurar sinais nem discernir de que espírito vêm; o simples fato de se ter de fazer isso é in dício tão claro de que vêm do demônio que, mesmo que todos me ga rantissem que vêm de Deus, eu não o acreditaria.

Quando é o demônio que age, parece que todos os bens se escondem e fo gem da alma, que fica desabrida e alvoroçada, sem nenhum efeito bom; pois, embora isso pareça incutir desejos na alma, estes não são fortes. A hu­mildade que fica é falsa, agitada e desprovida de suavidade. Parece-me que quem experimentou o bom espírito vai entendê-lo.

14. No entanto, o demônio pode recorrer a muitos embustes, razão por que o mais certo é temer sempre e permanecer de sobreaviso, ter um mestre instruí do e não lhe esconder nada. Agindo assim, nenhum dano pode advir, se bem que muitos me tenham atingido, graças aos temores demasiados de algumas pessoas. Uma vez em especial, aconteceu de se reunirem muitas pessoas a quem eu dava crédito — e era justo que desse. Embora eu já estivesse sob a direção de uma delas, ia tratar com as outras a mando seu, e todas tratavam longamente do meu caso, pois eram muito amigas minhas e te miam que eu fosse enganada. De minha parte, eu também tinha grande te mor quando não estava em oração, já que, estando nela e recebendo do Senhor alguma graça, logo me tranqüilizava. Creio que eram cinco ou seis.18 Disse-me meu confessor19 que todos estavam convencidos de que era o demônio quem agia em mim. Eu não devia comungar com tanta freqüência, devendo me distrair e evitar a solidão.

Eu era extremamente medrosa, como disse,20 para o que contribuía minha doença do coração; assim, muitas vezes não me atrevia a ficar sozinha numa sala mesmo em plena luz do dia. Percebendo que tantos o afirmavam e eu não podia acreditar, senti-me envergonhada, parecendo-me ter pouca humildade; porque todas aquelas pessoas tinham uma vida infinitamente melhor do que a minha, sendo além disso instruídas, não havendo razões para eu não crer nelas. Eu me forçava ao máximo para acreditar e, pensando em minha vida ruim,21 achava que estavam falando a verdade.

15. Saí da igreja com essa aflição e entrei num oratório. Há muitos dias eu não comungava e estava privada da solidão — que era todo o meu consolo —, sem ter uma pessoa com quem tratar, porque todas estavam contra mim: eu tinha impressão de que alguns zombavam de mim quando falava disso, pensando ser fantasias. Outros alertavam o confessor para que ele se precavesse quanto a mim. Outros ainda afirmavam que tudo era claramente obra do demônio. Apenas o confessor22 me consolava sempre, embora parecesse concordar com todos — ele o fazia para me provar, como depois vim a saber. Ele me dizia que, mesmo que fosse obra do demônio, nada me podia fazer, desde que eu não ofendesse a Deus, pois Ele me libertaria. O confessor mandava que eu suplicasse muito a Deus, pois ele e todas as pessoas que confessava,23 e outras muitas, o faziam com fervor. Quanto a mim, dedicava toda a minha oração pedindo a Sua Majestade que me levasse por outro ca minho, solicitando que fizessem o mesmo todas as pessoas que eu conside rava servas de Deus. E assim fiquei por uns dois anos, não sei bem, suplican do continuamente ao Senhor.

16. Quando eu pensava que era possível ter ouvido tantas vezes o demônio, nenhum consolo me bastava. Porque, embora não conseguisse horas de solidão para orar, mesmo em conversas o Senhor me levava ao recolhimento, e, sem que eu pudesse recusar, me dizia o que queria, e eu, contra a minha vontade, era obrigada a ouvi-lo.

17. Numa certa ocasião, estando sozinha, sem ninguém com quem falar, sem poder rezar nem ler, e estando espantada de tantas tribulações e cheia de temores de que o demônio me enganasse, fiquei toda ansiosa e cansada, sem saber o que fazer de mim. Nessa aflição já me vi muitas vezes, mas nenhuma, creio eu, num grau tão extremo. Fiquei assim durante quatro ou cinco horas,24 pois não havia para mim consolo do céu ou da terra; o Senhor me deixou padecer, temerosa de mil perigos.

