domingo, 25 de abril de 2010

Capítulo 10


Capítulo 10

Começa a declarar as graças que o Senhor lhe concedia na oração. Como podemos nos ajudar a nós mesmos e como é importante entendermos os dons de Deus. Pede ao seu destinatário que doravante o que ela escrever seja secreto, visto que a mandaram falar de uma coisa tão particular quanto são essas graças.

1. Como disse,1 eu tinha começado a sentir às vezes, embora com brevi da de, o que passo a relatar. Vinha-me de súbito, na representação interior de es tar ao lado de Cristo, de que falei,2 tamanho sentimento da presença de Deus que eu de maneira alguma podia duvidar de que o Senhor estivesse dentro de mim ou que eu estivesse toda mergulhada nele. Não se tratava de uma visão; acredito ser o que chamam de teologia mística: a alma fica suspensa de tal modo que parece estar fora de si; a vontade ama, a me mória parece estar quase perdida, o intelecto não discorre, mas, a meu parecer, não se per de; entretanto, repito, também não age, ficando como que espantado com o muito que alcança, porque Deus lhe dá a entender que ele nada com preen de daquilo que Sua Majestade lhe representa.

2. Antes, eu tivera continuamente uma ternura que, em parte, é possível procurar: uma satisfação que não é completamente dos sentidos nem é bem espiritual. Tudo é dado por Deus; mas, ao que parece, para isso podemos con tribuir considerando nossa inferioridade e a ingratidão para com Deus, o muito que Ele fez por nós, sua Paixão, em que sofreu graves dores, Sua vida tão cheia de aflições; deleitando-nos por ver Suas obras, Sua grande za, o amor que tem por nós e muitas outras coisas que quem deseja progredir espiritualmente encontra por toda parte, mesmo que não as viva procurando. Se, ao lado disso, houver algum amor, a alma fica inebriada, o coração fica terno, vêm lágrimas; às vezes, parece que as arrancamos à força e, em ou tras, elas vêm do Senhor, e com tanta energia que não podemos resistir. Ao que parece, Sua Majestade nos recompensa pelo nosso pequeno esforço com um dom imenso que é o consolo sentido pela alma ao ver que chora por tão gran de Senhor; e não me espanto com isso, pois razão há de sobra para sentir consolo, pois ali ela se inebria e se deleita.

3. Considero boa a comparação que agora me ocorreu: os prazeres obtidos da oração devem ser os dos que estão no céu, porque, como não vêem mais do que o Senhor, de acordo com o seu merecimento, quer que vejam, e como reconhecem os poucos méritos que têm, cada um deles se contenta com o lugar em que está, embora haja uma enorme diferença entre a felicidade de cada um no céu, que é muito maior do que a que há entre os gozos espirituais daqui da terra.

E, com efeito, a alma, no início, ao receber essa graça de Deus, quase tem a impressão de que não há mais a desejar, dando-se por bem paga por tudo quanto serviu. E sobram-lhe razões, pois uma lágrima dessas, que, como digo, quase procuramos — embora sem Deus nada se faça —, não me pareça poder ser comprada nem com todos os trabalhos do mundo, pois muito se ganha com elas; e que lucro maior do que ter um testemunho de que contentamos a Deus? Por isso, quem chegar a esse ponto louve muito a Deus, reconhecendo que muito Lhe deve, porque parece que o Senhor já o deseja para a Sua casa e o escolheu para o Seu Reino — se a alma não voltar atrás.

4. Não procure as humildades, de que pretendo falar, de certas pessoas que crêem ser humilde não compreender que o Senhor vai lhes concedendo dons.3 Entendamos, como deve ser, que Deus no-los dá sem nenhum merecimento nosso, e agradeçamos a Sua Majestade; porque, se não reconhecermos que recebemos, não vamos despertar para amar. Uma coisa é certa: quanto mais vemos que estamos ricos, sabendo que somos pobres, tanto maior o nosso aproveitamento e ainda mais verdadeira a humildade. O resto é abater o ânimo por pensar que não se é capaz de obter grandes bens se, começando o Senhor a dá-los, a alma se atemoriza com medo da vaidade. Acreditemos que Aquele que nos dá os bens nos concederá a graça para que, começando o demônio a tentar-nos nesse aspecto, nós o entendamos e nos fortaleçamos para resistir-lhe; isto é, se andarmos com retidão diante de Deus, voltados para contentar apenas a Ele, e não aos homens.