Ó meu Senhor, como sois o amigo verdadeiro; és poderoso, quando quereis podeis, e nunca deixais de querer quem Vos quer! Louvem-Vos todas as coisas, Senhor do mundo! Feliz quem puder percorrer todo o universo para dizer quão fiel sois a Vossos amigos! Todas as coisas faltam; Vós, Senhor de todas elas, nunca faltais. Pouco deixais sofrer quem Vos ama. Ó Senhor meu! Com que delicadeza, polidez e sabor sabeis tratá-los! Feliz quem tiver se dedicado a amar somente a Vós! Parece, Senhor, que provais com rigor quem Vos ama, para que no extremo do sofrimento possa entender o maior extremo do Vosso amor. Ó Deus meu, feliz quem tivesse capacidade, letras e novas palavras para louvar Vossas obras, como as vê minha alma!

Falta-me tudo, Senhor meu. Mas, se não me desamparardes, não serei eu quem vai faltar a Vós. Levantem-se contra mim todos os doutos, persigam--me todas as coisas criadas, atormentem-me os demônios, mas não me falteis Vós, Senhor, pois já tenho experiência dos benefícios que concedeis a quem só em Vós confia.

18. Encontrando-me eu com essa grande fadiga (até então, eu não tinha começado a ter visões), bastaram-me estas palavras para me tirar dela e apaziguar-me por inteiro: Não tenhas medo, filha, pois sou Eu, que não te desampararei; não temas. Na condição em que eu me encontrava, parece-me que eram necessárias muitas horas para que eu me convencesse a ficar calma, e ninguém seria capaz de consegui-lo. E eis-me sossegada, só com essas palavras; eis-me forte, disposta, segura, em quietude e iluminada, e a tal ponto que vi vinha alma transformada por inteiro. Naquele momento, eu teria enfrentado o mundo inteiro, defendendo a convicção de que era Deus quem falava. Quão bom é o Senhor, e quão poderoso! Ele dá não só o conselho como também o remédio. Suas palavras são obras.25 Valha-me Deus, como Ele fortalece a fé e aumenta o amor!

19. Isso é tão certo que muitas vezes eu me lembrava de quando o Senhor ordenou que os ventos parassem no mar, no momento em que a tempestade se desencadeou.26 Assim, eu dizia: quem é este a quem obedecem todas as minhas faculdades, que dá a luz, num átimo, em meio a tanta escuridão, suavizando um coração que parecia de pedra e dando a água de lágrimas suaves onde parecia dever haver, por muito tempo, secura? Quem traz estes desejos? Quem dá este ânimo? E me veio o pensamento: que temo? Que é isso? Desejo servir a esse Senhor, não pretendo senão contentá-Lo; não quero consolação, nem descanso, nem outro bem afora fazer a Sua vontade (pois disso eu estava bem certa e, a meu ver, podia afirmá-lo).

Porque, se este Senhor é poderoso, como vejo e sei que é, e se os demônios são seus escravos (e disso não se pode duvidar, pois é verdade de fé), que mal me podem eles fazer sendo eu serva deste Senhor e Rei? Por que não haverei de ter forças para enfrentar todo o inferno?

Naquele momento, eu carregaria uma cruz com a mão, pois Deus parecia verdadeiramente me dar ânimo, modificando-me por inteiro num breve instante, a ponto de eu não temer enfrentar os demônios corpo a corpo. Eu tinha a impressão de que, com aquela cruz, venceria facilmente a todos. Desse modo, disse: “Agora vinde todos, pois, sendo serva do Senhor, eu quero ver o que me podeis fazer”.

20. Não havia dúvidas de que eles pareciam temer-me, porque fiquei calma e tão destemida diante de todos eles que todos os medos que eu tinha até então desapareceram. Embora algumas vezes tenham voltado, como adiante direi,27 nunca mais os temi, parecendo que eram eles que me temiam. Fiquei com tal poder contra eles — dádiva bem clara do Senhor de todos — que não me incomodam mais do que moscas. Eles me parecem tão covardes que, vendo que somos capazes de enfrentá-los, ficam faltos de força. Esses inimigos não atacam de frente, mas apenas a quem recua diante deles — ou nas ocasiões em que Deus permite, para o maior bem dos seus servos, que eles os tentem e atormentem. Queira Sua Majestade que temamos a quem temos de temer e que compreendamos que pode haver maior dano num só pecado venial do que no inferno inteiro, porque assim é.