5. É evidente que amamos mais a uma pessoa quando nos lembramos muito das boas obras que faz por nós. Pois, se é ilícito e tão meritório nos lembrarmos sempre de que Deus nos deu a vida, nos criou do nada, nos sustenta, e de todos os outros benefícios que a Sua morte e os Seus sofrimentos nos deram, bem como do fato de que muito antes de nos criar Ele já os sofrera por cada um de nós, por que não seria lícito que eu reconheça, veja e considere muitas vezes que costumava falar em vaidades e que agora, pelo favor de Deus, só tenho vontade de falar Dele? Eis aqui uma jóia que, se reconhecermos que nos foi dada e que a possuímos, nos força a amar, porque o amor é todo o bem da oração fundada na humildade. Pois o que deve ocorrer quando tivermos em nosso poder jóias mais preciosas — que alguns servos de Deus já receberam — como as do menosprezo do mundo e de nós mes mos? É claro que nos consideraremos mais devedores e mais obrigados a servir e a compreender que não tínhamos nada disso e a reconhecer a ge nerosidade do Senhor. Porque, para alma tão pobre, ruim e pouco merecedo ra como a minha, bastava a primeira jóia destas, que ainda seria muito, mas ain da assim o Senhor quis cumular-me de mais riquezas do que eu poderia desejar.

6. Devemos tirar forças para servir mais e procurar não ser ingratos; por que o Senhor nos oferece esses dons com essa condição, pois, se não usar mos bem o tesouro e o elevado estado em que nos põe, Ele voltará a to má -los, e ficaremos ainda mais pobres; e Sua Majestade dará essas jóias a quem as preze e beneficie com elas a si e aos outros.

Como pode aproveitar e gastar com liberalidade quem não sabe que está rico? É impossível — a meu ver devido à nossa natureza — que tenha ânimo para grandes coisas quem não percebe ser favorecido por Deus; porque, dada a nossa inferioridade e inclinação para as coisas da terra, dificilmente nos desapegaremos de fato, com grande aversão, das coisas da terra se não souber mos que partilhamos dos bens celestes. Com esses dons, o Senhor nos dá a força que, pelos nossos pecados, perdemos. Se não tivermos provas do amor de Deus, ao lado de uma fé viva, como poderemos desejar que todos fiquem des contentes e se aborreçam conosco e com todas as grandes virtudes que os perfeitos exibem? Carecemos tanto de estímulo que logo acreditamos no que te mos diante dos olhos; assim, são esses favores que despertam e fortalecem a fé. Pode ser que eu, por ser tão ruim, esteja julgando por mim, podendo haver outros para quem basta a verdade da fé para fazerem obras muito per feitas, enquanto eu, miserável que sou, precisei de todas essas graças.

7. Que eles falem disso; eu falo do que aconteceu comigo, como me ordenaram. Se eu estiver errada, aquele a quem me dirijo4 destruirá esta relação; pois ele saberá entender, mais do que eu, o que está errado; a ele suplico, pelo amor do Senhor, que publique o que eu disse até agora da minha vida ruim e dos meus pecados (concedo-lhe a licença a partir de agora, estendendo-a a todos os meus confessores, sendo um deles aquele a quem me dirijo), e, se quiser, enquanto eu estiver viva, para que o mundo não se engane mais pensando que há em mim algum bem; e por certo, digo sinceramente, pelo que agora sinto, isso me trará grande consolo.

Para o que vou falar, não dou igual licença, nem desejo que, caso o mostrem a alguém, digam quem o escreveu, quem é nem a quem sucedeu; por isso, não direi o meu nome, nem o de ninguém, tentando escrever o melhor que puder para não ser reconhecida, e assim o peço pelo amor de Deus. Bastam pessoas tão instruídas e sérias para aprovar alguma coisa boa se o Senhor me der graça de dizê-la; se houver algo assim, será Dele, e não meu, porque não sou instruída, não tenho boa vida, nem fui educada por mestres nem por ninguém (porque só os que me mandaram escrever sabem que eu o faço, e no presente não está aqui);5 e quase furtando o tempo, e com pesar, porque me impede de fiar e porque, estando em casa pobre,6 há muitas ocupações… Assim, mesmo que o Senhor me tivesse dado mais capacidade e memória, podendo eu me aproveitar, com esta, do que ouvi ou li, o que não é o caso, se alguma coisa de bom eu disser, é o Senhor que o quer para algum bem; o que for ruim terá vindo de mim, e vossa mercê o suprimirá. Em nenhum dos casos há proveito em dizer o meu nome. Enquanto eu estiver viva, está claro que não se deve divulgar o bem; estando morta, isso de nada vai servir, a não ser para que o bem perca a autoridade e o crédito por ser dito por uma pessoa tão ínfima e ruim.