21. Esses demônios nos deixam espantados porque nós queremos nos espan tar com apegos à honra, bens e deleites. Eles, juntando-se a nós — já que tra ba lhamos contra nós mesmos ao amar e querer o que devíamos rejeitar —, muitos prejuízos nos trazem. Nós fazemos com que eles lutem contra nós com as nossas próprias armas, que pomos em suas mãos em vez de usá-las para nos de fender. Isso é uma grande lástima. Mas, se rejeitarmos tudo por Deus, abraçando-nos com a cruz e buscando servi-Lo de verdade, os demônios fugirão dessas verdades como quem foge da peste. O demônio é amigo das mentiras, a própria mentira, e não faz pacto com quem anda na verdade.28 Quando ele vê que o intelecto está obscurecido, dá uma grande ajuda para que acabemos mal; porque, vendo que alguém está cego ao buscar seu repouso em coisas vãs, e tão vãs quanto as coisas deste mundo, que são brinquedo de criança, ele logo percebe que se trata de uma criança, tratando-o como tal e enfrentando-o inúmeras vezes.29

22. Praza ao Senhor que eu não seja assim. Que Sua Majestade me favoreça para que eu tenha por descanso o que é descanso, por honra o que é honra e por deleite o que é deleite, e não tudo ao contrário. E uma figa para todos os demônios,30 pois são eles que hão de me temer. Não entendo esses medos. Por que dizer: “de mônio! demônio!” quando se pode dizer: “Deus! Deus!” — fazendo tremer o demônio?31 Sim, pois já sabemos que o demônio não pode sequer mover--se se o Senhor não lhe permitir. Que digo? Sem dúvida, tenho mais medo dos que temem muito o demônio do que dele mesmo; porque ele não me pode fazer nada, ao passo que aqueles, especialmente se são confessores, trazem muita inquietação — e passei alguns anos com tamanho tormento que ainda hoje me espanto por tê-lo suportado. Bendito seja o Senhor, que tão verdadeiramente me ajudou!



Capítulo 26

Continua no mesmo assunto. Narra certas coisas

que lhe aconteceram e a levaram a perder o temor

e afirmar que era o bom espírito que lhe falava.


1. Considero uma das grandes graças concedidas pelo Senhor a disposição que me deu contra os demônios; porque a alma andar acovardada e re ceosa de alguma coisa além de ofender a Deus é um enorme inconveniente. Pois temos um Rei todo-poderoso e um majestoso Senhor que tudo pode e a todos sujeita, não havendo por que temer, se andarmos — como falei —1 em verdade diante de Sua Majestade, e com a consciência limpa. Para isso, como já afirmei, eu queria todos os temores: para não ofender em nada Aquele que num momento pode nos destruir. Porque, estando Sua Majestade contente, não há inimigo nosso que não fique confuso.

Alguém pode dizer que assim é; mas, como não há alma tão reta que O contente de todo, vem-nos o temor. A minha com certeza não o é, por ser muito miserável, inútil e cheia de mil defeitos. Mas Deus não é como as pes soas: Ele entende as nossas fraquezas. Mas a alma, se O ama de verdade, sente isso em si de maneira inequívoca, porque, para quem chega a esse estado, o amor não fica dissimulado como no início, exibindo em vez disso grandes ímpetos e desejos de ver a Deus, como depois direi ou já disse:2 tudo cansa, tudo fatiga, tudo atormenta. Se não é com Deus ou por Deus, não há descanso que não canse, porque a alma se vê ausente do seu verdadeiro descanso, e assim é uma coisa muito clara que, como digo, não fica dissimulada.

2. Aconteceu-me outras vezes de eu estar às voltas com grandes tribulações e murmúrios sobre certo assunto de que mais tarde vou falar, problemas que envolviam quase todo o lugar em que me encontro e a minha Ordem.3Estando eu aflita com as muitas coisas capazes de me inquietar, disse--me o Senhor: Que temes? Não sabes que sou todo-poderoso? Eu cumprirei o que te prometi (e assim o fez bem depois). Fiquei logo com muita força, e teria empreendido outra vez muitas coisas, mesmo que me custassem mais sofrimentos, para servi-Lo, dispondo-me a padecer de novo.

Isso me aconteceu tantas vezes que eu nem consigo contá-las. Em muitas delas, Ele me repreendia, o que faz ainda hoje quando tenho imperfeições, e de uma maneira capaz de desfazer a alma. Essas repreensões ao menos trazem consigo a correção, porque Sua Majestade, como eu disse,4 dá o conselho e o remédio. Outras vezes, Ele me trazia à memória meus pecados passados, em especial quando desejava me conceder favores destacados; nessas ocasiões, a alma tem a impressão de já estar no verdadeiro Juízo. Porque a verdade lhe é apresentada com tamanha clareza que ela não sabe onde se esconder.

Em outras ocasiões ainda, o Senhor me dava avisos de alguns perigos para mim e para outras pessoas, sobre coisas que viriam a acontecer, para as quais fui alertada três ou quatro anos antes, coisas que sempre se cumpriram. Algumas delas eu poderia nomear. Dessa maneira, há tantas evidências de que isso vem de Deus que, a meu ver, não se pode ignorar a Sua ação.

3. O mais seguro é (e eu assim ajo e, sem isso, não teria sossego, nem é razoável que o tenhamos, pois somos mulheres, e sem letras), como muitas vezes me disse o Senhor (e aqui não pode haver danos, mas muitos proveitos), não deixar de revelar o que vai na alma e as graças concedidas pelo Senhor ao confessor; esse confessor deve ser instruído, e devemos obedecer a ele. O Senhor me tem dito isso muitas vezes.

Eu tinha um confessor que muito me mortificava e, por vezes, me afligia e muito me fazia sofrer, porque me inquietava em demasia. Contudo, tenho para mim ter sido ele o que mais me beneficiou.5 Embora eu tivesse muita afeição por ele, às vezes me sentia tentada a deixá-lo, pois me parecia que os exercícios da oração que ele me mandava fazer me estorvavam. Toda vez que estava de cidida a abandoná-lo, eu logo percebia que não devia fazê-lo; era uma repreen são que me desfazia mais do que as advindas do confessor. Em certas ocasiões, eu ficava cansada: discussões de um lado e repreensões do outro; mas tudo era necessário, pois a minha vontade era muito pouco submetida.

O Senhor me disse certa feita que não é obediente quem não está determinado a padecer; que eu devia levar em consideração aquilo que Ele padecera, pois assim tudo ficaria mais fácil para mim.

4. Um confessor com quem tive contato no início aconselhou-me que, como estava provado que o bom espírito agia em mim, eu me calasse e disso não falasse com ninguém, porque, nessas coisas, o melhor é calar. Eu gostei disso, porque sofria muito cada vez que as contava ao confessor, e era tanta a minha vergonha que superava a que eu sentia ao confessar pecados graves. Particularmente quando se tratava de grandes favores, eu tinha a impressão de que não me haveriam de crer e zombariam de mim; eu sentia tanto isso que considerava ser um desacato às maravilhas de Deus, sendo esse o motivo de eu querer calar. Mas vim a compreender que fora muito mal aconselhada por ele, pois de nenhuma maneira devia ocultar coisas àqueles a quem me confessava, porque, fazendo isso, tinha grande segurança, ao passo que, fazendo o contrário, podia ser enganada alguma vez.

5. Sempre que o Senhor me ordenava uma coisa na oração e o confessor me dizia outra, o próprio Senhor repetia que lhe obedecesse; depois Sua Majestade mudava a sua opinião, para que me ordenasse outra vez de acordo com a vontade divina.