8. E por pensar que vossa mercê e os outros que o virem haverão de fazer o que peço, pelo amor de Deus, escrevo com liberdade; se assim não fosse, eu teria grandes escrúpulos, não para falar dos meus pecados, que nesse aspecto não tenho nenhum. Quanto ao mais, basta-me ser mulher para estar restrita, ainda mais sendo mulher e ruim. Assim, o que ultrapassar a simples narrativa da minha vida, tome-o vossa mercê para si — já que tanto me importunou para que eu indicasse as graças que Deus me faz na oração —, caso esteja em conformidade com as verdades da nossa santa fé católica; se não o estiver, que vossa mercê o queime logo, que a isso me sujeito. E direi o que se passa comigo para que, respeitada a fé, possa vossa mercê tirar disso algum proveito e, caso contrário, para que desenganeis a minha alma, e para que o demônio não ganhe onde eu penso ganhar; pois o Senhor já sabe, como depois direi,7 que sempre procurei buscar quem me dê luz.

9. Por mais clara que eu tente ser falando das coisas de oração, tudo será bem obscuro para quem não tiver experiência. Falarei de alguns impedimentos que no meu entender impedem o progresso nesse caminho, bem como de coisas em que há perigo, daquilo que o Senhor me ensinou por experiência e do que aprendi discutindo com grandes mestres e pessoas que há muito se dedicam às coisas do espírito. Todos estes reconhecem que, nos vinte e sete anos em que me dedico à oração, Sua Majestade me deu a experiência — apesar dos meus tantos tropeços e de eu ter trilhado tão mal esse caminho — que outros conseguiram em trinta e sete ou quarenta e sete anos, sempre na penitência e na virtude.

Bendito sejais por tudo! E, por quem sois, Senhor, servi-vos de mim, pois bem sabeis que não pretendo outra coisa senão que sejais louvado e engrandecido um pouco por haverdes plantado um jardim de flores tão suaves num pântano tão sujo e malcheiroso. Queira Sua Majestade que eu, pela minha culpa, não volte a arrancá-las nem torne a ser o que era. Suplico a vossa mercê que, pelo amor do Senhor, peça-Lhe isso, pois sabeis quem sou com mais clareza do que me permitistes dizer aqui.

2 comentários:

  1. Neste capítulo, a Santa Madre faz uma introdução às suas considerações sobre suas experiências de oração.
    À experiência de estar com Deus, unida a Ele por meio da oração, dá a Santa Madre o nome de "Teologia mística". Quando na oração, Teresa não tinha dúvidas de que o Senhor estivesse dentro dela ou que ela estivesse toda mergulhada Nele.
    Logo no início do capítulo, Teresa descreve aquilo que podemos chamar de características da teologia mística:
    - "a alma fica suspensa", parecendo estar fora de si;
    - "a vontade ama";
    - "a memória parece estar quase perdida";
    - "o intelecto não discorre, mas não se perde; entretanto, também não age";
    - "o intelecto fica como que espantado com o muito que alcança, porque Deus lhe dá a entender que ele nada compreende daquilo que Sua Majestade lhe representa".
    A meu ver, trata-se de ficar, permanecer com o Senhor. Como diz o Salmo 36/37: "Descansa no Senhor e nele espera"; ou, ainda, em Jo 15, 4: "Permanecei em mim e eu permanecerei em vós". É uma experiência altíssima, nem sempre fácil de se alcançar, dada a agitação em que muitas vezes nos encontramos, devida a tantos fatores que cada um de nós conhece. Mas sabemos que alcançamos muito entendimento de coisas espirituais quando Deus concede essas graças, que são as características da teologia mística, ditas acima. A Santa Madre irá nos guiar nesse caminho, custoso, mas que vale a pena.
    Teresa continua dizendo que antes dessa experiência de oração, ela sentia uma "ternura" - "uma satisfação que não é completamente dos sentidos nem é bem espiritual". Se a alma se deleita nas grandezas do Senhor, considerando todo o sofrimento de Sua Paixão por amor a todos nós, e havendo amor, então "a alma fica inebriada, o coração fica terno, vêm lágrimas". É o consolo que Deus concede à alma que chora por tão grande Senhor.
    Estas lágrimas, este consolo são "os prazeres obtidos na oração". Santa Madre os compara com aqueles dos que já estão no céu. Penso que nesse estado de oração tornamo-nos os "adoradores em espírito e verdade", que Jesus diz no Evangelho e que o Pai tanto busca. A alma recompensada por essas lágrimas e consolo considera que não há mais nada a receber nesta vida. "Ganha-se muito com essas lágrimas". Deve a alma assim favorecida ser muito grata ao Senhor.
    Finalmente, depois destas considerações sobre a teologia mística e a ternura, a Santa Madre faz uma importante advertência: a alma precisa entender e assumir que Deus lhe concede estas graças, e que tais graças são concedidas sem mérito algum da alma. É preciso agradecer a Deus por essas graças, "porque se não reconhecermos que recebemos, não vamos despertar para amar". E a advertência prossegue: "Acreditemos que Aquele que nos dá os bens nos concederá a graça para que, começando o demônio a tentar-nos nesse aspecto, nós o entendamos e nos fortaleçamos para resistir-lhe". Sem dúvida, trata-se de uma advertência importantíssima para estarmos atentos com relação às seduções do inimigo, pois ele certamente quer nos desviar do caminho da oração.
    Sigamos por este caminho, decididamente, pois a Santa Madre é nossa guia.

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  2. Neste capítulo 10, podemos perceber que as graças místicas começam a aparecer na vida de Teresa. Ela procura somente o Senhor, com tamanho sentimento de sua presença, que se sentia mergulhada nEle. Embora não se tratasse de uma visão, Teresa sentia-se fora de si, conforme explica: “a alma fica suspensa, a vontade ama, a memória parece perdida, o intelecto não discorre e não age porque nada entende...” Acredita ser o que chamam “Teologia Mística”. Teresa sabe que Cristo, sua humanidade e os mistérios de sua morte e ressurreição são os fundamentos da mística cristã.
    Considerando nossa inferioridade e ingratidão para com Deus pelo muito que Ele fez por nós, sua Paixão e seus grandes sofrimentos e assim meditando, “nossa alma fica inebriada e nosso coração fica terno” e, havendo amor, nos virão as lágrimas, que vêm do Senhor e com as quais sentimos consolo, por chorar em agradecimento a Ele.
    O “Vossa sou, pois me remiste”, condensa toda experiência de Teresa no amor misericordioso com que Deus a envolve. Teresa sabe até que ponto é porta voz da vontade do Pai, compreendendo que os prazeres alcançados através da oração são maiores que os gozos espirituais aqui da terra.
    Teresa vai nos ensinando que a verdadeira humildade está em reconhecer a nossa pobreza e os dons que o Senhor nos oferece: o homem se torna humilde pondo-se diante de Deus e reconhecendo tudo o que dEle recebe para, deste modo, despertar para amá-LO. Faz-se necessário abrir os olhos para Sua glória: “Todo dom vem do alto e desce do Pai das luzes” (Tg 1,17).
    Para Santa Teresa “humildade é caminhar na verdade”; é abandonar tudo e gozar a felicidade de possuir Deus, o único bem. São Paulo fez a identidade do cristão consistir no: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Humildade é também amar os caminhos de Deus em nossa vida, deixando de confiar em nós mesmos afim de que, confiando somente em Deus, aprendamos a obedecer, para crescer em humildade.
    Partindo da própria experiência orante, Teresa aconselha-nos a não nos abatermos perante nossa pobreza espiritual, - ela se dedicou vinte e sete anos à oração - mas que nos inundemos de paz interior com a descoberta de nossa verdade: Cristo será sempre o nosso mestre e com Ele aprenderemos a verdadeira humildade.

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