Senti muito quando se proibiu a leitura de muitos livros em castelhano,6 porque alguns muito me deleitavam, e eu não poderia mais fazê-lo, pois os permitidos estavam em latim; o Senhor me disse: Não sofras, que te darei livro vivo. Eu não podia compreender por que Ele me dissera isso, pois ainda não tinha tido visões. Mais tarde, há bem poucos dias, o compreendi muito bem, pois tenho tido tanto em que pensar e em que me recolher naquilo que me cerca, e tenho tido tanto amor do Senhor, que me ensina de muitas maneiras, que tenho tido muito pouco ou quase nenhuma necessidade de livros. Sua Majestade tem sido o livro verdadeiro onde tenho visto as verdades. Bendito seja esse livro, que deixa impresso na alma o que se há de ler e fazer, de modo que não se pode esquecer!

Quem pode ver o Senhor coberto de chagas e aflito por perseguições sem que as abrace, ame e deseje? Quem vê algo da glória que Ele dá aos que O servem e não reconhece que de nada vale tudo o que se pode fazer e padecer quando esperamos esse prêmio? Quem vê os tormentos que passam os condenados e não considera deleites os sofrimentos daqui nem reconhece o muito que deve ao Senhor por ter sido libertado tantas vezes daquele lugar?

6. Como, com o favor de Deus, falarei mais sobre algumas coisas, desejo prosseguir com a narrativa da minha vida. Queira o Senhor que eu tenha conseguido explicar-me no que tenho dito. Bem creio que quem tiver experiência o entenderá e verá que algo eu consegui dizer. Quem não a tem não me causará espanto se considerar tudo o que eu disse um disparate. Basta que eu o diga para ficar desculpado quem assim pensar, e não serei e a culpá-lo. Que o Senhor me permita acertar ao cumprir a Sua vontade. Amém.

Um comentário:

  1. Comentário dos Capítulos 25 e 26:-
    É preocupação de Teresa deixar clara a distinção entre as palavras místicas, vindas de Deus na oração, e as palavras vindas do demônio. Penso ser, de fato, muito bela a descrição que a Santa Madre faz dos efeitos que ficam na alma orante, diante daquilo que Deus lhe revela na oração.
    Sabemos que o demônio existe e age com astúcia. Mas Teresa nos dá uma dica acerca da ação de Deus, que supera toda e qualquer investida do demônio.
    Com efeito, a Santa Madre nos tranquiliza, afirmando que a ação de Deus na alma, por meio das palavras místicas, produz uma "consolação suave, forte, profunda, deleitosa, calma". E isto se diferencia totalmente dos efeitos produzidos por ação do demônio ("quando é o demônio que age, parece que todos os bens se escondem e fogem da alma, que fica desabrida e alvoroçada, sem nenhum efeito bom") e, também, dos efeitos produzidos por ação do próprio intelecto (que é a "comunicação do espírito consigo mesmo").
    Teresa nos assegura que a ação de Deus na alma é tão suave, que não deixa dúvidas:
    "Não tenhas medo, filha, pois sou Eu, que não te desampararei; não temas." - "E eis-me sossegada, só com essas palavras; eis-me forte, disposta, segura, em quietude e iluminada, e a tal ponto que vi minha alma transformada por inteiro. Naquele momento, eu teria enfrentado o mundo inteiro, defendendo a convicçãonde que era Deus quem falava. (...) Naquele momento, eu carregaria uma cruz com a mão, pois Deus parecia verdadeiramente me dar ânimo, modificando-me por inteiro num breve instante, a ponto de eu não temer enfrentar os demônios corpo a corpo. Eu tinha a impressão de que, com aquela cruz, venceria facilmente a todos".
    Com este ensinamento de Teresa, tomam vida as palavras do Salmo 26/27: "O Senhor é minha luz e minha salvação, a quem temerei? O Senhor é o protetor da minha vida, de quem terei medo? (...) Se todo um exército se acampar contra mim, não temerá meu coração. Se se travar contra mim uma batalha, mesmo assim terei confiança".
    Realmente, a ação de Deus é certa e suave, que nos fortalece para o combate da vida.
    Finalmente, no capítulo 26, Teresa volta a ressaltar a importância de se confiar tudo a um confessor, sendo-lhe obediente, como ela já havia exortado nos capítulos 23 e 24.

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